quarta-feira, 21 de junho de 2017

"Sempre que penso em ti estás a dançar levemente..." (Herberto Helder)

Fotografia de Yaci Andrade


Sempre que penso em ti estás a dançar levemente num clima de canela despenteada, ó aroma vagaroso, desordem aérea, mas a memória tem pressa, o sangue tem pressa interna, e antes de pensar tremo, e depois tremo, pelo meio desenvolve-se o pavor de uma beleza maiúscula, o coração corre entre iluminuras rápidas, é uma criança sucessiva nas pautas da música, assim escrevo uma nação simultânea, desapareces na respiração do teu vestido, entretanto a revelação anuncia-se pelo medo, curvas-te como as aldeias devoradas pela lua, mais tarde sempre que penso em ti estás com um lenço escrito nas duas mãos, e a tua velocidade abranda junto aos espelhos, expandes-te assim lentamente gravada, és uma floresta de silêncios visíveis, sempre que penso penso sempre ao contrário do fim, estás cada vez mais no princípio de ti mesma, então vejo que nesse lugar é o meu começo eterno, quando danças é um corpo rodeando a brancura rodeada ou de novo qualquer coisa criminal entre o cuidado e o espaço, nas linhas puras da solidão arde a cabeça, arde o vento, atrás de ti as imagens assassinas da noite - estrelas: subversão da noite, sempre que penso em ti danço até à ressurreição do tempo.

Herberto Helder


Do seu livro Retrato em Movimento, em Poesia Toda



segunda-feira, 19 de junho de 2017

Tu e eu (Luis Fernando Veríssimo)





TU E EU

Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só saber crescer
até dar pé.
Eu não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobo
eu sou mais albônico.
Tu, fão.
Eu, fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu, piniquim.
Eu, ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou pertinente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu, multo.
Eu, carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e o outro insano.
Tu, cano.
Eu, clidiano.

Dizes na cara
o que te vem a cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu, tano.
Eu, femismo.

Luís FernandoVeríssimo





quarta-feira, 14 de junho de 2017

Manuel Alegre é o vencedor do Prémio Camões




Manuel Alegre é o vencedor do Prémio Camões

8 de junho de 2017

Escritor é o 12.º autor português a receber aquele que é considerado o mais importante prémio literário destinado a autores de língua portuguesa.

O Prémio Camões de 2017 foi esta quinta-feira atribuído ao poeta e romancista Manuel Alegre, que se torna assim, aos 81 anos, o 29.º autor (e o 12.º português) a receber a mais importante consagração literária da língua portuguesa.

O prémio, no valor de cem mil euros, foi anunciado esta quinta-feira à tarde na sede da Biblioteca Nacional brasileira, no Rio de Janeiro, quando em Portugal eram cerca de 19h40. O nome de Manuel Alegre foi escolhido por um júri que integrou as ensaístas portuguesas Maria João Reynaud e Paula Morão, os académicos brasileiros José Luís Jobim de Salles Fonseca e Leyla Perrone Moisés, o poeta cabo-verdiano Jose Luiz Tavares e o especialista moçambicano em literaturas africanas Lourenço do Rosário.

Poeta, romancista e ensaísta, Manuel Alegre tem um longo percurso como lutador anti-fascista, é um dirigente histórico do PS e foi candidato à Presidência República em 2006.

(....)


Notícia completa no diário Público (8 de junho de 2017)


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AGORA MESMO

Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós também

Está gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com ele

Os amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a despedir-se

A Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amen



Do seu livro Chegar Aqui



terça-feira, 13 de junho de 2017

Para ser grande, sê inteiro (Reis / Pessoa)




Para ser grande, sê inteiro: nada
         Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
         No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
         Brilha, porque alta vive.

14-2-1933

Ricardo Reis


Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). - 148.




Análise do poema "Quando era criança" (Fernando Pessoa)

Fernando Pessoa aos três anos de idade



Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.

E hoje que sinto
Aquilo que fui.
Minha vida flui,
Feita do que minto.

