segunda-feira, 24 de maio de 2021

Carlos Queirós - Teatro da Boneca

 

Fotografia de Luca Di Prisco

 

TEATRO DA BONECA

A menina tinha os cabelos louros.
A boneca também.
A menina tinha os olhos castanhos.
Os da boneca eram azuis.
A menina gostava loucamente da boneca
A boneca ninguém sabe se gostava da menina.
Mas a menina morreu.
A boneca ficou.
Agora já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.

E a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A boneca abre as tampas de todas as malas.
A boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A boneca está em toda a parte.
A boneca enche a casa toda.

É preciso esconder a boneca.
É preciso que a boneca desapareça para sempre.
É preciso matar, é preciso enterrar a boneca.
A boneca.

A boneca.


Carlos Queirós



segunda-feira, 17 de maio de 2021

Ruy Cinatti - À memória de António Nobre e de Cesário Verde



À MEMÓRIA DE ANTÓNIO NOBRE E DE CESÁRIO VERDE

Eu comi uma inglesa.
Foi em Sintra. Era feriado.
Com esparregado e essa tinta
mint-sauce. Em português,
molho de hortelã-pimenta
com vinagre. Uma beleza!
Alguma batata frita.
Mas eu quis fetos arbóreos,
musgo das fontes, avenca
e pétalas de camélia,
branca-rósea,
para enfeitar a travessa
e trincar, de quando em quando,
uma pétala na fímbria
das orelhas da inglesa,
dizendo: «O tempo está
tão lindo! Não achas, Daisy?»

«I like Shelley« - dizia ela,
cheirando a colégio d'Oxford.
«Swift Summer into the Autumn flowed...

tem tradição. Vem de Chaucer.»

«Eu também gosto» - eu disse,
paraninfo de Euricides -
«porém prefiro John Keats.
I stood tip-toe
Upon a little hill
tem mais naturalidade.
É como se estivesse aqui.
Quanto ao Byron, tu bem sabes
como ele soube viver Sintra:
A glorious Eden inhabited
by savage Lusitanians.
À sova não me refiro.
Tudo isso é história antiga».
«It's true! É verdade!»
(disseste-o, desmemoriada,
mas reticente...
e dobraste-me a parada)
«Mas não esqueça o que ele sofreu
quando dizer lhe vieram:
Shelley morreu.
- Atravessou o Helesponto
a nado!...
I weep for Adonais...»

«Não, não é.» - contestei eu.
«Isso é do Shelley, dedicado
a Keats.
I weep for Adonais
because he is dead.

Eu choro Adonais
porque morreu.

Não está mal... a tradução,
mas tem razão!
Eu sou português e não
falo com a boca cheia.
Esta mania lusíada
de cuspir no chão é feia.
Nós não vivemos na selva.»

E ela, tola-lograda:
- «Dont be silly. Há o fado!
I like fado. Não gostas!
Tu tens a melena cheia
de brilhantina. You look
almost like a fadista!»

Passei a mão pela testa
e desgrenhei a madeixa,
dizendo: - «Queres morangos,
figos, amoras ou beijos?...»

................................................

«Obrigado, obrigado, Daisy.
Não sei se estás a troçar
ou a brincar...
pulling my leg para ti.
Mas, enfim, vamos passear
até ali.»

(No fundo, o que eu desejava
era mordê-la na boca,
meter-lhe a mão entre os seios,
voar a cavalo nela.)

Foi uma tarde acabada
na relva, sob pinheiros,
chamaecyparis, ulmeiros,
sequóias, abetos, faias
e a cor azul das hortênsias.

Foi sobre a relva orvalhada
pelo frescor de um riacho,
quando o sol obliquava
e em volta era tudo selva,
que eu comi uma pantera
escura, feroz, inglesa,
com o cheiro de violetas
debaixo do meu nariz.

(Fulva, para quem quiser
modas pré-rafaelitas,
a pantera! Tanto faz!
Ou morena. Convenção
como convém a uma inglesa
convencional, de ocasião.)

E quando nos despedimos
- era noite, havia estrelas -
disseste com essa fleuma
que tão mal me fica a mim:
- «I'll see you latter. Do come.
Vem amanhã tomar chá.
Eu gostar muito de ti.»

Loira, era loira a inglesa
que eu comi...
Verde, devia dizer.
Branca-rósea, uma camélia,
que eu comi, ou que colhi.
Já nem sei...
A savage Lusitanian,
dei-lhe só o que ela quis.
Ou queria...
Com peitinhos de perdiz
e alguma poesia:

The air was cooling
And so very still.

Ruy Cinatti


Memória Descritiva, 1971



quinta-feira, 13 de maio de 2021

Marta Lança - neblina

 


neblina

a porta do café dá para a embaixada de frança quase no cruzamento com a rua da esperança.
uma neblina branca cobre os prédios com um potencial surrealista. Estar calor sem fazer sol tem qualquer coisa de tragicomédia. O telejornal da tarde fecha com uma peça do Sassetti que morreu há pouco na falésia. O piano induz a olhar a rua no seu crescendo de vida - aquele momento em que o fim (de cada um e de todas as coisas) é conscienciosamente anunciado. A velhota passa agarrada à sobrinha, o polícia olha para as botas melancólico, o homem levanta vagarosamente as chávenas das bicas, a rapariga lê o jornal, e nada disto é sereno.

Marta Lança

(No seu blogue Vida Escrita, 13 de maio de 2012)



sábado, 1 de maio de 2021

Ruy Belo - A Margem da Alegria

Robert Grant - Tília, Jardim Botânico da Universidade de Coimbra



quando o mínimo gesto era um gesto criador
e as coisas começavam e o mundo sempre em simples sons se descobria
quando ninguém ainda se movia na periferia da necessidade ou da conveniência
e havia gigantescas tílias que nos davam sombra em troca do cansaço
e a formosura das mulheres se notava até na violência do silêncio
junto às folhas recentes das amigas amoreiras perto de ameixieiras encarnadas
quando as águas do mar eram ainda águas sem medida revolvidas
e não como hoje são domésticas e mansas
quando os homens viviam na intimidade da sensibilidad e dilatavam
as narinas para aspirar profundamente o cheiro do suor
das mulheres quando após o esforço principiava a arrefecer
e todas as palavras eram relativamente novas e caíam como pétalas
e não havia tantas miudas minudências rodeando os corpos

Qando as raparigas punham todo o peso da sua esmagadora juventude
no pé e o pé no pó das antigas estradas a caminho das fontes
onde a água corria pelos vagarosos dias desse tempo


Ruy Belo

Excerto de A margem da alegria (1974)