sexta-feira, 13 de junho de 2014

"Criança desconhecida e suja..." (Caeiro / Pessoa)


Alberto Caeiro visto por Almada Negreiros


Este blogue despede-se até ao próximo ano letivo, 2014-15, com um poema do heterónimo pessoano Alberto Caeiro, no aniversário do nascimento do poeta Fernando Pessoa, a 13 de junho de 1888.



Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.

Alberto CaeiroFernando Pessoa



quarta-feira, 11 de junho de 2014

Adeus (Miguel Torga)

Fotografia de Alessandro Calabrese



ADEUS

É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

Miguel Torga






terça-feira, 10 de junho de 2014

Início de 'Os Lusíadas' (Luís de Camões)

Camões e as Tágides (estudo), óleo sobre tela, 1893-1894.
Obra de Columbano Bordalo Pinheiro


As cinco primeiras estrofes de Os Lusíadas, a grande epopeia escrita por Luís de Camões, hoje, 10 de junho, "o seu dia".


As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.

Dai-me ũa fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.




segunda-feira, 9 de junho de 2014

A definição do amor (Jorge Reis-Sá)

É mar de amor, menina - Fotografia de Amanda Oliveira


dantes escrevia poemas de amor. para viver com o amor nos poemas, sempre. depois disseram-me que já toda a gente o fez, que nada mais havia a escrever sobre o amor. que o amor já estava em demasiados poemas. eu aceitei o conselho e passei a escrever poemas de morte. escrevi muitos poemas sobre o meu pai, até ao dia em que percebi que a morte é sinónimo de amor, como tudo é sinónimo do amor. e voltei a escrever o que nada havia a dizer. porque até o poema é sinónimo de amor.


 'A definição do amor', Jorge Reis-Sá, em 'biologia do homem'



(Lido aqui: Inverno em Lisboa)



sexta-feira, 6 de junho de 2014

A Carta do achamento do Brasil



Pero Vaz de Caminha, filho de Vasco Fernandes de Caminha e de Isabel Afonso, cresceu à sombra da Casa de Bragança em data desconhecida. Foi cavaleiro da Casa real. Do seu casamento com Catarina de Caminha nasceu uma filha, Isabel Caminha. Morreu na Índia ao serviço de Portugal, deixando como prova da sua presença nos tempos mais gloriosos de Portugal, uma carta: carta que enviou ao rei de Portugal, narrando a passagem da expedição de Pedro Álvares Cabral que levou por acidente ao achamento da Terra de Vera Cruz.

(Portugal em Linha)

* * *

SENHOR

Posto que o capitão-mor desta vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou, não deixarei tambem de dar disso a minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que, para o bem contar e falar, o saiba pior que todos fazer. Mas tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo cria que, por aformosentar nem afear, haja aqui de por mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singarduras do caminho nao darei aqui conta a Vossa Alteza, porquanto o não saberei fazer e os pilotos devem ter esse cuidado. E portanto, Senhor, do que hei-de falar começo, e digo que a partida de Belem como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de Março.

E sábado, 14 do dito mês, entre as oito e as nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três ou quatro léguas.

E dominhgo, 22 do dito mês, às dez horas pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas do Cabo Verde, isto é, da Ilha de São Nicolau, segundo dito de Pero escolar, piloto.

E a noite seguinte, a segunda-feira, quando amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataide com sua nau, sem haver aí tempo forte nem contrário para poder ser. Fez o capitão suas diligências para o achar, a umas e a outras partes e não apareceu mais.

E assim seguimos por este mar de longo até que, terça-feira de Oitavas de Páscoa, que foram vinte e um dias de Abril, cerca de 660 ou 670 léguas da dita ilha, segundo diziam os pilotos, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas a que os mareantes chamam botelho assim como outras a que tambem chama rabo-de-asno.

E, quarta-feira seguinte pela manhã topamos aves a que chamam fura-buxos.

E neste dia, às horas de véspera, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente dum grande monte mui alto e redondo e doutras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã, com grandes arvoredos, ao qual monte o capitão pôs nome - O Monte Pascoal - e à terra a Terra de Vera Cruz.

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e, ao sol posto, a cerca de seis léguas de terra, surgimos âncoras, em dezanove braças: ancoragem limpa. Ali ficamos toda aquela noite.

E à quinta feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos a terra indo os navios pequenos diante por dezassete, dezasseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças até meia légua de terra, onde todos lançámos âncoras no enfiamento da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos. E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, cerca sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Ali lançamos fora os bateis e esquifes e vieram todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor e aqui falaram. E o capitão mandou no batel em terra Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir para lá acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que quando o batel chegou a boca do rio eram ali dezoito ou vinte homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos para o batel. Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos e eles os pousaram.

