terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Manuel Bandeira - Rondó de Colombina



RONDÓ DE COLOMBINA

De Colombina o infantil borzeguim
Pierrot aperta a chorar de saudade.
O sonho passou. Traz magoado o rim,
Magoada a cabeça exposta à umidade.

Lavou o orvalho o alvaiade e o carmim.
A alva desponta. Dói-lhe a claridade
Nos olhos tristes. Que é dela?… Arlequim
Levou-a! e dobra o desejo à maldade
De Colombina.

O seu desencanto não tem um fim.
Pobre Pierrot! Não lhe queiras assim.
Que são teus amores?… — Ingenuidade
E o gosto de buscar a própria dor.
Ela é de dois?… Pois aceita a metade!
Que essa metade é talvez todo o amor
De Colombina…

Manuel Bandeira


Carnaval (1919)




(Fotografia de Michelle Rolim - Colombina, 2013)



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Judith Teixeira - "Asa negra que esvoaça......"



Asa negra que esvoaça...
Negros dias ensombrados!
Roubaram-me toda a graça
aos meus olhos macerados!

Nevrótica, fim de raça...
Os meus nervos delicados
vão sucumbindo à desgraça
dos tristes degenerados!

Trago nos nervos a morte!
Sou uma sombra em recorte
de tristeza e de ruína..,

Uivou dentro em mim a dor...
Só lhe perco o som e a cor
em orgias de morfina!

Judith Teixeira
 

(Viseu, 1880 - Lisboa, 1959) 




(Fotografía de Emmanuel Rosario - There is no better design than nature itself, 2013)


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Jorge de Lima - O acendedor de lampiões

Fotografia: Museu Afroparanaense




O ACENDEDOR DE LAMPIÕES

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!


Soneto da primeira época de Jorge de Lima (1893 - 1953)


Outro poema dele e dados sobre o autor aqui




quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Jorge de Sena - Balada do roer dos ossos




BALADA DO ROER DOS OSSOS

Roer um osso - humano, se possível,
é o sonho português de sobrevida,
após anos e anos de despirem
com os olhos as mulheres que no Rossio
por diante deles passam e das mãos
movendo-se contínuas pelo bolso
das calças mais viris da cristandade.

Roer um osso - humano, se possível,
de mãe, de pai, de irmã, de tio ou prima,
de amantes ou de esposas, filhos, netos,
ou de inimigos ou de amigos mesmo,
ou do vizinho em frente, ou dum retrato
só visto no jornal, ou criatura
deconhecida inteiramente - um osso.

Roer um osso - humano, se possível,
mas pode ser de vaca ou de carneiro,
ou porco ou gato ou cão ou papagaio,
ou à sexta-feira bacalhau ou peixe
em espinhas esburgadas que recordam
o rosto doce ou monstruoso odiado
na vénia às Excelências brilhantinas.

Roer um osso - humano, se possível,
seja fingido mesmo de borracha
para durar mais tempo que não passa,
ou de cimento pra quebrar-se os dentes
no gozo de moê-lo cuspinhado
(e o pensamento em furibunda mão
que excita ansiosa as impotentes raivas).

Roer um osso - humano, se possível,
é o sonho português de sobrevida.

22 Janeiro 72

Jorge de Sena


Exorcismos (1972)



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Filipa Leal - O peso dos livros

 


O PESO DOS LIVROS

Pensava que os livros não têm peso. Quero dizer, flutuam no entendimento.
Na memória. Ou melhor: equilibram-se porque não são gente.
Não têm noites, não têm insónias. Não têm sono lá dentro.

Pensava que os livros são menos complexos do que nós. Mesmo quando
não temos linha, quando não temos palavra. Mesmo quando
não conseguimos respirar. Quando pensei nisso,
tive uma vaga noção de título.

E um hálito branco a querer ser página.

Filipa Leal


Filipa Leal lê este poema em Lyrikline


(Fotografia de Pedro Ribeiro Simões)