segunda-feira, 25 de maio de 2015

A verruga (Mário-Henrique Leiria )




A VERRUGA

Estava eu sentado lá em casa, quando ouvi a minha tia dizer «uff!».
Suspeitei logo que havia coisa. Fui ver. Tinha-lhe nascido uma verruga na orelha. Não me pareceu normal.
Procurei imediatamente o meu tio, que é brigadeiro.
–Vamos falar com o ministro - disse o meu tio.
Fomos.
O ministro, em princípio, não quis acreditar. Não podia ser, aquilo não era normal. Claro que não era normal mas eu tinha visto, e foi o que lhe disse.
–Nesse caso, o melhor será fazer como se não soubéssemos de nada – propôs o ministro.
- O senhor já pensou o que isto pode causar? – Continuou, ansioso.
– Começam por aí a inquirir, a verruga complica-se, os anarquistas, sempre prontos para a insídia, aproveitam o momento, a greve surge, as coisas atrapalham-se, intervenção das Potências, a guerra, que sei eu? Não, não digamos a ninguém. Guardemos segredo, o Estado o compensará.
Olhei para o meu tio, brigadeiro como já tive oportunidade de fazer notar, e vi que realmente o caso parecia grave. No entanto, duvidando um pouco, inquiri ao ministro:
–A coisa é assim tão importante, Excelência?
–Mais que isso, meu amigo, mais que isso. A pátria está em tremendo perigo.
Senti que era a hora da decisão.
–Se a pátria periga, não desejo a mínima recompensa. Comigo é assim. Pela pátria, tudo. Calarei.
Calámos.
Dias depois a minha tia recebia uma carta escrita pelo próprio Imperador. Agradecendo. Louvando.
A carta ainda lá está. A verruga também.
Quanto a mim, continuo sentado lá em casa.
Calado.

Mário-Henrique Leiria






sábado, 23 de maio de 2015

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Não se mate (Carlos Drummond de Andrade)



NÃO SE MATE

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade






segunda-feira, 18 de maio de 2015

"Pátria", um poema de Sophia, e uma página sobre ela




Selecção, conteúdos e organização de Maria Andresen Sousa Tavares



Pátria

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo


Livro Sexto










sexta-feira, 15 de maio de 2015

Karingana ua karingana (José Craveirinha)

*


KARINGANA UA KARINGANA

Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
— Karingana ua Karingana —
é que faz o poeta sentir-se
gente.

E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
nem em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.

— Karingana!

José Craveirinha


Karingana ua karingana: Fórmula clássica de iniciar um conto e que possui o mesmo significado de “Era uma vez”.

Fonte: Página de António Miranda, onde podem ser lidos mais poemas de José Craveirinha e de outros poetas africanos.


José João Craveirinha (1922-2003) é considerado o poeta maior de Moçambique. Em 1991, tornou-se o primeiro autor africano galardoado com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa.(Wikipédia)






segunda-feira, 11 de maio de 2015

Viver sempre também cansa (José Gomes Ferreira)

 



Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...

José Gomes Ferreira

(José Gomes Ferreira, 1900-1985)



"Na noite de 8 de Maio de 1931, num segundo andar da Rua Marquês de Fronteira, encontrei, finalmente, a expressão autêntica do poeta autêntico, há tanto procurada. À terceira tentativa, para uma série de poesias que eu intitulava Poemas de Reincidência, escrevi dum jacto e quase sem emendas o poema 'Viver sempre também cansa'. Mostrei-o ao Carlos Queiroz, então meu amigo de todos os dias, que, sem me consultar (e se consultasse daria logo o meu consentimento, claro), o enviou a João Gaspar Simões. Pouco depois aparecia na Presença. E assim entrei no âmbito da chamada Poesia Modernista. A propósito, devo dizer que nunca fiz parte do grupo presencista. Como nunca pertenci a qualquer grupo saudosista . Ou à Seara Nova. Voltemos à noite de 8 de Maio de 1931 e à poesia de 'Viver sempre também cansa', onde já havia - coisa insólita na época! - uma referência a Mussolini...Desde então senti que surgia em mim a expressão do poeta verdadeiro. E para marcar bem, para separar bem o novo do antigo poeta, acrescentei sub-repticiamente ao Gomes Ferreira, com que assinara os 'Lírios do Monte' e as duas edições de 'Longe', o meu nome próprio: José! Passei a bagatela, reputo eu de valor psicológico importantíssimo. E, assim, num novelo terrível de ganhar a vida com artigos diversos, crónicas anedóticas, contos e contecos, anúncios das cintas Pompadour, publicidade, traduções de fitas, etc., iniciei a minha carreira de poeta, a que mais tarde chamei de poeta militante." 