Ali não pode deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, pelo mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeca e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas de ave compridas, com uma copazinha pequena e penas vermelhas e pardas como as de papagaio; e outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas miudas, que querem parecem aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder deles haver mais fala, por causa do mar.

Na noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitaina.

E na sexta pela manhã, às oito horas pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa em direcção ao norte, para ver se achàvamos alguma abrigada e bom pouso onde ficássemos para tomar água e lenha. Não porque já nos faltasse, mas para que nos precavêssemos aqui.

Quando fizemos vela, seriam já na praias sentados, junto ao rio obra de sessenta ou setenta homens, que a pouco e pouco se haviam ali juntado. Fomos ao longo da costa e mandou o capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.

E sendo nós pela costa, acharam os ditos navios pequenos, obra de dez léguas do local donde tínhamos levantado ferro. Um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro e com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles e um pouco antes do sol posto amainaram obra de uma légua do recife e ancoraram em onze braças.

E sendo Afonso Lopes nosso piloto, num daqueles navios pequenos, por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou numa almadia dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos; e um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas, mas não se serviram deles. Trouxe-os logo, já noite, ao capitão, sendo recebidos com muito prazer e festa na sua nau.

A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos.

Andam nus, sem nenhuma cobertura, e é-lhes indiferente cobrir ou mostrar suas vergonhas. E procedem nisso com tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e neles metidos seus ossos brancos, verdadeiros, com o comprimento de uma mão travessa e da grossura dum fuso de algodão, e agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço, e o que lhes fica entre o beiço e os dentes é feito como roque de xadrez, e de tal maneira o trazem ali encaixado que não lhes faz doer nem lhes estorva a fala, o comer ou o beber. Os seus cabelos são corredios e andavam tosquiados, de tosquia alta mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para trás uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como cera, embora não o fosse, de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

O capitão, quando eles vieram, estava sentado numa cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço e, aos pés, uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia e nós outros que aqui na nau com eles vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas e entraram. Mas não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém, um deles pôs olho no colar do capitão e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que a dizer-nos que ali havia ouro. Também viu um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e então para o castiçal, como se lá também houvesse prata.

Mostraram-lhe um papagaio pardo que o capitão tem aqui, e tomaram-no logo na mão e acenaram para terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhe uma galinha: quasi tiveram medo dela e não lhe queriam pôr a mão; depois a tomaram como que espantados.

Deram-lhes ali de comer pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada. E, se alguma coisa provavam, lançavam-na logo fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça: mal lhe puseram a boca e não gostaram nada, nem o quiseram mais. Trouxeram-lhes água numa albarda, e, tomando alguns bocados, não beberam, somente lavaram as bocas e lançaram-na logo fora.

Viu um deles umas contas brancas de rosário. Acenou que lhas dessem, folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do capitão, como que dizendo que dariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, porque não lhos havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem llhas dera.

Então estiraram-se de costas na alcatifa a dormir, sem buscarem maneira de cobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins, e o da cabeleira esforçava-se por a não quebrar. E lançaram-lhes um nanto em cima e eles consentiram, ficaram quietos e dormiram.

Ao sábado pela manhã mandou o capitão fazer vela e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro e ancoraram em cinco ou seis braças. A ancoragem lá dentro é tão grande, tão formosa e tão segura que podem ficar dentro dela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus ficaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do capitão-mor. E daqui mandou o capitão a Nicolau Coelho e a Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, mandando dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levavam nos braços, seus cascavéis e suas campaínhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, que chamam Afonso Ribeiro, para andar lá com eles, e saber de seu viver e maneira. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.

Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens todos nus e com arcos e setas nas mãos Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os poisaram, mas não se afastavam muito. Mal pousaram os arcos, os que nós levávamos e o mancebo degredado com eles, os quais, assim que saíram não pararam mais nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a ver quem mais correria. E passaram um rio de água doce que por ali corre, de muita água que lhes dava pela braga e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros e ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram para nós, e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam e traziam cabaços de água e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem à borda do batel. Mas junto a ele lançavam os barris que nós tomávamos e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascáveis e manilhas, a um dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho e por qualquer cousa que homem lhes queira dar.

Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.

Muitos deles ou quase a maoir parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Andavam aí outros quartejados de cores, a saber, metade da sua própria cor e metade de tintura negra, a modos que azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha.

Ali por então não houve mais fala nem entendimento com eles, por a berberia deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém.

