segunda-feira, 29 de abril de 2019

Estranhos estrangeiros (Caio Fernando Abreu)

Fotografia de Maruan's Travel


Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu azul – daquela não-dor, afinal.

Caio Fernando Abreu

Estranhos estrangeiros (1996)




quinta-feira, 25 de abril de 2019

"E nunca mais a guerra e nunca mais..." (Fernando Assis Pacheco)

Fernando Assis Pacheco (1937 - 1995), soldado em Angola,
com o cão Eusébio (1963)


DURANTE AS PRIMEIRAS HORAS DO 25 DE ABRIL

E nunca mais a guerra e nunca mais
e nunca nunca mais e nunca a guerra
e nunca mais e nunca e nunca mais
e nunca nunca nunca nunca a guerra

Fernando Assis Pacheco

Versos enviados para o Fundão pelo autor, a partir da redacção do jornal República, durante as primeiras horas do 25 de Abril de 1974, há, exactamente, 45 anos. Estão publicados na página nove do Jornal do Fundão de 5 de Maio de 1974.

E foram reencontrados graças ao livro de crónicas radiofónicas “Tenho Cinco Minutos para Contar Uma História”, lançado em 2017 pela Edições Tinta-da-China.


Lido em Senderos da Mão Esquerda, do amigo Luís, a quem agradeço. Partilhamos uma grande devoção por Assis Pacheco e lamentamos não o termos podido conhecer.

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Pela minha parte, acrescento um poema de Assis Pacheco, de um livro publicado em 1972: Catalabanza, Quilolo e Volta.


MONÓLOGO E EXPLICAÇÃO

Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.

Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.

Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.

Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.

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Isto acontece em qualquer guerra: ir e não voltar... António da Conceição Lopes da Silva vai para África com 22 anos e um ano depois, morre em combate.


Fonte: Web Lobão da Beira




A Salgueiro Maia (Sophia de Mello Breyner Andresen)



A SALGUEIRO MAIA

Aquele que na hora da vitória
respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»
como antes dele mas também por ele
Pessoa disse

Sophia de Mello Breyner Andresen



Mulheres do meu país (Maria Teresa Horta)


MULHERES DO MEU PAÍS

Deu-nos Abril
o gesto e a palavra

fala de nós
por dentro da raiz

Mulheres
quebrámos as grandes barricadas
dizendo: igualdade
a quem ouvir nos quis

E assim continuamos
de mãos dadas

O povo somos:
mulheres do meu país

Maria Teresa Hortain Mulheres de Abril
Editorial Caminho



Maria Teresa Horta (Lisboa, 20 de maio de 1937) é uma escritora, jornalista e poetisa portuguesa. Ler na Wikipédia.

Maria Teresa Horta em Portal da Literatura



terça-feira, 23 de abril de 2019

Os livros, de M. A. Pina, para o Dia do Livro


Já foi publicado aqui este poema de Manuel António Pina, mas não faz mal voltar a ler e, ainda por cima, ouvimo-lo nas vozes de Maria do Rosário Pedreira, Fernando Alvim, Manuela de Melo e valter hugo mãe.


OS LIVROS

É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo ‘eu’ entre nós e nós?


La força dels mots, fotografia de Albert de la Hoz


Os livros que nunca lemos (Manuel António Pina)

Fotografía de Amélia Monteiro


OS LIVROS QUE NUNCA LEMOS

Não é difícil imaginar que Umberto Eco tenha muitos livros. E que, se improvavelmente viver num T3, decerto terá, como muitos de nós, estantes no hall, nos corredores, nos quartos, na sala de jantar.

Já não me lembro onde conta Eco a história de uma senhora que o visitou e, surpresa com tanta “livralhada”, lhe perguntou: «O Sr. Professor já leu estes livros todos?». O Sr. Professor ter-lhe-á respondido (cito de cor): «Não, estes chegaram só ontem, são para ler até ao fim de semana. Na segunda-feira vem o camião da Faculdade para os levar e trazer novo carregamento.»

Eco pretende ilustrar o óbvio: que os livros não servem apenas para ser lidos, mas também para não ser lidos e ter em casa para ler um dia que nunca chegará. Sugere, a propósito, uma irónica e bizarra teoria mágica: tocando os nossos livros que não lemos, ao procurar outros ou a arrumá-los, algo da sua natureza parece “passar” para nós… através dos dedos. E quem sabe se não estará certo? Como ele, também eu conheço confusamente cada um dos livros que nunca li, mas acho que a coisa tem mais que ver com o coração do que com os dedos.

Há uns meses mandei pintar a casa. Ora, para pintar as paredes com estantes, os pintores retiraram delas todos os livros (todos não, pois quando, em pânico, descobri o que acontecera, instruí-os para que, a partir daí, pintassem apenas as paredes sem estantes) voltando, depois, a colocá-los no lugar. Eu disse “no lugar”? Deveria ter dito apenas “voltando a colocá-los” pois o lugar perdeu-se para sempre. Agora, quando procuro um livro, onde antes o encontrava de olhos fechados, dou sempre com outro.

É assim que venho assustadamente descobrindo a imensa quantidade de livros que tenho em casa, alguns deles desde a juventude, e que nunca li nem provavelmente lerei. Assim, quando um dia destes, fui ao sítio onde sempre estiveram as Poesias Completas de Frei Luis de Léon, dei com O Capital de Karl Marx; e quando procurava as Gramáticas da Criação, encontrei um pouco de tudo, lido e não lido, das Folhas Caídas a Godel, Escher e Bach e de A Cantora Careca ao Memorial do Convento. Menos o livro de Steiner, que tive de voltar a comprar.

