quarta-feira, 19 de junho de 2013

A Língua Portuguesa (Olavo Bilac)




A Língua Portuguesa 

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: «Meu filho!»
E em que Camões chorou, no exílio amargo
O génio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac  


Olavo Bilac (Rio de Janeiro, 1865 - 1918) foi um jornalista e poeta brasileiro, membro fundador da Academia Brasileira de Letras.



Análise do poema



segunda-feira, 17 de junho de 2013

Arranja-me uma moedinha esperta, senhor! (Fernando Peixeiro)




Arranja-me uma moedinha esperta, senhor!

Senhor Neves, como estás?

O começo desta carta também não é mero acaso. E devo desde já dar-te uma grande alegria, porque essas nos dias que correm são tão escassas que quando temos uma devemos logo partilhá-la. Pois aqui de Cabo Verde confirmo. Portugal deve ser mesmo país de muitos doutores e engenheiros e pessoas assim importantes. Ou então Cabo Verde é tão pobre, tão pobre, que não pode ainda fazer o “upgrade” de cada cidadão.

Eu não sei, mas se calhar o engenheiro primeiro-ministro de Portugal ainda não se lembrou de um slogan do género “um português, um doutor” e de prometer até final da legislatura que seremos dez milhões de doutores e engenheiros. Promessa fácil de cumprir, se tomar como certas as tuas palavras.

Pois aqui não. O chefe do Governo é conhecido por “primeiro-ministro” ou então “José Maria Neves”. É certo que alguma oposição e algumas pessoas menos contentes com a sua política chamam-lhe outros nomes. Mas esses não os vou reproduzir, que isto é uma carta de gente séria.

Mas quando toca ao resto do Governo, ou à oposição, ou a presidentes de empresas, parece-me ser o mesmo. São ministros ou presidentes disto ou daquilo ou são tratados pelo nome, com o respeito, naturalmente, que o cargo merece.

A mim, estrangeiro branco e por aqui sinónimo de ter dinheiro, além de tentar também ser delicado, ainda nunca ninguém me chamou de doutor.

E mesmo quando me estão a cravar uma moeda, quando muito tratam-me por senhor. Senhor é, de resto, a palavra mais usada como sinónimo de respeito, ainda que a coisa por vezes descambe logo a seguir.

“Senhor Fernando, como estás?”. Assim. Ou então num tom mais informal ainda: “Ó campeão, não se arranja aí uma moedinha esperta?”.

A outro nível, dos departamentos do Governo ou de outras instituições, alterna-se entre o tratamento por “tu” ou por “você”, com ou sem “senhor”.

Mas sempre com a maior delicadeza. Os cabo-verdianos nem sempre são simpáticos, mas são muito educados. E são-o assim naturalmente, não te estão a chamar de “senhor” porque querem alguma coisa de ti. Como também não te agradecem efusivamente se vais visitar uma criança que acabou de nascer e lhe levas um presente.

Mas reconhecem. Sem serem expansivos ficam teus amigos ainda tu não percebeste porquê. E assim, sem perceberes porquê, já estás em casa deles, a comer à mesa com eles, a rir uma tarde inteira com eles, a ir à praia, a combinar fins-de-semana… e eles na tua casa a vasculharem-te o frigorifico à procura de alguma coisa que se coma ou se beba, agarrados ao teu comando da televisão ou a fazer apreciações criticas aos quadros que tens na parede.

Ou seja, caro amigo, os cabo-verdianos não são doutores nem engenheiros, nem arquitectos, mas são uns senhores. Estás a entender senhor?


Publicado por Fernando Peixeiro em Cabo Verde (23-março-2007)


 Atlântico expresso Um mar de palavras e memórias
 
 
 


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Tenho tanto sentimento (Fernando Pessoa)



O poeta português Fernando Pessoa nasceu a 13 de junho de 1888.


Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

Fernando Pessoa


Vale a pena visitar a  Casa Fernando Pessoa



quarta-feira, 12 de junho de 2013

"O escritor deve ser essencialmente um subversivo..." (Rubem Fonseca)·



O escritor deve ser essencialmente um subversivo e a sua linguagem não pode ser nem a mistificatória, do político (e do educador), nem a repressiva, do governante. A nossa linguagem deve ser a do não conformismo, da não falsidade, da não opressão. Não queremos dar ordem ao caos, como supõem alguns teóricos. E nem mesmo tornar o caos compreensível. Duvidamos de tudo sempre, inclusive da lógica. Escritor tem que ser cético. Tem que ser contra a moral e os bons costumes. 

Rubem Fonseca



Rubem Fonseca em Releituras



segunda-feira, 10 de junho de 2013

10 de Junho - Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Fotografia de Maria Augusta


ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais m´espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado.
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que só para mim
Anda o mundo concertado

Luís de Camões



Camões em Vidas lusófonas


quinta-feira, 6 de junho de 2013

Em Creta, com o Minotauro (Jorge de Sena)




EM CRETA, COM O MINOTAURO

 I

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.


II

O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.


III

É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.


IV

Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.


V

Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.


Jorge de Sena