segunda-feira, 27 de junho de 2022

Ana Hatherly - Auto-retrato

Fotografia de arquivo. Museo Vostell



AUTO-RETRATO

Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;

E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.

Ana Hatherly




segunda-feira, 20 de junho de 2022

Alberto Costa e Silva - Imitação de Botticelli

 

 

IMITAÇÃO DE BOTICELLI

Como a luz numa caixa de laranjas
ou a chuva sobre a mesa de verduras no mercado,
desce a manhã neste jardim, descalça,

e as flores que traz, na involuntária beleza,
parecem, contra seu corpo de verão enfunado,
musgo, limo, ferrugem, as feridas que os pássaros

abrem na casca lisa e perfeita de um fruto.

Alberto Costa e Silva


(Lido em Acontecimentos)



(Paul Himmel - Botticelli Girl, Patricia MacBride on the shores of Fire Island, 1951)




sexta-feira, 17 de junho de 2022

Fernando Echevarria - “Descalça de viver, andava sempre...”


Descalça de viver, andava sempre.
Enchia a rua quando não passava.
Mas, se passava, desfazia o tempo
e apagava a rua, os homens e as lágrimas.

Nem ela própria já vivia dentro
de si. A roupa que levava
tinha uma cor de triste e pensamento
que não se sente e não se vê. E nada

dela se via que não fosse um vento.
Nem um silvo ou perfume a denunciava.
Sabia-se, de certo, que vivia

porque o dia, a certas horas se quedava
pronto, parado, como não sendo dia.
Ela, descalça de viver, passava...
Fernando Echevarria 



segunda-feira, 13 de junho de 2022

Fernando Pessoa / Ricardo Reis - "Cada coisa a seu tempo tem seu tempo..."




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

30-7-1914

Ricardo Reis / Fernando Pessoa


Fernando Pessoa - O menino da sua mãe




O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.


s.d.

Fernando Pessoa 








Fernando Pessoa - “Eu amo tudo o que foi…”



Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.

Fernando Pessoa

1931

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).



sexta-feira, 10 de junho de 2022

Luís de Camões - "Descalça vai para a fonte..."

 
Fotografia de Professor Bop
 
 
 
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

Luís de Camões



quarta-feira, 8 de junho de 2022

A Elisabeth foi-se embora (Adília Lopes)



A ELISABETH FOI-SE EMBORA

                                                                           com algumas coisas de Anne Sexton)


Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth?
eu só gosto que seja a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu anti-séptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida

Adília Lopes 

Mariposa Azual (2000)




segunda-feira, 6 de junho de 2022

Mário Cesariny - De profundis amamus



DE PROFUNDIS AMAMUS

Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny




domingo, 5 de junho de 2022

Eugénio de Andrade - A poesia não vai




A poesia não vai à missa,
não obedece ao sino da paróquia,
prefere atiçar os seus cães
às pernas de deus e dos cobradores
de impostos.
Língua de fogo do não,
caminho estreito
e surdo da abdicação, a poesia
é uma espécie de animal
no escuro recusando a mão
que o chama.
Animal solitário, às vezes
irónico, às vezes amável,
quase sempre paciente e sem piedade.
A poesia adora
andar descalça nas areias do Verão.

Eugénio de Andrade


O Sal da Língua (1995)