segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Cristovam Pavia - Ao meu cão

Fotografia de Francisco Gonçalves


AO MEU CÃO

Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
de tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando
insinuar que eu ficasse perto,
que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
e gostavas da minha companhia por uma noite,
que te seria tão doce a minha simples presença
só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
não percebi, por tua mansidão e humildade,
que já tinhas perdoado tudo à vida
e começavas a debater-te na maior angústia,
a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

Cristovam Pavia


terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Mário Cesariny - De profundis amamus


DE PROFUNDIS AMAMUS

Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny 
 
Pena Capital (1957)




sábado, 15 de janeiro de 2022

Eugénio Tavares - Canção ao Mar (Mar eterno)

 

Canção ao Mar (Mar Eterno)

Oh mar eterno sem fundo sem fim
Oh mar das túrbidas vagas oh! Mar
De ti e das bocas do mundo a mim
Só me vem dores e pragas, oh mar

Que mal te fiz oh mar, oh mar
Que ao ver-me pões-te a arfar, a arfar
Quebrando as ondas tuas
De encontro às rochas nuas

Suspende a zanga um momento e escuta
A voz do meu sofrimento na luta
Que o amor ascende em meu peito desfeito
De tanto amar e penar, oh mar

Que até parece oh mar, oh mar
Um coração a arfar, a arfar
Em ondas pelas fráguas
Quebrando as suas mágoas

Dá-me notícias do meu amor
Que um dia os ventos do céu, oh dor
Os seus abraços furiosos, levaram
Os seus sorrisos invejosos roubaram

Não mais voltou ao lar, ao lar
Não mais o vi, oh mar
Mar fria sepultura
Desta minha alma escura

Roubaste-me a luz querida do amor
E me deixaste sem vida no horror
Oh alma da tempestade amansa
Não me leves a saudade e a esperança

Que esta saudade é quem, é quem
Me ampara tão fiel, fiel
É como a doce mãe
Suavíssima e cruel

Nas mágoas desta aflição que agita
Meu infeliz coração, bendita!
Bendita seja a esperança que ainda
Lá me promete a bonança tão linda!

Eugénio Tavares


Eugénio Tavares (Vila Nova Sintra, Ilha Brava, 18 de outubro de 1867 — Vila Nova Sintra, 1 de junho de 1930), foi um jornalista, escritor e poeta cabo-verdiano. 

Wikipédia



quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Ruy Belo - Da poesia que posso



DA POESIA QUE POSSO

Há uma certa maré nas coisas humanas
Espero pelo verão como por outra vida
no inverno é que o verão existe verdadeiramente
É o dia em que segundo alguns jornais
john hoare e david johnstone iniciam
a travessia do atlântico num barco a remos
É o dia das grandes travessias
o mar a vida isso que importa?
Dios qué bueno es el gozo por aquesta mañana
aqui na orla da praia mudo e contente do mar
Ao chegar aos cinquenta sessenta anos
Quando os fizer talvez pense nisso
e não agora a tanto tempo de distância
Agora sou do cúmulo da tarde
desta tarde no início do outono
ou do início desta tarde de outono
Só depois é que pergunto que fazer de tudo isto
que torna o cid meu contemporâneo
Dios qué bueno es el gozo por aquesta mañana
de um dia em que me achei mais pachorrento
Manhã ou tarde? primavera ou outono?
Não sei pouco me importa
Pouco me importa o quê? Não sei
(o resto vem no pessoa
Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais)
Basta a cada dia a sua própria alegria
e é grande a alegria quando iguala o dia

Ruy Belo

Homem de Palavra[s], 1970



segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Lêdo Ivo - "O meu leitor não é o que me lê..."

 


O meu leitor não é o que me lê. É o que me relê (caso exista). Um autor lido unicamente uma vez não tem leitores, por mais retumbante que seja o seu sucesso.

Lêdo Ivo 


 

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Rui Knopfli - Sem nada de meu

Rui Knopfli



SEM NADA DE MEU

Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.

Rui Knopfli


Mangas Verdes com Sal (1969)