(Lido em Absorto)





quinta-feira, 7 de maio de 2015

Porque nós somos a geração à rasca (João André)

Fotografia de Francisco Osorio


Porque nós somos a geração à rasca

Os mais velhos, os nossos pais, não se ficaram apenas pela vulgaridade de nos chamar um nome. Não. Classificaram-nos. Catalogaram-nos. Denominaram-nos: "Geração rasca" 

Não nos lembramos do teu nome. Ainda bem. Dos fracos não reza a história. Ou então é apenas a nossa memória, selectiva, a querer resguardar-nos de quem, realmente, não interessa. Basta-nos o tema, muito obrigado. Porque nós somos a geração rasca.

Ou assim nos epitetaram quando, em Mil Novecentos e Noventa e Quatro, os mais velhos, os nossos pais, os que já lá estavam em lugares de topo, bem remunerados e bem presenteados, com carro, com "chauffeur", com regalias e tudo, sentiram na nossa geração uma ameaça ao modo de vida por si reclamado à custa da nossa fome, da nossa precariedade, da nossa esperança e do nosso futuro.

O erro foi crasso. Não só por o conflito geracional ser tão velho como a humanidade em si, mas porque em países ditos civilizados tais questiúnculas não acontecem, já que a premissa é só uma e fundamental: na prosperidade comum, o bem de todos. Mas em Portugal não. Em Mil Novecentos e Noventa e Quatro estávamos a aprender o que custa a liberdade, desta feita não à volta da fogueira, mas no meio das ruas, a atear outras fogueiras e outros fogos contra as Provas Globais de Acesso e as propinas do ensino universitário, instrumentos cujo único intuito consistia em serrar as pernas aos mais jovens e refrear toda e qualquer possibilidade de ascensão social. O princípio do fim, portanto.

Sem as ansiadas notas de acesso à universidade ou os meios para financiar tais cursos não mais seria possível sonhar, viajar ou casar, viver, para sempre condenados aos míseros salários mínimos, salários mínimos esses responsáveis pelo enriquecimento de uma nação inteira, mas nem por isso o seu povo.

A história, e os anos vindouros, vieram apenas confirmar tais receios (e ter emprego já é bom, esqueçam lá os contratos, porque hoje somos todos colaboradores: tão bom! Tão bom ter só pão à mesa!). Incomodados com tal alarido nas ruas por parte de milhares de jovens andrajosos mais uns quantos rabos à mostra (onde se liam as palavras "não pago", à razão de uma letra por nádega), os mais velhos, os nossos pais, não se ficaram apenas pela vulgaridade de nos chamar um nome. Não. Classificaram-nos. Catalogaram-nos. Denominaram-nos: "Geração rasca".

E rasca ficou, como se nos cuspissem no chão. Entretanto passaram vinte anos. E nós não nos esquecemos. Não nos esquecemos do que pagámos pelos nossos cursos, não nos esquecemos do desemprego que procedeu os nossos cursos, nem tão pouco nos esquecemos dos tachos, da corrupção e da emigração, emigração essa feita sempre sob o signo de não sermos suficientemente bons para podermos cá ficar, em casa, junto de quem mais amamos.

"Guess what"? Lá fora, não somos rascas, e lá fora não só acreditam em nós, mas apostam em nós, dão-nos trabalho e contratos, condições, casa e casamento, uma vida, um lugar ao sol e um futuro, e lá fora já não somos mais o vosso cuspo no chão. F...ram-nos a vida, e por tal bem que tivemos de sair do país.

Por isso, não nos esquecemos: não nos esquecemos de vos esquecer uma vez chegada a vossa hora. Sós, hão-de morrer sós, e quando já cá não estiverem apagaremos os vossos nomes das paredes, das ruas e das histórias: apagaremos os vossos nomes da memória. Como aliás já fizemos com este senhor que se lembrou de nos insultar, já lá vão mais de vinte anos (Vicente qualquer coisa?).


João André
(29/04/2015 )

Publicado em P3 - Cultura/Actualidade - Público


V. outra mensagem publicada originalmente no blogue Assobio Rebelde: "Geração à rasca - a nossa culpa"




Artigos no diário Público com tag emigração



segunda-feira, 4 de maio de 2015

Mataram a tuna (Manuel da Fonseca)




MATARAM A TUNA

Nos Domingos antigos do bibe e pião
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve.
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.

Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar...)
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!

Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha
parecia até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.

Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!
Meus companheiros antigos do bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretarias do comércio.
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita
despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!

Manuel da Fonseca


Manuel da Fonseca (Santiago do Cacém, 1911 — Lisboa, 1993) em Vidas Lusófonas.



V. Letras in.verso e re.verso