segunda-feira, 26 de março de 2012

A medida de espanha (Ruy Belo)

Fotografia de Ramón Durán


A MEDIDA DE ESPANHA

Tenho mudado de cidades algumas vezes
e o meu passado é todo esquecimento
A noite chega precedida pela sombra
e é sempre em vão que repudio a noite
Eu morro qualquer dia e pouco sei da vida
a vida a simples vida é violenta

Mas quando a primavera em cabelo chega
sinto-me invulnerável e começo
É formidável março quando se aproxima
a prometer no passo um integral verão
Sou todo deste tempo e são meus estes dias
Eu nada sou mas o verão existe
Canta meu coração
Esta é a medida de espanha
ó vida minha vida estranha

Ruy Belo


Do seu livro Homem de Palavra[s] , publicado em 1970.


Nota. espanha (sic)



segunda-feira, 19 de março de 2012

"O dia em que nasci meu pai cantava" (Fernando Assis Pacheco)


O primeiro verso deste belo soneto de Fernando Assis Pacheco faz-nos recordar o camoniano "O dia em que nasci morra e pereça", que podem ler em baixo, mas é bem diferente.


O dia em que nasci meu pai cantava
versos que inventam os pastores do monte
com palavras de lã fiada fina
cordeiro lírio neve tojo fonte

esta é uma velha história de família
para dizer como ele e eu chegámos
à raiz mais profunda do afecto
da qual nunca jamais nos separámos

nem Deus feito menino teve um pai
que o abraçasse e lhe cantasse assim
desde a primeira hora até ao fim

fui vê-lo ao hospital quando morria
olhos parados num sorriso leve
tojo cordeiro lírio fonte neve

Lisboa, 28-XII-93

Do seu livro Respiração Assistida, publicado pela Assírio & Alvim, 2003.




O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!


Luís de Camões


segunda-feira, 12 de março de 2012

Lugares comuns dos tempos de hoje (José Pacheco Pereira)



1. “VIVEMOS ACIMA DAS NOSSAS POSSES” – A frase podia ser dita com utilidade no passado, há um ano atrás. Como acontece com muitas frases certeiras do passado, ditas “por oposição”, “contra” o despesismo, tinham então todo o sentido. Hoje, as mesmas palavras servem para outro tipo de usos. A frase está envenenada pelo seu uso moralista, pelo seu uso como justificação e legitimação para todo o “ajustamento”. As medidas de austeridade eram bem mais aceitáveis se não viessem coladas a lições de moral. Ao dar ao “vivemos acima das nossas posses” um significado de culpabilização, o alvo muda. Deixa de ser os governantes e políticos, para passar a ser as pessoas comuns. As jovens famílias que se endividaram para comprar casa no início da vida estavam a fazer uma opção racional sólida, visto que o bloqueio legislativo da lei das rendas fazia com que não houvesse mercado de arrendamento. E acaso esperariam que um funcionário que recebia 10, se oferecesse para só aceitar 5? E para quê poupar quando era mais barato gastar? Digam-me qual a sociedade em que alguém racionalmente faz outras opções para a sua vida, que eu gostava de conhecê-la. É para quem tinha poder e decidiu, em tempos de abundância, ser gastador e imprevidente, é a esses que a frase devia ser dirigida, porque para eles, racionalmente, as decisões deviam ter sido outras. Por isso, a frase hoje destina-se a culpar todos, para depois penalizar apenas alguns. As excepções só confirmam a regra. 


2. A CRISE TEM UM EFEITO CATÁRTICO, “ESCOLHE” OS MELHORES, DEIXA PARA TRÁS OS PIORES” – Esta variante de darwinismo social está longe de ser demonstrada, bem pelo contrário. Os que “lucram” com a crise, os que a crise “escolhe” para serem os “melhores” são por regra aqueles que estão disponíveis para as maiores malfeitorias. Os que exploram várias formas de usura, os que compram bens por uma ínfima parte do seu preço devido ao estado de desespero dos que precisam de os vender, os que se aproveitam da nova legislação para ajustar contas antigas nas suas empresas, os que têm agora caminho aberto para um lucro fácil, os chefes que usam o poder que vem do medo do desemprego, da despromoção, da "mobilidade" forçada, para serem ainda mais arbitrários e prepotentes, os que se dobram diante de chefes e patrões para não irem para os “disponíveis” ou para o desemprego ou para a nova fábrica que abre ao lado da outra que faliu, com menos operários e salários mais baixos e menos direitos, os que transitam para a economia paralela para continuar a fugir aos impostos, os que encontram novas oportunidades para corrupção, alta, média e baixa. As excepções só confirmam a regra, mas ainda está por demonstrar que um ambiente de "salve-se quem puder" serve para "escolher os melhores".


3. “A CRISE GERA OPORTUNIDADES” – de um modo geral é falso: a crise destrói mais oportunidades do que as que gera. A regra é a crise reduzir muito significativamente as oportunidades disponíveis a cada um – de emprego, de ganhar dinheiro, de viver como se quer, de ter melhor vida que a dos pais, de se poder escolher a profissão para que se tem mais aptidão, etc.. As excepções só confirmam a regra.

