quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Unamuno (Miguel Torga)


O escritor espanhol Miguel de Unamuno morreu a 31 de dezembro de 1936 em Salamanca. Recordamo-lo aqui com este poema de Miguel Torga


UNAMUNO

D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel
Que voavam da Ibéria ao fim do mundo…
Unamuno Terceiro!
(Foi o Cid o primeiro,
D. Quixote o segundo.)

Amante duma outra Dulcineia,
Ilusória, também
(Pátria, mãe,
Ideia
E namorada),
Era seu defensor quando ninguém
Lhe defendia a honra ameaçada!

Chamado pelo aceno da miragem,
Deixava o Escorial onde vivia,
E subia, subia,
A requestar na carne da paisagem
A alma que, zeloso, protegia.

Depois, correspondido,
Voltava à cela desse nosso lar
Por Filipe Segundo construído
Com granito da fé peninsular.

E falava com Deus em castelhano.
Contava-lhe a patética agonia
Dum espírito católico, romano,
Dentro dum corpo quente de heresia.

Até que a madrugada o acordava
Da noite tumular.
E lá ia de novo o cavaleiro andante
Desafiar
Cada torvo gigante
Que impedia o delírio de passar.

Unamuno Terceiro!
Morreu louco.
O seu amor, por ser demais, foi pouco
Para rasgar o ventre da Donzela.
D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel,
E guardava a mais pura na lapela.

Miguel Torga


Do seu livro Poemas Ibéricos (1ªedição em 1965)




terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Momento (Jorge Barbosa)


Vista aérea de Praia, em Cabo Verde, cidade natal de Jorge Barbosa (Wikipedia)




MOMENTO

Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?

Não a do tédio
desesperante e doentia,
Não a nostálgica
nem a cismadora.

Esta nossa
fininha melancolia
que vem não sei de onde.
Um pouco talvez
das horas solitárias
passando sobre a ilha
ou da música
do mar defronte
entoando
uma canção rumorosa
musicada com os ecos do mundo.

Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?
a que suspende inesperadamente
um riso começado
e deixa um travor de repente
no meio da nossa alegria
dentro do nosso coração,
a que traz à nossa conversa
qualquer palavra triste sem motivo?

Melancolia que não existe quase
porque é um instante apenas
um momento qualquer.

Jorge Barbosa 

Jorge Barbosa (Praia/Cabo Verde, 1902 - Cova da Piedade/Almada, 1971) foi um escritor cabo–verdiano.

Colaborou em várias revistas e jornais portugueses e cabo–verdianos. A publicação de Arquipélago em 1935 foi um marco para o nascimento da poesia cabo-verdiana, e por isso é considerado o pioneiro da moderna poesia deste País, onde os problemas sociais e políticos passaram a constituir uma das grandes temáticas do escritor.

Jorge Barbosa escreveu ainda Ambiente (1941), Caderno de um Ilhéu (1955, Prémio Camilo Pessanha) e, na altura os proibidos, mas editados mais recentemente, Meio Milénio, Júbilo e Panfletário.


Mais poemas e dados sobre o autor em Lusofonia.







sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A consoada (Carlos Lopes)




A consoada

As férias foram bem negociadas. Não é que ele propriamente dito precisasse de as negociar, como qualquer chefe. Felizmente tinha um emprego que lhe dava uma certa autonomia, que por acaso só servia para aumentar a carga horária, visto ser muito consciente das suas responsabilidades. Mas, negociadas foram, porque, dos cinco companheiros de viagem, três não beneficiavam dessas mesmas regalias e os outros dois, miúdos, dependiam do calendário escolar. Lá se foram todos, estrada fora, a enfrentar um caminho que se sabia difícil, porque as ligações rodoviárias entre Bissau e o Senegal não são fáceis.Ultrapassado o quilómetro 10, lá apareceu a primeira barreira de controlo. Um fiozinho esticado no meio da estrada, invisível mesmo, para quem não soubesse que aí se encontrava um vestígio arcaico do tempo da guerra. Uma casa rudimentar, coberta com folhas de zinco, com a tinta já a pedir nova lavagem, vários indivíduos com fardas multicolores desbotadas, camisa desapertada até meio do peito, sentados, olhando para o colega, mais à frente, que na berma da estrada franzia os olhos com o ar arrogante, tentando demonstrar o seu poder, que neste caso específico era o de fazer parar toda a gente com a desculpa de que se tratava de controlo alfandegário. Normalmente passavam todos os que deveriam ser controlados e eram revistados os pobres coitados. Depois foi Djugudul e quase sem parar depressa chegaram a Farim, a tempo de apanhar a jangada no lado de cá. Isto de jangadas é outra negociação. Quando se chega à margem, encosta-se o carro à direita, atrás dos que o precedem. Espera-se com impaciência e, quando a barcaça atraca, põe-se imediatamente o motor a trabalhar para evitar qualquer ultrapassagem indesejada. Há sempre uns senhores espertos, normalmente personalidades políticas, que tentam mostrar o seu estatuto não respeitando as filas. Depois, é a gincana, entre os passageiros a pé, a rampa que nunca fica presa e que com isso faz perder tempo. O motor da jangada que vai lutando contra a maré, e os sinaleiros voluntários que vão indicando para onde se devem mexer as rodas. Tudo isto no meio de um lodaçal e água a chapinar, quando a rampa se distancia mais do que o normal. As aventuras pareciam terminadas pelo menos até à fronteira do Senegal. Aí viveu-se uma outra experiência rotineira de controlo corriqueiro e corrupção amargurada. Se não fosse verdade, seria surrealista. Depois, descanso merecido em hotéis que até têm água quente, comida francesa, piscinas limpas e praias maravilhosas. Mas a negociação das datas obrigava o regresso antes do NatalE no regresso começaram as aventuras, desta feita altamente indesejadas. A primeira má notícia foi a de que a jangada de Farim estava avariada. Mais: avariada na outra margem do rio. Fazia já dois dias que não se observavam travessias. No pontão olhando para a multidão curiosa estavam vários carros de cidadãos urbanos que pareciam perdidos na aldeia adormecida. Uma coisa era certa: não havia como albergar tanta gente em Farim, embora não fossem muitos. Distinguia-se no quadro apocalíptico um Land Cruiser que parecia superequipado, de onde despontavam duas figuras "dandies", impecavelmente trajadas de branco, da cabeça aos pés, ou seja, do chapéu às sapatilhas. O casal, soube-se depois, era belga e estava a fazer uma travessia de África. Por isso, o incómodo da jangada parecia-lhes transponível. Perguntaram qual era o problema e parecia ser a falta de um pistão e óleo. Depressa saíram do armário ambulante os produtos desejados, que calmamente foram levados para a outra margem do rio por uma canoa. E começou a espera: uma, duas horas, e finalmente ouviu-se o ruído da jangada ao longe como que a brotar energia. Também foi sol de pouca dura. Apagou-se o sobressalto e da margem oposta só se moveu a canoa, de regresso com as más notícias. O pistão e o óleo não chegaram para acordar a barcaça moribunda. Com uma calma de fazer inveja, só possível de quem muito amor tem à África e de tudo neste mundo já viu, despontou um sorriso sereno e a demonstração da liderança. Era o belga que, depois de ter contado algumas das suas histórias do deserto, agora pacientemente explicava que a fronteira já tinha fechado, que o sol em breve desapareceria e que a única hipótese seria seguir por terra firme, contornando o rio para o atravessar na sua parte baixa, por caminhos que um seu mapa indicava. Os habitantes de Farim, que partilhavam estes momentos únicos, confirmavam a existência do tal caminho. Existia sim senhor, mas de certeza que por ali não passavam carros há muitos, muitos anos. Para os belgas não havia tempo a perder. Quem quisesse que viesse! Entre dormir ao relento, com miúdos, numa antevéspera de Natal, sem certeza de ter jangada no dia seguinte, e seguir "dandies" determinados que pareciam saber do que falavam, até ele, que era da terra, achou melhor a segunda hipótese.O caminho começou bem, mas depressa chegou a noite, e, como que milagrosamente desapareceu o caminho, mas os belgas sacaram de um potente holofote e continuaram a marcha por palhas altas, no que parecia já ser um caminho sim, mas de bicicleta. Atravessaram-se ribanceiras, pedregulhos e outros atropelos físicos, até mesmo um terreno cultivado. De vez em quando havia uma paragem, para que com o holofote determinasse exactamente por onde continuava esse caminho de bicicleta. Mas os belgas, com os seus dois instrumentos adicionais, o mapa e a bússola, continuavam imperturbados e sem perder o sorriso. Ele sabia-o, porque várias vezes pararam e com toda a graça os belgas ofereciam água gelada e outros brilharetes só possíveis com milagres: um carro diferente de todos os outros. E depressa se saberia que sim, diferente era, porque ele deixou de sentir a sua caixa de velocidades e percebeu que era o fim da linha. De facto, tinha-se partido qualquer coisa. Os miúdos já tinham deixado de resmungar. O cansaço transformou-se em sono. Todos hesitavam entre pensar em tudo o que já se tinha vivido na viagem ou imaginar que o melhor era chegar no dia seguinte a Bissau. Parecia já longínquo este pensamento. E foi com ele na mente que os homens da parada foram amarrando o veículo ferido ao brilhante Land Cruiser. Novas cruzadas, cordas rebentadas, atolanços desesperados, mas sempre energias renovadas para continuar a jornada. Até que 7 horas depois, em plena noite de luar, finalmente desponta um pedaço de estrada em terra batida que, nas circunstâncias vividas, parecia a auto-estrada de Manhattan. Os belgas tinham razão: com o holofote, bússola e mapa chegaram ao caminho de Contuboel.Acordar o pessoal do Centro de Formacção de Contuboel, àquela hora, parecia ser intimidatório, mas, quando o grupo se aproximou, ficou surpreendido com o enorme barulho de um baile que antecipava já o Natal. Felizmente. Conseguiu-se a desejada guarida, para os belgas e tudo. E no dia seguinte, depois de um acordar tardio, o almoço foi arroz branco com cavalas de conserva. Mas os simpáticos do centro ofereceram uma boleia até à cidade próxima de Bafatá para que se pudesse telefonar para Bissau a pedir socorro. Os belgas esses já não foram da companhia das cavalas, com certeza fartos dos dissabores impostos por nacionais pouco conhecedores da geografia local. Foram bem-vindos os reforços: ele viu com prazer o seu Lada creme e não resistiu a regressar a toda a velocidade. E foi depois de Mato-Cão que se matou uma vaca e não um cão. O carro duro como os soviéticos sobreviveu. Escândalo que atraiu os populares: de quem é a vaca? Ninguém conhecia nem a vaca nem o dono, por isso o melhor era transformá-la em presente de Natal. Afinal nessa noite festejar-se-ia o nascimento do Menino Jesus. A sucessão de acontecimentos parecia não ter fim e a viagem de regresso, essa, já durava mais do que 24 horas. Uma vez em Bissau, carro estacionado, novas contadas, chegava a hora do banho e do pequeno descanso em preparação para a consoada. Que consoada tão bem-vinda... Mas o destino ia ser outro. Como se não bastasse tudo o que já tinha acontecido, ouviam-se agora gritos, vindos do quintal, do que parecia ser uma rixa bem agressiva. Corrida, atropelos e descoberta: era um ladrão apanhado pela justiça popular. E que tinha roubado? Um colchão que lhe pertencia. Despiram o ladrão, davam-lhe pontapés. Ele contorcia-se sem defesa, gritando por ajuda. Quem o ajudou? Ele, claro, que depois de tantas viagens estava agora a caminho da casa do ladrão, porque, se o levasse à esquadra, talvez este nunca mais visse Natal. Agora imagine-se o paradoxo de entregar um ladrão em cuecas, espancado e ensanguentado, à mãe do dito cujo, que chorando agradecia a benevolência do roubado. Agora sim, tinha terminado a viagem. Agora sim, viesse a consoada. Só na minha terra mesmo.


