sexta-feira, 29 de maio de 2020

Cesário Verde - Deslumbramentos

Jan van Beers


DESLUMBRAMENTOS

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!

Cesário Verde


quarta-feira, 27 de maio de 2020

Adélia Prado - Missa das 10

Fotografia de Canção Nova


MISSA DAS 10

Frei Jácomo prega e ninguém entende.
Mas fala com piedade, para ele mesmo
e tem mania de orar pelos paroquianos.
As mulheres que depois vão aos clubes,
os moços ricos de costumes piedosos,
os homens que prevaricam um pouco em seus negócios
gostam todos de assistir à missa de frei Jácomo,
povoada de exemplos, de vida de santos,
da certeza marota de que ao final de tudo
uma confissão "in extremis" garantirá o paraíso.
Ninguém vê o Cordeiro degolado na mesa,
o sangue sobre as toalhas,
seu lancinante grito,
ninguém.
Nem frei Jácomo.

Adélia Prado


segunda-feira, 25 de maio de 2020

Junqueira Freire - Temor

Fotografia de Alexis Escobedo


TEMOR

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olhe que a terra
Não sinta o nosso peso.

Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços.
Escondamo-nos um no seio do outro.
Não há de assim nos avistar a morte,
Ou morreremos juntos.

Não fales muito. Uma palavra basta
Murmurada, em segredo, ao pé do ouvido.
Nada, nada de voz, - nem um suspiro,
Nem um arfar mais forte.

Fala-me só com o revolver dos olhos.
Tenho-me afeito à inteligência deles.
Deixa-me os lábios teus, rubros de encanto.
Somente pra os meus beijos.

Ao gozo, ao gozo, amiga. O chão que pisas
A cada instante te oferece a cova.
Pisemos devagar. Olha que a terra
Não sinta o nosso peso.

Junqueira Freire


Luís José Junqueira Freire (Salvador, 1832 — Salvador, 1855)



sexta-feira, 22 de maio de 2020

Inês Dias - Pequenos crimes entre amigos

Julie Blackmon (1966) - Green Velvet, 2007


PEQUENOS CRIMES ENTRE AMIGOS

Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo
– com cuidado, por favor –
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.

Inês Dias

Outro poema de Inês Dias: "Ágata"

Mais dois poemas em Emma Gunst e o blogue de Inês Dias, muito recomendável: Arquivo de cabeceira.


"Inês Dias é uma poeta e tradutora portuguesa. Estreou com Em Caso de Tempestade Este Jardim Será Encerrado (tea for one, 2011), seguido de In Situ (Língua Morta, 2012) e o mais recente Um raio ardente e paredes frias (Averno, 2013). Traduziu, entre outros, António Hernández: O Mundo Inteiro (Língua Morta, 2012). É editora da Averno e da revista telhados de Vidro."

Dados em modo de usar & co.  - revista de poesia e outras textualidades conscientes, onde se podem ler mais cinco poemas da autora.


Introdução à economia de perder
Os poemas de Inês Dias fiam-se com a subtileza de um refúgio para a vida

Hugo Pinto Santos, 14 de Novembro de 2014 in ípsilon - Público


Fotografia de Miguel Manso


quarta-feira, 20 de maio de 2020

Jorge de Lima - Olhemos os olhos das crianças...

Fotografia de Lucas Landau


OLHEMOS os olhos das crianças que eles encerram mistérios;
dentro de suas pupilas moram selvagens bons,
pairam neles as lendas das terras desconhecidas.
Olhemos os olhos das crianças;
quando com eles cruzamos nossos olhos,
há reconhecimentos súbitos
e reminiscências que revivem.
Que ausência de ouro e prata existe neles!
Que verdes potros relincham em suas colinas!
Que indiferença pelas arcas ricas!
Como se parecem com os olhos dos poetas!
Olhemos os olhos da crianças,
desprevenidos de crimes e borrascas,
inconscientes entre o Bem e o Mal
sempre transparentes como a água e o mel.
Olhemos os olhos das crianças,
com seus horizontes claros, claros,
capazes de deixar transparecer
o avô curvado e trêmulo,
o pai de sobrecasaca e a menina mãe.
Fitemos os olhos das crianças
como quem fita um écran
e vê desenrolar-se lá dentro
uma história familiar.
Olhemos os olhos das crianças
para repousar nestes céus sem pensamento
a angústia de procurar pátrias distantes
e as constelações que já morreram.