No blogue Abrupto (© José Pacheco Pereira)



segunda-feira, 5 de março de 2012

O homem que anotava a cor dos cabelos (hmbf)

Fotografia de Lina Cepero


O HOMEM QUE ANOTAVA A COR DOS CABELOS

O que te falta para seres feliz? – perguntou a si próprio o homem que anotava a cor dos cabelos das pessoas com quem se cruzava. Tinha mulher e filhos, viviam numa casa modesta rodeados de monotonia, com o pó das estantes domesticado e uma ausência de paixão que salva os corpos do fracasso. Que mais poderia desejar? No entanto, sentia-se só, talvez por ninguém à sua volta querer saber da sua solidão, por toda a gente olhá-lo como se fosse normal, natural, passar o tempo todo a anotar a cor dos cabelos das pessoas. Não conseguia dialogar porque sentia não haver quem quer que fosse à altura do seu desespero, preferia sentar-se na varanda, como quem caça lufadas de ar fresco, a anotar a cor dos cabelos das pessoas. Um dia disse: vou-me embora. E toda a gente chorou, acorrentaram-no antes que ele pudesse dar o primeiro passo na direcção do voo, armadilharam-lhe as asas com o desprendimento dos criminosos que cometem crimes sem consciência de que estão a cometê-los. Ou então disfarçavam a tortura, fingindo nada perceberem, nada notarem, nada sentirem de anormal no homem que passava a vida a anotar a cor dos cabelos das pessoas com quem se cruzava. Não havia paixão naquele homem, apenas desistência. Há muito deixara de sentir o coração, limitava-se a respirar, mal, e a coçar a cabeça sempre que lhe faziam perguntas sobre o estado do tempo. Não se recordava da última vez que dissera quero ou amo-te ou faço, apenas de ter apanhado, em tempos, boleia para o destino e de ter falhado por escassos segundos o encontro que lhe mudaria a vida. Há na existência de um homem circunstâncias que tudo determinam, inclusive o tom da voz em silêncio, a degeneração da coluna numa curva abismal, o suor nas palmas das mãos sempre que se aproximam dois corpos. Talvez fosse uma vítima do amor que os outros lhe dedicavam, embora não conseguisse sentir esse amor senão como uma barreira, uma espécie de muro que o separava de si próprio e da afirmação da sua personalidade. Porque para o homem que passava a vida a anotar a cor dos cabelos das pessoas com quem se cruzava o amor era um acto falhado, a esperança era uma ilusão e o tempo era um mal ao qual todos estamos sujeitos. Então perguntava-se: O que te falta para seres feliz? Não conseguia pensar em si na primeira pessoa, por isso questionava-se como se estivesse a falar com terceiros. Falta-me não ter consciência do tempo. – pensou. Porque cada segundo perdido a fazer o que não quero e a agir contra a minha vontade é, sem dúvida, uma vida inteira desperdiçada. Circunstâncias há que tudo determinam, o homem que passava a vida a anotar a cor dos cabelos das pessoas sabia que nada podia contra as evidências: falhara, era escravo da sua inabilidade para fugir, da sua incapacidade de agir, da sua total inoperância, era escravo de se deixar escravizar. E então sentava-se na varanda a anotar a cor dos cabelos das pessoas que com ele se cruzavam, e imaginava por debaixo dessas cores o tom grisalho da velhice e vingava-se do estado em que se encontrava pensando, de si para si, que vítimas e carrascos acabarão todos por desaparecer. Mas nada disto o confortava, e não podia conformar-se com a possibilidade de vir a desaparecer sem nunca ter sequer aparecido, sem nunca ter podido dizer quero ou amo-te ou faço sem que isso implicasse o fim do mundo com suas imponderáveis consequências (sic).


Lido no blogue antologia do esquecimento - hmbf 

quinta-feira, 1 de março de 2012

Uns versos de Adriano em versão portuguesa

 O imperador Adriano

Dizem que o imperador romano Adriano escreveu estes versos no seu leito de morte. A primeira versão em português é de Jorge de Sena e a segunda, de David Mourão-Ferreira.


Versos originais em latim:

Animula, vagula, blandula,
Hospes comesque corporis,
Quae nunc habibis in loca
Pallidula, rigida, nudula,
Nec, ut soles, dabis iocos.


Alminha, vagabunda, blandiciosa,
Do corpo a moradora e companheira,
A que lugares tu te vais agora,
Tão palida, tão rígida, tão nua?
Nem mais às graças te darás de outrora.


Alma minha, brandinha, vagabunda,
do corpo acompanhante e moradora,
a que paragens vais subir agora,
assim lívida, e rígida, e tão nua?
Deixarás de gozar o que hoje gozas.




Públio Élio Trajano Adriano (em latim Publius Aelius Traianus Hadrianus; 24 de janeiro de 76 — 10 de julho de 138), mais conhecido apenas como Adriano, foi imperador romano de 117 a 138. Pertence à dinastia dos Antoninos, sendo considerado um dos chamados "cinco bons imperadores". 

Nascido em Itálica na atual Espanha, ou em Roma, na Itália, Adriano era descendente de colonos romanos domiciliados no Sul da Hispânia e primo de Trajano.