Carlos Lopes
(sociólogo guineense)



Publicado no jornal Público (27-2-2000)




quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Navegações VIII (Sophia de Mello Breyner Andresen)




Navegações VIII

Vi as águas vi os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e vi conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice nas neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais

As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri


Sophia de Mello Breyner Andresen


Ouvimos o poema na voz de Maria Barroso


* * * * * * * * * *

O Preste João foi um lendário soberano cristão do Oriente que detinha funções de patriarca e rei, correspondendo, na verdade, ao Imperador da Etiópia. "Preste" é uma corruptela do francês Prêtre, ou seja, padre. Diz-se que era um homem virtuoso e um governante generoso. O reino de Preste João foi objecto de uma busca que instigou a imaginação de gerações de aventureiros, mas que sempre permaneceu fora de seu alcance. 

Continuar a ler na Wikipédia





Por sua vez, a Infopédia diz-nos o seguinte do Preste João :

A lenda do Preste João das Índias é muito antiga, pois já Marco Polo a ela se referia no seu diário de viagens. São vários e muito antigos os testemunhos de que existiria no Oriente um rei cristão nestoriano chamado João, cujo império estaria situado na Ásia, segundo uns, ou em África, segundo outros. Os reis cristãos que combatiam o Islamismo fizeram várias tentativas para contactar este importante aliado no Oriente, mas sem resultados. Em 1486, João Afonso de Aveiro trouxe da costa de Benim uns enviados do rei daqueles terras que levou à presença de D. João II. Estes relataram ao rei português que, a vinte luas da costa, onde hoje é a Etiópia, habitava um rei muito poderoso do qual forneceram muitas informações que levaram os cosmógrafos portugueses a dizer que se tratava do Preste João. D. João II escolheu Afonso de Paiva e Pero da Covilhã, que mandou para África como seus emissários. Chegados ao Cairo, separam-se aqui, seguindo Pero de Covilhã até à Índia. Quando este voltou, soube que o seu companheiro tinha morrido. Pero da Covilhã dirigiu-se então à Abissínia, de onde o rei Naú nunca o deixou sair, dando-lhe o governo de um feudo. Impossibilitado de voltar a Portugal, onde tinha família, Pero da Covilhã fundou uma nova família e teve muitos filhos. Tanto na Índia como depois em África, Pero da Covilhã prestou importantes serviços a Portugal, recolhendo uma série de informações que foram cruciais para a presença dos Portugueses naquelas paragens. Os relatos de Pero da Covilhã foram transmitidos ao padre Francisco Álvares, que com ele se encontrou na Abissínia, e que os deixou escritos para a posteridade quando voltou para Portugal. Ao que parece, Preste João nunca foi encontrado, mas a sua lenda e a vontade de o ter como aliado inspirou durante anos muitos Portugueses e motivou uma série de viagens que foram muito importantes na época dos Descobrimentos.



terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Uma citação de Ferreira Gullar



Somos todos irmãos, não porque dividamos o mesmo teto e a mesma mesa: divisamos a mesma espada, sobre nossa cabeça.

Ferreira Gullar,pseudónimo de José Ribamar Ferreira, é um poeta brasileiro, nascido em 1930.


Um poema dele no nosso blogue: "Cantiga pra não morrer"


Ferreira Gullar em releituras e em Jornal de Poesia



sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

"Quando vieres..." (Maria Eugénia Cunhal)

Maria Eugénia Cunhal (Fot. de Bruno Castanheira)



Quando vieres
Encontrarás tudo como quando partiste.
A mãe bordará a um canto da sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o seu cigarro depois do jantar
E lerá o jornal.

Quando vieres
Só não encontrarás aquela menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre conhecido.

Quando vieres
Nenhum de nós dirá nada
Mas a mãe largará o bordado
O pai largará o jornal
As crianças os brinquedos
E abriremos para ti os nossos corações,

Pois quando vieres
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que despontará lá fora
Quando vieres.

Maria Eugénia Cunhal (1927 - 2015)


Poema retirado desta mensagem do blogue antologia do esquecimento: "Maria Eugénia Cunhal (1927 - 2015)"

* * * * * * * * * *

Morreu Maria Eugénia Cunhal

PÚBLICO e Lusa

10/12/2015 - 15:35

Irmã de Álvaro Cunhal, militante do PCP, jornalista e escritora tinha 88 anos.





quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Poema da pedra lioz (António Gedeão)





Poema da pedra lioz

Álvaro Gois,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Catanhede,
pedreiros de profissão,
de sombrias cataduras
como bisontes lendários,
modelam ternas figuras
na lentidão dos calcários.

Ali, no esconso recanto,
só o túmulo, e mais nada,
suspenso no roxo pranto
de uma fresta geminada.
Mas no silêncio da nave,
como um cinzel que batuca,
soa sempre um truca…truca…
lento, pausado, suave,
truca, truca, truca, truca,
sob a abóbada romântica,
como um cinzel que batuca
numa insistência satânica:
truca, truca, truca, truca,
truca, truca, truca, truca.

Álvaro Gois,
Rui Mamede,
filhos de António Brandão,
naturais de Cantanhede,
ambos vivos ali estão,
truca, truca, truca, truca,
vestidos de sunobeco
e acocorados no chão,
truca, truca, truca, truca.

No friso, largo de um palmo,
que dá volta a toda a arca,
um cristo, de gesto calmo,
assiste ao chegar da barca.
Homens de vária feição,
barrigudos e contentes,
mostram, no riso dos dentes
o gozo da salvação.
Anjinhos de longas vestes,
e cabelo aos caracóis,
tocam pífaro celestes,
entre cometas e sóis.
Mulheres e homens, sem paz,
esgaseados de remorsos,
desistem de fazer esforços,
entregam-se a Satanás.

Fixando a pedra, mirando-a,
quanto mais o olhar se educa,
mais se estende o truca…truca…
que enche a nave, transbordando-a,
truca, truca, truca, truca
truca, truca, truca, truca.

No desmedido caixão,
grande sonhor ali jaz.
Pupilo de Satanás?
Alma pura, de eleição?
Dom Afonso ou Dom João?
Para o caso tanto faz.

António Gedeão


Biografia de António Gedeão (1906 - 1997), pseudónimo de Rómulo de Carvalho.