Jorge de Lima 

Wikipédia: Jorge de Lima (União dos Palmares, 23 de abril de 1893 — Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1953) foi um político, médico, poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, tradutor e pintor brasileiro. Viria a se consagrar como autor de um vasto poema em dez cantos com uma diversidade enorme de formas, ritmos e intertextos - Invenção de Orfeu (1952).

Biografia em InfoEscola.

 O autor em Só Literatura.




segunda-feira, 18 de maio de 2020

Olegário Mariano - Dona Boa




DONA BOA

Dona Boa sai à rua.
Faz um dia de garoa…
Que toilette! Quase nua...      
        Dona Boa…

Pisa de leve… tique-taque…
Às vezes, nem pisa, voa…
Que assombro! Sempre em destaque
        Dona Boa…

No Flamengo. Quando chega
e o chambre desabotoa,
para o trânsito. É uma grega
        Dona Boa.

Espreguiça-se, arredonda
o corpo e se aperfeiçoa.
E vai calmamente na onda
        Dona Boa…

E sobe e desce… No arranco
da vaga que se amontoa,
levanta um braço. Que branco
        o braço de Dona Boa!

Toma chá no Renaissance,
com torradas de Lisboa…
Tão boa para um romance,
        tão Boa…

No cinema. A orquestra louca
num rag-time se esboroa…
Ela abre um sorriso… Que boca
        tem Dona Boa!

No Palace. O Cipriano
fidalgamente abordou-a
e apresentou-nos: «Fulano
        e Dona Boa…»

Fiquei frio. Deu-me a breve
mão; o meu lábio beijou-a.
Como é delicioso e leve
        o cheiro de Dona Boa!

Disse eu logo um galanteio…
Riu num riso que atraiçoa.
Caía um lírio do seio
        de Dona Boa.

Olegário Mariano


"Olegário Mariano Carneiro da Cunha (Recife, 24 de março de 1889 — Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1958) foi um poeta, político e diplomata brasileiro."



sexta-feira, 15 de maio de 2020

Miguel Torga - "A minha pátria cívica acaba...”

Fotografia de Robert Grant


A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva; mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirinéus. Há no meu peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade vasca, dos perfumes do Levante e do luar andaluz. Sou, pela graça da vida, peninsular. Ardo no fogo desta fé que nos devora, exalto-me nas ambições desmedidas dos nossos maiores, e afundo-me dentro de uma invencível armada de quimera.

Miguel Torga

(Diário, Coimbra, 14 de Novembro de 1985).




(Lido aqui)


quarta-feira, 13 de maio de 2020

António Gedeão - Homem

Fotografia de Rafael Rodríguez 


HOMEM

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis,
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

António Gedeão



segunda-feira, 11 de maio de 2020

João de Deus - Adoração

Fotografia de Luiz Felipe Sahd 


Adoração

Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par;
Contemplei-o de longe mudo e quedo,
Como quem volta de áspero degredo
E vê ao ar subindo
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual;
Suave como lâmpada sagrada,
Benvindo como a luz da madrugada
Que rompe ao navegante
Depois do temporal!

Vi esse corpo de ave,
Que parece que vai
Levado como o Sol ou como a Lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição,
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
É uma adoração!

Que as asas providentes
De anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!

João de Deus





domingo, 10 de maio de 2020

Fernando Sylvan - Infância

Fotografia de Marie-Pierre Lambelin


INFÂNCIA

as crianças brincam nas praias dos seus pensamentos
e banham-se no mar dos seus longos sonhos

a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas
e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem
sem voltar à praia e sem voltar ao mar.

Fernando Sylvan


Tempo teimoso (1972)



sexta-feira, 8 de maio de 2020

Manuel Bandeira - Poema tirado de uma notícia de jornal



POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Manuel Bandeira


Libertinagem (1930)


De Ágora Gaia
https://m.youtube.com/watch?v=YSF6UMTibsY

Descoberta da origem do poema
https://m.youtube.com/watch?v=BvrJUa0Oj-8









quarta-feira, 6 de maio de 2020

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Ana Luísa Amaral - Assim se revisita o coração

Obra de Paulo Ito 


ASSIM SE REVISITA O CORAÇÃO

Só mal tocando as cordas
da memória
consegue o coração ressuscitar

Porque era este lugar
que eu precisava agora
como em deserto até
ao infinito,
e de repente,
uma gravidez imensa,
um cacto verde e limpo

Porque os olhos conhecem
estes sons
de dar à luz o vento
e são-lhe amantes
de tangível luz

Só mal tangendo as cordas
da memória
como estas flores
se tingem de alegria

Porque era neste azul
que eu me queria
como a rocha transpira
e se resolve
em mar

Ana Luísa Amaral