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.

Fernando Pessoa

2-10-1933





Análise do poema "Quando era criança"

O poema "Quando era criança" é um poema ortónimo tardio de Fernando Pessoa, datado de 2 de Outubro de 1933. Sendo um poema tardio e da autoria de Pessoa em seu próprio nome, caracteriza-se por uma das temáticas mais queridas a Pessoa quando escrevia em seu próprio nome: a lembrança da infância, enquanto período dourado da sua vida.

Por isso, este poema fala da própria infância de Pessoa e não só da infância enquanto período de felicidade para todos os homens.

Passemos à análise do poema propriamente dito:

Quando era criança
Vivi, sem saber,
Só para hoje ter
Aquela lembrança.

Aqui Pessoa aborda a temática da infância enquanto período da inconsciência completa: "Vivi, sem saber". As crianças vivem a felicidade, porque em grande medida a desconhecem estar a viver. Esta oposição pensar/viver acompanhará sempre Pessoa nas suas análises. Ele sabe que será impossível regressar àquela condição infantil, porque hoje adulto ele sabe qual é a sua vida e não a pode ignorar: ele agora pensa e não se limita a viver. Por isso ele diz "Só para hoje ter / Aquela lembrança". De facto tudo o que resta é a lembrança, porque essa inconsciência da vida não vai regressar novamente.

É hoje que sinto
Aquilo que fui
Minha vida flui
Feita do que minto.

"Hoje" é que Pessoa sente o que foi. Isto reforça o que já dissemos: hoje a vida de Pessoa é feita daquele "pensar" que não existia quando ele era apenas criança. Hoje ele "sente", quando era criança apenas "vivia". A sua vida actual é uma mentira - pela sua própria avaliação. É uma mentira, provavelmente porque ele sente não conseguir descobrir a verdade do seu destino: é uma mentira existencial, uma vida que Pessoa sente não lhe pertencer por direito.

Mas nesta prisão,
Livro único, leio
O sorriso alheio
De quem fui então.

Pessoa está preso então nessa vida, nessa mentira que lhe impuseram. O que lhe resta é o "livro" que lê, o livro das memórias de uma infância perdida. E ao ler, vem-lhe um "sorriso alheio", um sorriso do passado, que já não é dela, mas que ele pode continuar a recordar, num apaziguamento frágil, mas que ao menos o poderá consolar na sua existência perdida. A memória da infância perdida conforta-o, mas igualmente o sufoca.

Ps: podem encontrar as características de Fernando Pessoa Ortónimo neste link:

prof2000.pt


(Fonte desta análise: Um Fernando Pessoa)



sábado, 10 de junho de 2017

Sete anos de pastor Jacob servia (Luís de Camões)

Jacob conhece Raquel, filha de Labão, de William Dyce (1845)



Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia o pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se não a tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
pera tão longo amor tão curta a vida!

Luís de Camões


quarta-feira, 7 de junho de 2017

Noutros lugares (Jorge de Sena)






NOUTROS LUGARES

Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.

É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.

É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.

O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.

Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.

Jorge de Sena

Poesia - III



Jorge de Sena



Jorge de Sena morreu a 4 de junho de 1978 em Santa Bárbara, na Califórnia. Recordamo-lo hoje com estas duas ligações e um poema


Ler Jorge de Sena 


Jorge de Sena no Instituto Camões
por Jorge Fazenda Lourenço



segunda-feira, 5 de junho de 2017

Poema (Manoel de Barros)



Manoel de Barros (1916 - 2014) foi um poeta brasileiro do século XX, pertencente, cronologicamente à Geração de 45, mas formalmente ao pós-Modernismo brasileiro, se situando mais próximo das vanguardas europeias do início do século e da Poesia Pau-Brasil e da Antropofagia de Oswald de Andrade

(Wikipédia)






quinta-feira, 1 de junho de 2017

Luanda em São Paulo (José Eduardo Agualusa)



LUANDA EM SÃO PAULO

Um taxista, ou taxeiro como com mais propriedade se diz em Luanda, estranhou o meu sotaque quando em Novembro do ano passado visitei o Recife.