Nota. Lioz ou pedra lioz é um tipo raro de calcário que ocorre em Portugal, na região de Lisboa e seus arredores.... (Wikipédia)


Torre de Belém, em Belém (Lisboa), feito de lioz.




sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Palavras para uma cidade (José Saramago)



Tempo houve em que Lisboa não tinha esse nome. Chamavam-lhe Olisipo quando os Romanos ali chegaram, Olissibona quando a tomaram os Mouros, que logo deram em dizer Aschbouna, talvez porque não soubessem pronunciar a bárbara palavra. Quando, em 1147, depois de um cerco de três meses, os Mouros foram vencidos, o nome da cidade não mudou logo na hora seguinte: se aquele que iria ser o nosso primeiro rei enviou à família uma carta a anunciar o feito, o mais provável é que tenha escrito ao alto Aschbouna, 24 de Outubro, ou Olissibona, mas nunca Lisboa. Quando começou Lisboa a ser Lisboa de facto e de direito? Pelo menos alguns anos tiveram de passar antes que o novo nome nascesse, tal como para que os conquistadores Galegos começassem a tornar-se Portugueses…Estas miudezas históricas interessam pouco, dir-se-á, mas a mim interessar-me-ia muito, não só saber, mas ver, no exacto sentido da palavra, como veio mudando Lisboa desde aqueles dias. Se o cinema já existisse então, se os velhos cronistas fossem operadores de câmara, se as mil e uma mudanças por que Lisboa passou ao longo dos séculos tivessem sido registadas, poderíamos ver essa Lisboa de oito séculos crescer e mover-se como um ser vivo, como aquelas flores que a televisão nos mostra, abrindo-se em poucos segundos, desde o botão ainda fechado ao esplendor final das formas e das cores. Creio que amaria a essa Lisboa por cima de todas as cousas.Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo. Esse filme de Lisboa, comprimindo o tempo e expandindo o espaço, seria a memória perfeita da cidade.O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar. Quando tive de recriar o espaço e o tempo de Lisboa onde Ricardo Reis viveria o seu último ano, sabia de antemão que não seriam coincidentes as duas noções do tempo e do lugar: a do adolescente tímido que fui, fechado na sua condição social, e a do poeta lúcido e genial que frequentava as mais altas regiões do espírito. A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo.Talvez não seja possível falar de uma cidade sem citar umas quantas datas notáveis da sua existência histórica. Aqui, falando de Lisboa, foi mencionada uma só, a do seu começo português: não será particularmente grave o pecado de glorificação… Sê-lo-ia, sim, ceder àquela espécie de exaltação patriótica que, à falta de inimigos reais sobre que fazer cair o seu suposto poder, procura os estímulos fáceis da evocação retórica. As retóricas comemorativas, não sendo forçosamente um mal, comportam no entanto um sentimento de auto-complacência que leva a confundir as palavras com os actos, quando as não coloca no lugar que só a eles competiria.Naquele dia de Outubro, o então ainda mal iniciado Portugal deu um largo passo em frente, e tão firme foi ele que não voltou Lisboa a ser perdida. Mas não nos permitamos a napoleónica vaidade de exclamar: “Do alto daquele castelo oitocentos anos nos contemplam” – e aplaudir-nos depois uns aos outros por termos durado tanto… Pensemos antes que do sangue derramado por um e outro lados está feito o sangue que levamos nas veias, nós, os herdeiros desta cidade, filhos de cristãos e de mouros, de pretos e de judeus, de índios e de amarelos, enfim, de todas as raças e credos que se dizem bons, de todos os credos e raças a que chamam maus. Deixemos na irónica paz dos túmulos aquelas mentes transviadas que, num passado não distante, inventaram para os Portugueses um “dia da raça”, e reivindiquemos a magnífica mestiçagem, não apenas de sangues, mas sobretudo de culturas, que fundou Portugal e o fez durar até hoje.Lisboa tem-se transformado nos últimos anos, foi capaz de acordar na consciência dos seus cidadãos o renovo de forças que a arrancou do marasmo em que caíra. Em nome da modernização levantam-se muros de betão sobre as pedras antigas, transtornam-se os perfis das colinas, alteram-se os panoramas, modificam-se os ângulos de visão. Mas o espírito de Lisboa sobrevive, e é o espírito que faz eternas as cidades. Arrebatado por aquele louco amor e aquele divino entusiasmo que moram nos poetas, Camões escreveu um dia, falando de Lisboa: “…cidade que facilmente das outras é princesa”. Perdoemos-lhe o exagero. Basta que Lisboa seja simplesmente o que deve ser: culta, moderna, limpa, organizada – sem perder nada da sua alma. E se todas estas bondades acabarem por fazer dela uma rainha, pois que o seja. Na república que nós somos serão sempre bem-vindas rainhas assim.

José Saramago

Folhas Políticas 1976-1998, Caminho, 1999, pp 178 – 182

O Caderno, Caminho, 2009, pp 19 – 23


(Texto: Fundação José Saramago)



quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

"Ah, como incerta, na noite em frente" (Fernando Pessoa)

Fotografia de Américo Mieira




Ah, como incerta, na noite em frente,
De uma longínqua tasca vizinha
Uma ária antiga, subitamente,
Me faz saudades do que as não tinha.

A ária é antiga? É-o a guitarra.
Da ária mesma não sei, não sei.
Sinto a dor-sangue, não vejo a garra.
Não choro, e sinto que já chorei.

Qual o passado que me trouxeram?
Nem meu nem de outro, é só passado:
Todas as coisas que já morreram
A mim e a todos, no mundo andado.

É o tempo, o tempo que leva a vida
Que chora e choro na noite triste.
É a mágoa, a queixa mal definida
De quando existe, só porque existe.

Fernando Pessoa


14-8-1932


Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990). - 86.



A morte de Fernando Pessoa no 'Diário de Notícias', de 3 de Dezembro de 1935



Morreu Fernando Pessoa – Grande poeta de Portugal

A notícia necrológica do «Diário de Notícias» com as palavras proferidas por Luís de Montalvor

Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da «Mensagem», poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se tem escrito, foi ontem a enterrar.
Surpreendeu-o a morte, num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à noite.
A sua passagem pela vida foi um rastro de luz e de originalidade. Em 1915, com Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro e Ronald de Carvalho – estes dois já mortos para a vida – lançou o «Orpheu», que tão profunda influência exerceu no nosso meio literário, e a sua personalidade foi-se depois afirmando mais e mais. Do fundo da sua «tertúlia», a uma mesa do Martinho da Arcada, Fernando Pessoa era sempre o mais novo de todos os novos que em volta dele se sentavam. Desconcertante, profundamente original e estruturalmente verdadeiro, a sua personalidade era vária como vário o rumo da sua vida. Ele não tinha uma actividade «una», uma actividade dirigida: tinha múltiplas actividades.
Na poesia não era só ele: Fernando Pessoa; ele era também Álvaro de Campos e Alberto Caeiro e Ricardo Reis. E era-os profundamente, como só ele sabia ser. E na poesia como na vida. E na vida como na arte.
Tudo nele era inesperado. Desde a sua vida, até aos seus poemas, até à sua morte.
Inesperadamente, como se se anunciasse um livro ou uma nova corrente literária por ele idealizada e vitalizada, correu a notícia da sua morte. Um grupo de amigos conduziu-o ontem a um jazigo banal do cemitério dos Prazeres. Lá ficou, vizinho de outro grande poeta que ele muito admirava, junto do seu querido Cesário, desse Cesário que ele não conhecera e que, como ninguém, compreendia.
Se Fernando Pessoa morreu, se a matéria abandonou o corpo, o seu espírito não abandonará nunca o coração e o cérebro dos que o amavam e admiravam. Entre eles fica a sua obra e a sua alma. A eles compete velar para que o nome daquele que foi grande não caia na vala comum do esquecimento.
Tinha 47 anos o poeta que ontem foi a enterrar. Quarenta e sete anos e um grande amor à Vida, à Arte e à Beleza. Quando novo, acasos do Destino, a que ele obedecia inteiramente – Fernando Pessoa teósofo, cristão, que conhecia todas as seitas religiosas e as negativistas, pagão como só os artistas sabem ser, Fernando Pessoa obedecia cegamente ao Destino – levaram-no para a África do Sul. E na Universidade do Cabo cursou o inglês. E de tal maneira estudou a língua que Shakespeare e Milton imortalizaram, que, anos passados, apresentava aos «cercles» literários da serena Albion quatro livros de poemas - «English Poems», I, II, III, IV; «Antinous» e «35 Sonnets». E num concurso de língua inglesa alcançou o primeiro prémio.
Depois, uma vez em Portugal, a sua actividade literária aumentou. É de então que data a sua colaboração na «Águia», onde o seu messianismo metafísico, num célebre e elevado estudo, anunciou o aparecimento do Super-Camões da literatura portuguesa.
1915. «Orpheu». Movimento intenso de renovação. Entretanto, colabora no «Centauro», «Exílio», «Portugal Futurista», «Contemporânea». Começa a ser amado e compreendido.
1924. Funda com Rui Vaz a revista «Athena». Depois, de então para cá, a sua actividade multiplica-se. Colabora em revistas modernistas, como «Presença», «Momento» e, há um mês ainda, no «Sudoeste», que Almada Negreiros fundou com notável desassombro. Traduziu Shakespeare e Edgar Poe. Estas são, em linhas muito esquemáticas e gerais, as obras que definem a sua personalidade. Quem o quiser compreender folheie a sua obra vasta e dispersa. Começará a amá-lo.
Da capela do cemitério dos Prazeres, para jazigo de família, cerca das onze horas de ontem, partiu o corpo do grande poeta. Alguns amigos de sempre acompanharam-no. Foram eles, pelo «Orpheu», Luís de Montalvor, António Ferro, Raul Leal, Alfredo Guisado e Almada Negreiros; pela «Presença», João Gaspar Simões; pelo «Momento», Artur Augusto e José Augusto; e Ferreira Gomes, Diogo de Macedo, Dr. Celestino Soares, António Botto, Castelo de Morais, João de Sousa Fonseca, Dr. Jaime Neves, António Pedro, Albino Lapa, Silva Tavares, Vitoriano Braga, Augusto de Santa-Rita, Luís Pedro, Luís Moita, Manuel Serras, Dr. Boto de Carvalho, Rogério Perez, Celestino Silva, Telino Felgueiras, Nogueira de Brito, Dante Silva Ramos, Carlos Queiroz, Mário de Barros, Dr. Rui Santos, Marques Matias, Gil Vaz, Luís Teixeira e poucos mais.
O sr. capitão Caetano Dias, cunhado do poeta, representava a família.
Em frente do jazigo que Fernando Pessoa passa a habitar, Luís de Montalvor, seu companheiro de 24 anos de vida literária, proferiu simples e emotivas palavras em nome dos sobreviventes do grupo do «Orpheu».
E disse:
«Duas palavras sobre o trânsito mortal de Fernando Pessoa.
Para ele chegam duas palavras, ou nenhumas. Preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito.
Com ele só está bem o que está perto de Deus. Mas também não deviam, nem podiam, os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir, ganhar as linhas definitivas da Eternidade, sem enunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida.
«Não podiam os seus companheiros de «Orpheu», antes os seus irmãos, do mesmo sangue ideal da sua Beleza, não podiam, repito, deixá-lo aqui, na terra extrema, sem ao menos terem desfolhado, sobre a sua morte gentil, o lírio branco do seu silêncio e da sua dor.
«Lastimamos o homem, que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodígio do seu convívio e da graça da sua presença humana. Somente o homem, é duro dizê-lo, pois que ao seu espírito e ao seu poder criador, a esses deu-lhes o Destino uma estranha formosura, que não morre.
O resto é com o génio de Fernando Pessoa.»