Quando um dia, numa entrevista, perguntaram a Borges quem era ele, respondeu que era todos os livros que lera. Eu quero crer que somos não só os livros que lemos mas igualmente os que não lemos. Cavaco Silva, por exemplo, é certamente não só os livros de economia que leu mas também o provável facto, dedutível de umas célebres declarações suas, de nunca ter lido Os Lusíadas. Já o caso de Passos Coelho é mais complexo, pois, além de ser os livros que terá lido e os que não leu, é igualmente os livros, como A Fenomenologia do Ser, de Sartre, que leu mas que o seu autor nunca escreveu.

E do mesmo modo, eu serei tanto a Ilíada, Os Cantos, The Waste Land, ou até o Joanica- Puff, que li vezes sem conta, como o facto de nunca ter lido O Capital ou de só ter lido menos de metade do Ulysses; a Viagem ao Fim da Noite e não A Montanha Mágica; a Torah, boa parte do Zohar, o Tao-te-King, a Bíblia e não o Corão; Assim falava Zaratrustra e A Gaia Ciência e não (infeliz de mim que já o comecei inutilmente várias vezes) o Tratactus; Borges praticamente todo e Beckett (deveria ter vergonha de confessá-lo) muito pouco; Jules Laforgue e Charles Cros mais do que (outra confissão vergonhosa) Rimbaud; e por aí fora que a biblioteca é vasta e a vida é breve.

Às vezes pergunto-me quem raio seria eu se, em vez de ter lido os livros que li, tivesse antes lido os que não li. Provavelmente cruzar-me-ia comigo e não me reconheceria.

Manuel António Pina

(Notícias Magazine, 11 de setembro de 2011)



quarta-feira, 10 de abril de 2019

A minha avó Margarida (Isabela Figueiredo)

Isabela Figueiredo, fotografada por Nuno Ferreira Santos


A minha avó Margarida

Hoje, dia 10 de abril, fosse a minha avó paterna viva e faria 113 anos. Desconheço as datas de nascimento dos meus restantes avós, não podendo celebrá-las. Não acalento qualquer estima particular pela celebração de aniversários e tenho até má memória para datas, combinações de números e nomes. Contudo, recordar as datas relacionadas com a vida dos meus antecessores é a minha forma de me rebelar contra a morte, e pior, o esquecimento.

Não senti grande amor pela minha avó, mulher já afetada pela doença de Alzheimer quando a conheci, mas admirei essa mulher resistente e teimosa, um espírito compassivo, habituado à solidão e ao sacrifício. Uma santa na sua cela anónima. Era quase cega e trabalhava como se visse. Amava os seus pombos, bem como todos os animais que lhe surgissem ao caminho. Fazia um grande esforço para ler, com as folhas do jornal quase coladas ao globo ocular, porque saber ler e escrever era um luxo, o seu único luxo. Não tinha vícios. Rezava. Cantava. Pensava. A sua grande dor não foi o filho ter-lhe fugido para África nem ser pobre, mas ter de vender pombos, rolas e galinhas que os outros depois matavam para comer. Isso doía-lhe. E a mim também. Poupou uma fortuna em notas de vinte escudos que guardou numa lata enterrada na capoeira nas galinhas. Quando descobrimos a herança, décadas mais tarde - ainda era viva, mas já não sabia quem era - as notas enroladas transformaram-se em pó no momento em que foram tocadas. Ficámos com as mãos cheias de farinha de papel, pensando, cada um à sua maneira, que não é grande ideia adiar a felicidade.

Os meus restantes avós tiveram outras netas que poderão manter viva a sua memória. Esta não. Não há ninguém que possa dizer "chamou-se Margarida de Almeida e nasceu a 10 de abril de 1903, no lugar da Columbeira, na Roliça, filha de Maria Vitória e de pai cujo nome a lei da morte já soterrou." Portanto, cá estou eu cumprindo a minha revolta, e conjurando contra o nada que um dia me levará. Feliz aniversário, avó Margarida. Lembro-me de ti.

Isabela Figueiredo


No seu blogue Novo Mundo  (11 de abril de 2016)


segunda-feira, 8 de abril de 2019

Ode à Paz (Natália Correia)

Fotografia de Lucas Landau


ODE À PAZ

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego, dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História, deixa passar a Vida!

Natália Correia


sexta-feira, 5 de abril de 2019

Oh as casas as casas as casas (Ruy Belo)

Fotografia de César Augusto V.R.


OH AS CASAS AS CASAS AS CASAS

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala para sala

As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas

Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o seu mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo

Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós

Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo


Homem de Palavra[s] (1970)



segunda-feira, 1 de abril de 2019

"Pai, dizem-me que ainda te chamo..." (Maria do Rosário Pedreira)

Fotografia de Aurélio Vasques

No próximo dia 4 de abril, Maria do Rosário Pedreira lerá os seus versos na Aula de Poesía Enrique Díez-Canedo e será apresentada por alunos da nossa escola.


Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí

nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me

depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem

que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.

Maria do Rosário Pedreira

Nenhum Nome Depois (2004)


Aqui, "Mãe, eu quero ir-me embora..."