— Você me desculpe, moço, mas você vem de onde?
Disse-lhe que era angolano e ele olhou para mim espantado.
— Angola? Isso fica no Brasil?

Expliquei que não, Angola fica em África, do outro lado do mar. Um país com pouco mais de dez milhões de habitantes, mais ou menos do tamanho do estado do Amazonas, rico em recursos naturais e destruído por uma prolongada guerra civil.

— Mas você é filho de brasileiros?
— Também não.
— Então onde aprendeu a falar português?

Respondi-lhe, já um pouco irritado, que embora existam em Angola muitas outras línguas, quase toda a gente entende e fala o português.

— Verdade? — estranhou o homem— , julguei que só nós, brasileiros falávamos português.
— E então os portugueses?
— Os portugueses? – o taxeiro sorriu superior. –Bom, esses falam um dialecto meio atravessado, não é bem português…

Mais tarde, passeando pelas ruas de Olinda (o casario pintado de cores loucas, os quintalhões protegidos por grossos muros de adobe ) lembrei-me como sempre da velha cidade de São Filipe de Benguela. Em Salvador reencontrei Luanda ( a festa permanente, o ritmo e o riso, o caloroso calulu). Corumbá, ardendo ao sol, em frente às águas lentas do Paraguai, trouxe-me à memória a Feira do Dondo, na margem direita do Quanza, a primeira cidade que os portugueses construíram nos sertões de Angola. Atordoado pelo calor, voltei a experimentar o estranho sentimento de me encontrar num sítio esquecido, longe da fúria e do fragor do mundo. Em Cachoeira, no recôncavo baiano, reencontrei a alegre vendedeira de raízes, santinhos e prodígios, que no mercado de São Paulo, em Luanda, me vendeu certa vez um pedaço de brututu, para o fígado, e estranhando que eu ainda não tivesse filhos se propôs vender-me também Pau de Cabinda. Num bar de esquina, no Rio de Janeiro, reencontrei os velhos funcionários públicos, de impecável terno de linho branco, que todas as tardes se reúnem a uma mesa da Biker, a mais antiga cervejaria de Angola, e à luz esplêndida do crepúsculo discutem todas as grandes questões do nosso tempo (sobretudo mulheres).

Por tudo isto eu quase acreditei estar em Angola quando vi, em viagem de ônibus entre São Paulo e Campo Grande, uma placa na estrada anunciado: Luanda, cem quilómetros. Mas depois disso conversei com a vendedeira de milagres em Cachoeira, com os funcionários públicos no Rio de Janeiro, centenas de outros brasileiros, e quase todos quiseram saber, como o taxeiro do Recife, onde ficava o meu país. O confronto entre a memória remota de África, que persiste em praticamente todas as regiões do Brasil, pelo menos a norte do Rio de Janeiro, e a absoluta ignorância do que é o continente nos nossos dias, deixa-me sempre perturbado. É como descobrir, no fim da vida, um irmão que partilhou connosco uma infância feliz, e que depois partiu para longe. Nós, em África, nunca deixámos de ter notícias dele. Ele nunca mais soube de nós. Ainda se recorda das canções que cantávamos, do tempero do calulu e do som do berimbau — mas já não sabe quem somos.

É importante para o Brasil redescobrir Angola (África)?

A mim, parece-me que será no espaço africano que o Brasil poderá exercer com mais vantagem, e proveito geral, a sua brasilidade. Parece-me também que o reencontro com África poderia ser importante para ajudar uma certa inquietude racial, latente, que é no fundo parte de uma mais vasta e profunda inquietação de identidade. Esta, porém, é uma questão a que só aos brasileiros cabe responder.

Nós, em África, continuamos à espera.

José Eduardo Agualusa

in Revista Lusofonia, Cascais, Portugal, Julho, 1996