Os serviços fúnebres estiveram a cargo da Agência Barata.(1)


(1) – A notícia tal como foi publicada no Diário de Notícias, de 3 de Dezembro de 1935. 




segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Soneto aos filhos (Fernando Assis Pacheco)

Fernando Assis Pacheco e família


Fernando Assis Pacheco morreu a 30 de novembro de 1995, no mesmo dia, sessenta anos depois, que Fernando Pessoa.


SONETO AOS FILHOS

Toda a epopeia da família cabe aqui
um avô galego chegado a Portugal rapazinho
outro de ao pé de Aveiro que se meteu
num barco para S. Tomé a fazer cacau

de filhos seus nasci
com este pouco de inútil fantasia
nutrida em solidões nas que me vejo
nu como um bacorinho na pocilga

e como ele indefeso e porém quis
mesmo assim ser mais que o animal
no tutano dos ossos pressentido

não peço nada usai o meu nome
se vos praz lembrai-me
o que for costume

mas livrai-vos do luxo e da soberba

Fernando Assis Pacheco




sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Ao longe os barcos de flores (Camilo Pessanha)




AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, gracil, na escuridão tranquila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora…
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, gracil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta débil… Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora…

Camilo Pessanha


Do seu livro Clepsydra (1920)


Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 — Macau, 1926) é considerado o expoente máximo do simbolismo em língua portuguesa, além de antecipador do princípio modernista da fragmentação.




quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Uma citação de Vergílio Ferreira



Não tenhas a pretensão de ser inteiramente novo no que pensares ou disseres. Quando nasceste já tudo estava em movimento e o que te importa, para seres novo, é embalares no andamento dos que vinham detrás.

 Vergílio Ferreira





segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A viagem da cozinheira lagrimosa (Mia Couto)



A viagem da cozinheira lagrimosa

Antunes Correia e Correia, sargento colonial em tempo de guerra. Se o nome era redundante, o homem estava reduzido a metades. Pisara um chão traiçoeiro e subira pelas alturas para esse lugares onde se deixa a alma e se trazem eternidades. Correia não deixou nem trouxe, incompetente até para morrer. A mina que explodira era pessoal. Mas ele, tão gordo, tão abastado de volume, necessitava de duas explosões.

- “Estou morto por metade. Fui visitado apenas por meia-morte.”

Perdera a vida só num olho, um lado da cara todo desfacelado. O olho dele era faz-conta um peixe morto no aquário do seu rosto. Mas o sargento era tão apático, tão sem meximento, que não se sabia se de vidro era todo ele ou apenas o olho. Falava com impulso de apenas meia-boca. Evitava conversas, tão doloroso que era ouvir-se. Não apertava a mão a ninguém para não sentir nesse aperto o vazio de si mesmo. Deixou de sair, cismado em visitar no obscuro da casa a antecâmara do túmulo. O Correia perdera interesses na vida: ser ou não ser tanto lhe desfazia. As mulheres passavam e ele nada. E ladainhava: ““estou morto por metade”“.

Agora, reformado, sozinho, mutilado de guerra e incapacitado de paz, Antunes Correia e Correia tomava conta de suas lembranças. E se admirava do fôlego da memória. Mesmo sem o outro hemisfério não havia momento que lhe escapasse nessa caçada ao passado. “Das duas uma: ou minha vida foi muito enorme ou ela fugiu-me toda para o lado direito da cabeça”. Para as recordações virem à tona ele inclinava o pescoço.

- “Assim escorregavam directamente do coração”, dizia ele.

Felizminha era a empregada do sargento. Trabalhava para ele desde a sua chegada ao bairro militar. Nos vapores da cozinha a negra Felizminha arregaçava os olhos. Enxugava a lágrima, sempre tarde. Já a gota tombara na panela. Era certo e havido: a lágrima se adicionando nas comidas. Tanto que a cozinheira nem usava tempero nem sal. O sargento provava a comida e se perguntava porquê tão delicados sabores.

- “É comida temperada a tristeza”.

Era a invariável resposta de Felizminha. A empregada suspirava: “ai, se pudesse ser outra, uma alguém”. Poupava alegrias, poucas que eram.

- “Quero guardar contentamento para gastar depois, quando for mais velhinha”.

Metida a sombra, fumo, vapores. Nem sua alma ela enxergava nada, embaciada que estava por dentro. A mão tiritacteava no balcão. O recinto era escuro, ali se encerravam voláteis penumbras. A cozinha é onde se fabrica a inteira casa.

Certa noite, o patrão entrou na cozinha, arrastando seu peso. Esbarrou com a penumbra.

- “Você não quer mais iluminação na porcaria desta cozinha?

- “Não, eu gosto assim.”

O sargento olha para ela. A gorda Felizminha remexe a sopa, relambe a colher, acerta o sal na lágrima. O destino não lhe encomendou mais: apenas esse encontro de duas meias vidas. Correia e Correia sabe quanto deve à mulher que o serve. Logo após o acidente, ninguém entendia as suas pastosas falas. Carecia-se era de serviço de mãe para amparar aquele branco mal-amanhado, aquele resto de gente. O sargento garatunfava uns sons e ela entendia o que queria. Aos poucos o português aperfeiçoou a fala, mais apessoado. Agora ele olha para ela como se estivesse ainda em convalescença. O roçar da capulana dela amansa velhos fantasmas, a voz dela sossega os medonhos infernos saídos da boca do fogo. Milagre é haver gente em tempo de cólera e guerra.

- “Você está magra, anda a apertar as carnes?

- “Magra?”

Pudesse ser! A tartaruga: alguém a viu magrinha? Só os olhos lhe engordavam, barrigando de bondades. A gorda Felizminha gemia tanto ao se baixar que parecia que a terra estava mais longe que o pé.

- “Me esclareça uma coisa, Felizminha: porquê essa choradice, todos os dias?

- “Eu só choro para dar mais sabor aos meus cozinhados.

- “Ainda eu tenho razões para tristezas, mas você...

- “Eu de onde vim tenho lembrança é de coqueiros, aquele marejar das folhas faz conta a gente está sempre rente ao mar. É só isso, patrão”.
A negra gorda falou enquanto rodava a tampa do rapé, ferrugentia. O patrão meteu a mão no bolso e retirou uma caixa nova. Mas ela recusou aceitar.
- “Gosto de coisa velha, dessa que apodrece.
- “Mas você, minha velha, sempre triste. Quer aumento no dinheiro?
- “Dinheiro, meu patrão, é como lamina... corta dos dois lados. Quando contamos as notas se rasga a nossa alma. A gente paga o quê com o dinheiro? A vida nos está cobrando não o papel mas a nós, próprios. A nota quando sai já a nossa vida foi. O senhor se encosta nas lembranças. Eu me amparo na tristeza para descansar”.

A gorda cozinheira surpreendeu o patrão. Lhe atirou, a queimar-lhe a roupa:

- “Tenho ideia para o senhor salvar o resto do seu tempo.

- “Já só tenho metade de vida, Felizminha.
- “A vida não tem metades. É sempre inteira”...
Ela desenvolveu-se: o português que convidasse uma senhora, dessas para lhe acompanhar. O sargento ainda tinha idade combinando bem com corpo. Até há essas da vida, baratinhas, mulheres muito descartáveis.
- “Mas essas são pretas e eu com pretas...

- “Arranje uma branca, também há ai dessas de comprar. Estou-lhe a insistir, patrão. O senhor entrou na vida por caminho de mulher. Chame outra mulher para entrar de novo”.

Correia e Correia semi-sorriu, pensageiro.

Um dia o militar saiu e andou a tarde toda fora. Chegou a casa, eufórico, se encaminhou para a cozinha. E declarou com pomposidade: - “Felizminha: esta noite ponha mais um prato”.

A alma de Felizminha se enfeitou. Esmerou na arrumação da sala, colocou uma cadeira do lado direito do sargento para que ele pudesse apreciar por inteiro a visitante. Na cozinha apurou a lágrima destinada a condimentar o repasto.

Aconteceu, porém, que não veio ninguém. O lugar na mesa permaneceu vazio. Essa e todas as outras vezes. _única mudança no cenário: o assento que competia à invindável visita passava da direita para a esquerda, esse lado em que não havia mundo para o sargento Correia. Felizminha duvidava: essas que o patrão convidava existiam, verídicas e autênticas?

Até que, uma noite, o sargento chamou a cozinheira. Pediu-lhe que tomasse o lugar das falhadas visitadoras.

Felizminha hesitou. Depois, vagarosa, deu um jeito para caber na cadeira.

- “Decidi me ir embora”.

Felizminha não disse nada. Esperou o que restava para ser dito.

- “E quero que você venha comigo.

- “Eu, patrão? Eu não saio da minha sombra.

- “Vens e vês o mundo.

- “Mas ir lá fazer o quê, nessa terra...

- “Ninguém te vai fazer mal, eu prometo”.

Daí em diante, ela se preparou para a viagem. Animada com a ideia de ver outros lugares? Aterrada com a ideia de habitar terra estranha, lugar de brancos? Nem rosto nem palavra da cozinheira revelavam a substancia de sua alma. O sargento provava a refeição e não encontrava mudança. Sempre o mesmo sal, sempre a mesma delicadeza de sabor. No dia acertado, o militar acotovelou a penumbra da cozinha:

- “Venha, faça as mulas”.

Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-se ante o olhar da vizinhança. Então o sargento, perante o público, deu-lhe a mão. Nem se entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos escondendo-se como sapinhos envergonhados.

- “Vamos”, disse ele.

Ela olhou os céus, receosa por, daí a um pouco, subir em avião celestial, atravessar mundos e oceanos. Entrou na velha carrinha, mas para seu espanto Correia não tomou a direcção do aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e areias. Depois, parou num beco e perguntou:

- “Para que lado fica essa terra dos coqueiros?”


Mia Couto


Contos do nascer da terra (1997)








sábado, 21 de novembro de 2015

Uma notícia sobre os "retornados" 40 anos depois

Fotografia dos contentores dos "retornados" feita em 1975 pelo fotojornalista Alfredo Cunha


O “retorno” foi há 40 anos mas volta a ser agora

Vanessa Rato

20/11/2015

Nos anos 1970, os caixotes de madeira dos “retornados” subiam alto junto ao Padrão dos Descobrimentos. Agora, no mesmo local, uma fotografia reactiva o passado. Há muito trabalho a fazer na digestão de um dos maiores traumas nacionais


A 25 de Julho de 1977 o jornal O Dia publicava um pequeno anúncio de canto de página emitido pelo IARN. O Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais fazia saber que nos armazéns da Standard Eléctrica, em Lisboa, se encontrava por reclamar bagagem chegada das antigas colónias ao longo dos anos de 1975 e 1976.

“Ficam os respectivos proprietários avisados de que devem proceder ao seu levantamento, com a maior brevidade possível, chamando-se a atenção para o facto de que a longa permanência dos volumes em armazém poderá ocasionar a sua danificação e deterioração, pelas quais o IARN não pode responsabilizar-se”, lê-se no aviso.

Quem abandonaria os seus poucos bens ao longo de mais de dois anos? Na maioria dos casos, provavelmente, nacionais a viver em hotéis, pensões, quartos em casa de familiares e amigos, em camaratas de colónias de férias e parques de campismo.

Eram aos milhares os que dois anos volvidos sobre o êxodo dos antigos territórios ultramarinos não tinham conseguido começar a reconstruir as suas vidas, mergulhados no desenraizamento e precaridade simbolizados pelas centenas de contentores de madeira deixados a apodrecer à chuva junto ao Padrão dos Descobrimentos.

Mobílias e electrodomésticos, livros, roupas, loiças, brinquedos, fotografias de família – vidas inteiras: as torres de caixotes abandonados e alguns esventrados e pilhados no porto de Lisboa tornaram-se na imagem emblema do chamado “retorno” que a partir do 25 de Abril de 1974 fez entrar em Portugal mais de meio milhão de nacionais até ali residentes em África. É a imagem invocada pela intervenção que Retornar – Traços da Memória tem agora no mesmo local junto ao rio – uma série de contentores com uma grande fotografia ampliada tirada ali mesmo, em 1975, pelo fotojornalista Alfredo Cunha.

Iniciativa da EGEAC, a empresa de equipamentos e animação cultural de Lisboa, Retornar é um evento transdisciplinar com actividades a decorrer ao longo dos próximos quatro meses. A intervenção junto ao Padrão dos Descobrimentos faz parte da exposição com que, dentro desse programa, a EGEAC inaugura uma nova galeria municipal – a Galeria Avenida da Índia (no número 170, em Belém).

O aviso publicado no jornal O Dia é um entre muitos recortes de imprensa que, nessa exposição documental, ajudam a compor o complexo puzzle da narrativa social por detrás de um dos maiores traumas nacionais.

Comissariada pela antropóloga Elsa Peralta, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a mostra formaliza parte do trabalho desta investigadora sobre a representação do Portugal pós-colonial e a constituição de uma pós-colonialidade a partir da década de 1980, no quadro europeu. Dentro da investigação geral para a exposição, a investigação de media – em centenas de notícias de jornais nacionais e das antigas colónias – foi feita por um dos doutorando do instituto, Bruno Góis.

É a secção através da qual mais facilmente acedemos hoje à psicologia colectiva da época – à forma como os diversos acontecimentos sociopolíticos foram integrados no discurso público e, através dele, na opinião pública.

“Uma das preocupações era tentar perceber como tantas pessoas diferentes nunca tinham pensado que acabariam por ter de voltar”, explica o investigador. Refere-se à precipitação da Ponte Aérea que nos breves meses do Verão Quente de 1975 terá feito aterrar em Portugal mais de 200 mil pessoas em cerca de 900 voos de emergência. A maior parte não trazendo nada ou muito pouco da sua vida anterior.

Através de testemunhos directos, sabe-se como em Angola e Moçambique, por exemplo, a maior parte dos residentes ultramarinos urbanos viviam, em grande medida, alheios à guerra em volta, acontecimentos das distantes províncias interiores que a vastidão territorial, na maior parte dos casos, transformava em ecos minorados ou distorcidos. Grande parte dessa faixa populacional não estava também especialmente informada sobre a realidade política metropolitana e acreditava na possibilidade de uma transição de regime, tanto na metrópole como nas colónias. Por outro lado, através da documentação oficial, sabe-se também como a deslocação dessas populações para Lisboa era desincentivada e em muitos casos dificultada pelo Governo. De acordo com a investigação feita para Retornar a comunicação social contribuía para essa névoa.

(...)

A notícia completa no jornal Público


sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Carlos M. Cunha conta uma história que lhe aconteceu



O actor Carlos M. Cunha, um dos fundadores dos Commedia a La Carte, partilha um episódio recente que o fez passar por momentos "entre a vida e a morte.



Commedia a la Carte é um grupo português de comédia de improviso, criado a 22 de Novembro de 2000 por César Mourão, Ricardo Peres e Carlos M. Cunha. Contou com Sérgio Mourato como sonoplasta. Actualmente conta com uma banda em palco constituída por Jaume Pradas, Guilherme Marinho e Nuno Oliveira.




Uma citação de Monteiro Lobato



Loucura? Sonho? Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira - mas tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.

Monteiro Lobato



Monteiro Lobato (1882-1948) foi um escritor e editor brasileiro. "O Sítio do Pica-pau Amarelo" é sua obra de maior destaque na literatura infantil. Criou a "Editora Monteiro Lobato" e mais tarde a "Companhia Editora Nacional". Foi um dos primeiros autores de literatura infantil de nosso país e de toda América Latina. Metade de suas obras é formada de literatura infantil. Destaca-se pelo caráter nacionalista e social. O universo retratado em suas obras são os vilarejos decadentes e a população do Vale do Paraíba, quando da crise do café. Situa-se entre os autores do Pré-Modernismo, período que precedeu a Semana de Arte Moderna.

(...) Alfabetizado pela mãe, logo despertou o gosto pela leitura, lendo todos os livros infantis da biblioteca de seu avô o Visconde de Tremembé. Desde menino já mostrava seu temperamento irrequieto, escandalizou a sociedade quando se recusou a fazer a primeira comunhão. (...)


(Continua em e-Biografias)



segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Serão tristes as oliveiras (Ruy Belo)




SERÃO TRISTES AS OLIVEIRAS?

Aquela senhora que conheci no comboio, olhando pela janela, disse-me a certa altura que a oliveira é uma árvore triste. Olhei também e estive quase a concordar. Agora felicito-me, porque não foi preciso. Lembro-me que a senhora ia vestida de preto. Talvez lhe tivesse morrido alguém. Às oliveiras daquele olival que passava lá fora é que eu tenho a certeza de que não faltava nada: nem sol, nem uma leve brisa, nem um fruto grado, prometedor. E perguntei para mim, ao descer do comboio:
- Porque maltratamos as oliveiras?

Ruy Belo

Do seu livro Homem de palabra[s] (1970)




sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Difícil fotografar o silêncio (Manoel de Barros)




O poeta brasileiro Manoel de Barros faleceu a 13 de novembro de 2014 e lembramo-nos dele com estes versos que podemos ouvir depois na voz de Antônio Abujamra


Difícil fotografar o silêncio

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski -- seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros



Declama Antônio Abujamra




terça-feira, 10 de novembro de 2015

A débil (Cesário Verde)

 Eufrásia Teixeira Leite (1887), de Carolus Duran


A DÉBIL

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és tênue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

Cesário Verde


Do seu O Livro de Cesário Verde (1887)




segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Dói-me Portugal (José Pacheco Pereira)




Dói-me Portugal

Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros.

O poema de Antonio Machado intitulado Españolito é, como muitos poemas seus, intraduzível.

Eugénio de Andrade dava os poemas de Antonio Machado como exemplo da impossibilidade, no caso da poesia, de encontrar noutra língua, não as palavras certas, o que ainda era possível, mas a “música” do poema, o modo como fluía o som dessas palavras. Por isso, aqui vai no original:

Ya hay un español que quiere
vivir y a vivir empieza,
entre una España que muere
y otra España que bosteza.
Españolito que vienes
al mundo te guarde Dios.
una de las dos Españas
ha de helarte el corazón.

É um poema sinistro tanto quanto pode ser um poema. Estamos a caminho da ferocidade da guerra civil espanhola: “uma das duas Espanhas / há-de gelar-te o coração”. Não é hipotético, é certo. Morrerás em breve por uma ou por outra dessas “duas Espanhas”. Como Machado, enterrado junto da Espanha mas do lado francês, para onde fugiu quando a guerra estava perdida para a República.

O tema das “duas Espanhas” é muito antigo e não é alheio também ao pensamento português contemporâneo desde o século XIX. A ideia de que há “dois Portugais” também por cá circulou, mas sem a dramaticidade e a fronteira talhada à faca, com que existiu em Espanha. Houve sempre por cá mais mistura, mesmo nos momentos em que “um Portugal” defrontou o “outro”, nas lutas liberais, na República e na longa ditadura que preencheu metade do século XX português. A essa mistura Salazar chamava a “brandura dos nossos costumes”, uma enorme mentira em que os poderosos desejam acreditar e nem ele acreditava. Também ele era capaz de, com o seu enorme cinismo, agradecer aos portugueses terem sido tão “pacíficos” durante a crise.

Hoje, “dois Portugais” existem e vão a eleições. Um está à vista todos os dias, outro tornou-se invisível, mas está cá. Como é que é possível ele ter desaparecido de modo tão conveniente neste ano eleitoral? É conspiração dos media, é censura induzida, é habilidade de um dos “Portugais”, é apatia, resignação do outro “Portugal”, é incapacidade do sistema político representar ambos, ou só um, é o efeito daquilo que os marxistas chamavam “ideologia dominante”`? É, porque já não há dois, mas apenas um só, e este é o Portugal feliz, redimido dos seus vícios passados, empreendedor, cheio de esperança no futuro, deixando a “crise” para trás, virado para o “Portugal para a frente”? É tudo junto, menos a última razão.

Um dos “Portugais” está de facto invisível nestas eleições. Quem devia falar por ele, não fala e quem fala não é ouvido. Criou-se uma barreira de silêncio onde apenas se ouve a propaganda. Vejam-se as miraculosas estatísticas. Começa porque há as estatísticas de primeira e as de segunda, as que valem tudo e as que não valem nada. As “económicas” são de primeira, as “sociais” são de segunda. Das primeiras fala-se, as segundas ocultam-se.

As estatísticas “da recuperação económica”, escolhidas a dedo e trabalhadas a dedo, são comparadas com os anos que mais convém, umas vezes 2000, outras 2008, outras 2010, outras 2011, outras 2012, outras 2013, etc.. Todas a subir, pouco mas a subir, com “tendência” para subir. Os “do contra” ainda dizem que são tão milimétricas essas subidas e tão condicionadas pelo bater no fundo, tão longe do que seria necessário, tão dependentes de factores externos, que, ao mais pequenão abanão, o castelo de cartas ruirá. Como, para não ir mais longe, se vê com a venda do Novo Banco, o “bom”. (Embora suspeite que mesmo a pior das vendas vai ser apresentada como um excelente resultado, comparada com qualquer hipotética operação mais ruinosa, que “poderia ter acontecido”, mas nunca existiu. É uma das técnicas habituais apresentar sempre o mal como o mal menor.)

Quem é que quer saber, destes pequenos incidentes? Até às eleições servem bem, no dia seguinte, se os seus criativos autores ganharem, voltam a ler com toda a atenção os relatórios do FMI para justificar a continuação da austeridade. Ver-se-á como o défice vai subir, vai-se ver como as coisas são piores do que se apresentou neste ano eleitoral, mas já é passado, não conta.

Há mais de um milhão de desempregados, “desencorajados”, desempregados de longa duração que desapareceram das estatísticas, falsos estagiários, e pessoas que só não estão nas listas do desemprego porque emigraram. Porque queriam? Não. Porque não tinham alternativa e ainda faziam parte daqueles que podiam emigrar. Se estão felizes é por mérito da Suíça, da Grã-Bretanha, da Alemanha, da França e das competências e conhecimentos que ganharam em Portugal, imperfeitos que fossem, antes de 2008. O Portugal que lhe deu essas competências também já está a encolher, a acabar. Estamos a falar de várias centenas de milhares de pessoas. É muito português.

Voltemos aos desempregados que, ó céus!, também não deixaram de existir. São muitas centenas de milhares de pessoas, à volta de um milhão se somarmos, como devemos somar, várias parcelas de pessoas que não tem emprego. Não é sequer emprego sem direitos, é que não tem emprego. Ponto. Por muita imaginação que se possa ter, é suposto que não estejam felizes com a sua vida. Nem eles, nem as suas famílias. É muito português.

Depois, mais um número que se sobrepõe aos outros, uma em cada cinco pessoas é pobre, dois milhões de portugueses. Onde estão eles que não se vêem? Depois de uma overdose pontual de miséria nos anos mais agudos da crise, despareceram as pessoas que vivem mal de Portugal. Não são boa televisão a não ser como “casos humanos” extremos – a idosa sem pleno uso das suas faculdades mentais que vive imersa na sujidade e na miséria mais extrema numa casa sem vidros, nem água, nem luz – e não é disso que estou a falar. Estou a falar da pobreza que é estrutural, da que recuou dez anos para trás, mas que, neste recuo enorme em termos sociais, perdeu qualquer esperança, aquela que ainda podiam ter no início da década de 2000.

E aqueles a quem cortaram a magra pensão na velhice e a reforma com que pensavam viver os últimos anos, também estão felizes, a aplaudir o PAF? E aqueles que não eram pobres ou tinham deixado de ser pobres depois do 25 de Abril e que agora estão a escorregar para esse “estado” de que já não vão sair até morrerem? Estão felizes e contentes, perdido o emprego, a pequena empresa, o carro, a casa? Sim, as estatísticas de segunda, as sociais, revelam as penhoras, as devoluções, as humilhações, o esconder de uma vida sem esperança, ou seja desesperança. É muito português.

O discurso oficial, o do “outro” Portugal, diz que tudo isto é “miserabilismo”. Diz-nos que apenas o crescimento da “economia”, daquilo que eles chamam “economia”, pode resolver as malditas estatísticas “sociais”. Outra conveniente ilusão, porque, a não haver mecanismos de distribuição, a não haver equilíbrio nas relações laborais, a não haver reforço dos mecanismos sociais do estado – tudo profundamente afectado pela parte do programa da troika que eles cumpriram com mais vigor e rapidez – o “crescimento” de que falam tem apenas um efeito: agravar as desigualdades sociais. Como se vê.

No grosso das notícias, ministros e secretários de estado pavoneiam-se com grupos de empresários em posição de vénia, por feiras, colóquios dos jornais económicos, encontros liofilizados para que não haja o mínimo risco e, quando abrem a boca, é apenas para fazer propaganda eleitoral, a mais enganadora da qual se faz falando do “estado” redentor do país que agora já “pode mudar”. Eles falam do lado do poder, do poder que aparece nas listas dos jornais económicos, os novos “donos disto tudo”, chineses, angolanos, profissionais das “jotas” alcandorados a governantes, advogados de negócios e facilitadores, gestores, empresários de sucesso, a nova elite que deve envergonhar a mais velha gente do dinheiro, que o fez de outra maneira. O “outro” Portugal, o que é tão visível que até cega, com todas as cores, luzes a laser, aplausos de casting, feérico e feliz.

Não é este o meu Portugal. Não lhes tenho respeito. Uns fazem por si, outros fazem pelos outros. Conheço-os bem de mais. Não gostam dos de “baixo”. Acham que eles são feios, porcos e maus. Querem receber sem trabalhar. Querem viver à custa dos outros, deles. Se estão pobres é porque a culpa é sua. Se estão desempregados é porque não sabem trabalhar. Se se lamentam da sua sorte, são piegas. Deviam amochar disciplinadamente para serem bons portugueses. Não. “Há-de gelar-te o coração”.

Direi pois, como o velho Unamuno, “me duele España”, dói-me Portugal.


José Pacheco Pereira


(Fonte; publicado originalmente no diário Público, 9/9/2015)




sexta-feira, 6 de novembro de 2015

dás um mau jeito (blogue numbi)



dás um mau jeito

a um qualquer músculo facial ao tentares esboçar um sorriso, porque realmente não deves estar habituada a sorrir!!

acabei de passar por uma senhora no corredor (minha coleguinha de trabalho, por sinal) que fez um esforço enorme para elevar os cantos da boca, sem sucesso. a única coisa que conseguiu foi fazer o ar "podias ter esperado mais um minutinho antes de vires passear para o corredor porque assim não nos teríamos cruzado!"

mas afinal qual é a dificuldade em sorrir?? nem é preciso estar muito bem disposto p'ra sorrir. não consigo pensar na razão que leva tanta boa gente a passear-se pela rua com ar de quem está muito aflito p'ra ir à casinha...

já me disseram "ah, que menina simpática, sempre a sorrir!" sim, a julgar pela média acho que sou uma sorridora! guilty! mas o meu sorriso não significa que sou muito simpática ou, tão pouco, que estou muito bem disposta, não, nada disso, o meu sorriso deve-se ao facto de achar que toda a gente é boa, à partida, e não merece levar com o meu mau humor! porque eu tenho um e é bem grande, mas não vejo a necessidade de mostrar ao mundo que a minha vida não corre como eu queria ou previa! "ah, mas então quando estás de mau humor e sorris estás a ser hipócrita!" errado! seria hipócrita se sorrisse a quem causou tal estado de espírito, assim estou só a dizer "olá, é um prazer cruzar-me contigo, não és tu a pessoa que anseio agredir!" simples, não é?

minha boa gente, há um ditado que diz que sorrir é a melhor forma de melhorarmos a nossa aparência! e é grátis! sem esforço (de maior)! sem exercícios ou dietas! é um pequeno esforço muscular que resulta na elevação dos cantos da boca (o resto vem por acréscimo)!

para os que (por falta ou excesso de idade, negligência ou simplesmente por infortúnios da vida (sei do que estou a falar!) não têm aquela área amarelada no interior da boca, poderão optar por esta versão:





porque os olhos também sorriem!! :)


Blogue numbi

(23 de março de 2011)



O mau jeito (Miguel Esteves Cardoso)

MEC


O mau jeito

"Thank you for your time" é o que se diz quando se rouba tempo a alguém. Como é que se traduz para português? Não há tradução.

Sendo o tempo um recurso finito de cada ser mortal e partindo do princípio que as pessoas preferem passar o tempo que têm a fazerem aquilo que lhes apetece ou a ganhar o dinheiro suficiente para assim poderem viver (por isso é que se chama "ganhar a vida") é assustador que os portugueses nunca agradeçam o tempo que roubam uns aos outros.

Um português pode roubar-nos uma hora a contar um projecto giríssimo que tem em mente (mesmo que não dependa da nossa participação, inevitavelmente a título honroso ou em prol da glória de Portugal) sem que lhe ocorra agradecer-nos a hora que nos tirou.

O português não agradece: pede desculpa. No documentário Amy de Asif Kapadia há um momento revelador em que Amy Winehouse, depois de posar para uma fotografia com um casal de chatos, faz-lhes ver que o "sorry" deles não faz sentido porque não não se podem arrepender de antemão. Podiam ter evitado a culpa: bastava não chateá-la.

O português pede desculpa por incomodar (e não descansa enquanto não ouvir a resposta escarlate de tão mentirosa "não incomoda nada") mas, a partir daí, o tempo é passado a dois. O ladrão é capaz de desabafar depois: "Pôrra, o gajo obrigou-me a passar meia-hora a explicar porque é que estava a convidá-lo e, no fim, teve a lata de dizer que não estava para aí virado. Paguei 30 minutos...".

Coitadinho.

Miguel Esteves Cardoso


No diário Público, 1 de novembro de 2015




quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Sermão de Santo António (Padre António Vieira)




Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? (Job, 19): “Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?” Quereis ver um Job destes? Vede um homem desses que andam perseguidos de plei tos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, nã o o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

(...)

 Padre António Vieira

* * * * * * * * * * * * 

O "Sermão de Santo António aos Peixes" foi pregado no Maranhão, Brasil, em 13 de Junho de 1654, dia de anos de Santo António. Foi a metáfora utilizada pelo padre António Vieira contra a desumanidade com que os colonos portugueses tratavam os índios.

O sermão trata de um assunto intemporal: a variedade enorme de peixes que existem, o que fazem para se comerem uns aos outros e a sua ambição de poder.

No século XVI enquanto todos procuravam estrelas e planetas, o padre António Vieira procurou o mar para falar da espécie humana e do Brasil do seu tempo, onde os colonos escravizavam os nativos, e os homens se “devoravam uns aos outros”.

O “Sermão de Santo António aos Peixes”, inspirado em de Santo António de Lisboa, defensor dos pobres, é uma alegoria da alma humana, dos seus vícios e virtudes e, sobretudo, a defesa da humanidade nas relações entre os homens.

António Vieira, nasceu em Lisboa e partiu ainda criança para o Brasil. Estudou num colégio de jesuítas, tornando-se um aluno brilhante. Ingressou na Ordem de Jesus, foi professor de retórica e ordenou-se sacerdote. Foi diplomata e missionário.

Neto de avó africana, o padre António Vieira manifestou um grande interesse pela diversidade humana, seus hábitos e línguas e ficou conhecido junto das tribos como “Pai Grande”, por defender os índios e os escravos.

Numa época em que os pregadores concentravam em si todas as atenções e os sermões tinham um peso mediático na sociedade, o padre António Vieira notabilizou-se pelos seus sermões e pela sua capacidade retórica; foi «um imperador da língua portuguesa», como o chamou Fernando Pessoa.

Ensina RTP



domingo, 1 de novembro de 2015

Columbário (Joaquim Manuel Magalhães)

Fotografia de Ángel Valencia



COLUMBÁRIO

Cada ano que passa traz-me a lenha.
São já muitos quando a camioneta chega
com as três ou quatro toneladas de mistura.
Assim chama às várias espécies derribadas
que chegam para cada Inverno que lhe pago.
Agora já digo ao Sr. Antunes: mais um ano.
E ele ignora-me. Que se gasta a lenha
mas é um conforto. Que é um pecado lamentar.
Com o seu santo na medalha pendurado
nem lhe digo que também por cada ano,
mais que a lenha, ardemos e ardemos.

Jardins abertos. Em várias ruas
ao longo do anoitecer
distinguia-se quem lançava rápidos sinais
e para um outro lado nos dispunha.
Ainda nem eram precisos bares.
Um autocarro, o metro, qualquer mesa
de um café
ensinava-nos o caminho de elevadores,
as janelas de onde se via,
depois,
a cidade adormecida.

Um holofote amarelo contra o quarto que me alberga,
toda a noite uma sobreluz de hotel que demolia
as tentativas de sono detrás do tempo sem blackout.
Só na segunda noite me lembrei de pendurar
edredões das sanefas e o escuro me recuperou.
Ouvia no rádio postos que não sei que transmitiam,
de vez em quando devia cair no torpor dos barbitúricos
que nenhum efeito tinham já. O ar
abafado e seco pelas tubagens que não desligavam,
as pernas entumesciam com as alergias cutâneas
debaixo de tecidos talhados com acrílicos.

Atira os troncos cortados contra a parede
da arrecadação, os pequenos toros caem
com um baque, tropeçam uns nos outros,
julgamos que repousam.
Mas depois vamos buscá-los para a segunda morte,
além da árvore donde os abateram
e nunca mais um pássaro lhes cantará.
Também vai às outras árvores que me serra,
algumas quase rente ao chão. Fazem
sombra de mais, começam a ficar
secas e com musgo. Parece que tudo
fica límpido quando tombam e as leva
para um sumidouro que não sei.

Nesse tempo o receio era tão pouco.
Bastava estar atento ao mover dos olhos,
à qualidade do sorriso, e todos éramos
a grata euforia da entrega,
a ejaculação que parecia nunca mais findar.
Sempre outro corpo mais
connosco seguiria. Jardins abertos.
Chuveiros com o mais forte abraço,
um odor diferente em cada alegria.
Talvez nos julgassem clandestinos
mas não findavam
as viagens súbitas para um novo leito.

A noite despeja-me na noite, semi acordado,
semi adormecido, num entre estado sem nome,
como devem estar
os cães encostados aos sem abrigo nos recantos
com os faróis contínuos do trânsito nocturno.
Levanto-me no rumor de todos os ares condicionados
atirados do hotel para o seu saguão, e lembro
a moto-serra do Sr. Antunes a desbravar o jardim fechado,
a deitar por terra o vento que batia nos ramos,
ficava tudo coalhado de um serrim pacífico
e os arbustos atrofiados pela capa sombria
logo se sentiam reerguer, alargar,
ao contrário desta noite que pesa cada vez mais.
Horas abauladas, procuro fugir-lhes no terror
das imagens nocturnas que numa outra luz
podem subor ao cérebro para despedaçá-lo.

Mais tarde haverá novos rebentos, demoram algum tempo,
vou-os arrancando a um por um
nos sítios onde não quero que mais nada cresça.
Outros sobem de novo cada vez mais alto, marcam
com os seus dias os meus dias
num sem retorno que também sou eu.

Depois nem já clandestinos.
A música dos novos bares
atenuava um pouco
a pretérita euforia das ruas.
Pareciam barcas donde se ouvia
clamores,
a corrente fulgurava entre a sombra
de cada corpo
e da margem acenavam-nos
com caminhos felizes
que podiam ser logo abandonados.
Ninguém já perseguia?
Um clarão fulminante
cruzava o céu de cada peito.

O terreiro agora ficou sem os ramos
piores, os de folhagem que enlameia a relva,
partiu a camioneta tão enchida
desses sítios que já tiveram ninhos
que só com muitas aselhas nos cordames
se consegue rebaixar, pequenos braços
vigorosos, resistem, não querem
enterrar-se uns pelos outros, procuram
permanecer, divago eu, como nós
ao deus inútil tanta vez pedimos.
Mas depois da nuvem de gasóleo da partida
logo me recolho e penso que na felicidade
é que julgamos inútil o que nos ajuda.

Mesmo assim os sonhos do passado morto
(morto, alguma vez morre tudo aquilo?)
um por um vêm e calcam com a sua verdade inteira,
pesistem nos pequenos rolos de cérebro derramado,
seguem a sua astuta reconstituição, da infância
para cima, de mais tarde para baixo,
até conspurcarem todo o terreno parado do presente,
sem ameaça, só com a certeza do que não volta atrás,
do que ficou definitivamente assim.
A lenha precisa ainda de secar, repetia o Sr. Antunes,
durante um ano, são árvores de seiva matreira, todas
feitas para a falsidade, abrem um oco dentro da copa,
só na extremidade fazem bolas de verdura opaca,
fingem ser paisagem, amarelecem verdes ainda,
morrem sem dor, com uma longuíssima resignação,
tão longa que parece apenas um esquecimento.

Jardins abertos. Ninguém
os atravessa agora. Bares para o aturdimento
de músicas. Tudo passou a história.
Hoje há o cuidado. E se o amor
ultrapassa o prazer, restam
os testes e as suas repetições.
Só quis lembrar esta barra de fogo
apagada.
A vã duração do tempo.

Escrevo estes versos de memórias
alheado já.
Cada palavra mistura-se com todas.
Mas lembra-te que pensei sempre,
leitor, jardim aberto,
de algum modo em ti.
Deixa estar por uns segundos contigo
estas histórias. Dá-lhes
algum cuidado. Havia o Sr. Antunes. Pode ser
que voltes um dia a ter um tempo
para de novo te sentares com elas.
Dei-lhes o meu pensamento ameaçado
por um holofote tenaz.
Se encontrares nisso algo que te sirva
recorda-o no teu espírito
mesmo que nada se possa repetir.

Eu digo para mim que é esta
a utilidade da poesia,
a lembrança.
E que podes ainda, se parecem vãos
todos os meus efeitos,
largá-la de ti e haver proveito
em não seguires comigo todos os caminhos
onde ressoam passos do meu precipício.

Joaquim Manuel Magalhães

Alta Noite em Alta Fraga (2001)




sábado, 31 de outubro de 2015

Poema de sete faces (Carlos Drummond de Andrade)


Hoje, dia 31 de outubro, é celebrado por muitos amantes da poesia no Brasil e noutras partes do mundo, o Dia D, porque foi nesse dia do ano 1902 que nasceu Carlos Drummond de Andrade na cidade de Itabira, no estado de Minas Gerais.


O Instituto Moreira Salles organiza a quinta edição do Dia D - Dia Drummond. A ideia foi lançada em 2011 com o objetivo de fazer com que o dia 31 de outubro, data do nascimento do grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), passasse a integrar o calendário cultural do país. A fim de promover e difundir a obra do escritor pelo “mundo, mundo, vasto mundo”, o IMS convida parceiros e amigos para celebrar a data.


POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drummond de Andrade


Nota. gauche: Indivíduo tímido, incapaz, sem muita aptidão.



Alcides Villaça recita o poema de Drummond



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O que seria de nós (antologia do esquecimento)






O QUE SERIA DE NÓS?

O que seria de nós sem o Correio da Manhã, o que seria de nós sem a Teresa Guilherme e o Big Brother e a Quinta das Celebridades e a Casa dos Segredos e todos os demais reality shows, o que seria de nós sem fast-food, sem os estrangeirismos que nos enriquecem a língua e fazem de nós gente culta, gente moderna, gente com estilo, gente sedutora, sensual, magnífica, gente sintonizada com o mundo, o que seria de nós sem as redes sociais e sem o touch screen e sem as startups e sem as selfies, o que seria de nós sem a Cristina Ferreira e sem o Manuel Luís Goucha e sem os romances da Fátima Lopes, o que seria de nós sem as cartas da Maya e os anjinhos da Maria Helena, o que seria de nós sem ex-jogadores de futebol a comentarem futebol, o que seria de nós sem os totós da bola, o que seria de nós sem o lixo televisivo que permite dar significado à expressão lixo televisivo, o que seria de nós sem a música pimba e sem o teatro de revista e sem a cultura popular e sem a literatura light, o que seria de nós sem as feiras de vaidades e sem o desperdício e sem a fome dos outros e sem o aquecimento global, o que seria de nós sem os casos, sem os escândalos, sem a miséria observada à distância com um pacote de Cheetos nas mãos, o que seria de nós sem os festivais de Verão e o Natal dos Hospitais e o Banco Alimentar e os comentários sobre a actualidade da Isabel Jonet, o que seria de nós sem o Santuário de Fátima, sem as peregrinações, sem as procissões, sem a missa de domingo, sem os feriados religiosos, o que seria de nós sem o Papa Francisco e sem o milhão de livros que sobre ele já se escreveram, o que seria de nós sem o terrorismo que alimenta o terrorismo, o que seria de nós sem a publicidade que todos os dias cai na caixa postal, no e-mail, nos acompanha no autorrádio, na televisão, se dissemina pelas paredes da cidade, em outdoors, o que seria de nós sem o telemarketing e sem cartões de desconto, o que seria de nós sem a FNAC e sem a Bertrand e sem os shoppings, o que seria de nós sem os outlets, sem os centros comerciais gigantescos onde proliferam multinacionais milionárias, o que seria de nós sem os milionários, o que seria de nós sem os artigos de última geração, sem a última moda, sem modas, sem novidades, o que seria de nós sem o salário mínimo, sem o mínimo salário, sem horas extraordinárias a custo zero, sem recibos verdes, o que seria de nós sem mundiais desportivos e competições europeias e veículos potentíssimos atravessando África, o que seria de nós sem os missionários e sem os voluntários, o que seria de nós sem uma boa caçada, sem o negócio dos diamantes, sem minério, sem incêndios, o que seria de nós sem as exportações e as importações, sem os mercados financeiros, sem a bolsa, sem o dinheiro virtual, sem os sem terra, sem os produtos tóxicos, a água contaminada dos rios, o que seria de nós sem o mundo virtual das quintas e do Minecraft, o que seria de nós sem benzodiazepinas, sem ansiolíticos, sem o negócio da indústria farmacêutica, o que seria de nós sem traficantes, drogados, vigaristas, criminosos, fanáticos, racistas, xenófobos, intolerantes, terroristas, o que seria de nós sem lixeiras a céu aberto, jardins de ruínas, o que seria de nós sem a Guerra das Estrelas, a exploração espacial, o universo cada vez mais poluído com os resíduos das nossas investigações, o que seria de nós sem uma explicação para o princípio do mundo, sem múltiplas explicações para a formação do universo, o que seria de nós sem as seitas religiosas e sem calendários para o armagedão, o que seria de nós sem Deus, meu Deus, o que seria de nós sem Paraíso e sem Inferno e sem Espírito Santo, o que seria de nós sem medo, o que seria de nós sem os fazedores de opinião, as últimas notícias, os tops, as recensões com estrelinhas, o que seria de nós sem os trezentos canais do MEO, sem pobrezinhos a quem acolher, sem nós próprios? O que seria de nós sem nós próprios? O que seria da terra sem estrume?


hmbf no blogue antologia do esquecimento (20-10-2015)




Nota. O que é o MEO?