Acenamos-lhes que se fossem e assim o fizeram e passaram para além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornámo-nos às naus. E vindo nós assim, acenavam-nos que tornássemos. Tornámo-nos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tirar cousa alguma, antes o mandaram com tudo. Então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele o deu, à vista de nós, àquele que o agasalhara da primeira vez. Logo voltou e nós trouxemo-lo. Este que o agasalhou era já de idade e andava por louçainha todo cheio de penas pegadas pelo corpo, que parecia assetado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas, outros de vermelhas e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que as muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós. E com isto nos tornámos e eles foram-se.

À tarde saiu o capitão-mor em seu batel com todos nós e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía frente à praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o capitão o não querer, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu ele com todos nós num ilheu grande que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Mas é cercado de água por todas as partes, de modo que ninguém lá pode ir a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros bem uma hora e meia. Alguns marinheiros que ali andavam com um chinchorro pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem noite.

Ao domingo de Pacoela pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu e mandou a todos os capitães que aprestassem os batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que eram todos ali. A qual missa sendo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a esteve levantada da parte do Evangelho.

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do evangelho, e no fim dela tratou de nossa vinda e achamento desta terra, conformando-se com o sinal da cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles e tocaram corno ou buzina e começaram a saltar e a dançar um pedaço. E alguns deles se meteram em duas ou três almadias que ali tinham, as quais não são feitas como as que eu já vi: somente são três traves atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, encaminhou-se o capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcámos e fomos todos em direcção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar. E nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele.

Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos, e muitos deles os iam logo pôr em terra, mas outros os não punham.

Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim parecesse que lhe tinham acatamento nem medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos e espáduas e pelos quadris, coxas e pernas até abaixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água lha não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, era mais vermelha.

Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal, antes lhe davam cabaças de água e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.

Com isto volveu Bartolomeu Dias ao capitão e viemo-nos às naus a comer tangendo trombetas e gaitas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram a sentar-se na praia e assim por então ficaram. Neste ilhéu onde fomos ouvir missa e pregação a água espraia muito, e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto aí estávamos, alguns de nós foram buscar marisco, mas não o acharam. Acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso camarão, que em tempo algum vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por mandado do capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia ser bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem. E entre muitas alas que no caso se fizeram, foi por todos, ou pela maior parte, dito que seria muito bem, e nisto concluiram. E tanto que a conclusão foi fomada, perguntou mais se seria bom tomar aqui por força um par destes homns para os mandar a Vossa Alteza, e deixar aqui por eles outros dois destes degredados. Quanto a isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali tudo o que lhe perguntam, e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homns destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que portanto não cuidassem de tomar ninguém nem fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos. E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.

Acabado isto, disse o capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem o rio quejando era, e também para folgarmos.

Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira connosco. Eles andavam ali na praia à boca do rio para onde nós íamos. E, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos e acenavam que saíssemos. E tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. Mal desembarcámos, alguns dos nossos passaram logo o rio e foram para o meio deles. E alguns aguardavam, outros afastavam-se, mas era a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com setas por sombreiros e carapuças de linho e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andavam assim misturados com eles que eles se esquivavam e afastavam-se. E alguns deles iam-se para cima onde estavam outros.

Então o capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não por o conhecerem por senhor, pois me parece que não entendem nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.

Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas e resgatavam-nas por qualquer cousa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.

Então tornou-se o capitão aquém do rio e logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, pareciam assim bem.

Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, também nuas que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até ao quadril e a nádega, toda tinta daquela tintura preta, e o resto todo da sua própria cor; Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés. E suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.

Também andava ali outra mulher moça com um menino ou menina no colo atado com um pano (não sei de quê ) aos peitos, de modo que não apareciam senão as perninhas. Mas as pernas da mãe e o resto não trazia nenhum pano.

Depois andou o capitão para cima ao longo do rio, que anda sempre diante da praia, e ali esperou um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Estando o capitão com ele, falou perante todos nós sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós, quantas cousas se lhe demandava acerca de ouro, que nós desejávamos saber se o havia na terra.

Trazia este velho o beiço tão furado que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora aquele buraco. O capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do capitão para lha meter dentro. Estivemos sobre isso um pouco rindo e então enfadou-se o capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o capitão, creio que para, com as outras cousa, a mandar a Vossa Alteza.

Andámos por ali vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos.

Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.

Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E, conquanto com aquilo os muito segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.

E então o capitão passou o rio com todos nós outros e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, ao longo da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai água por muitos lugares.

E depois de passarmos o rio foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.

Bastará dizer que até aqui, como quer que eles um pouco se amansasse, logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro, e homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar. O capitão, ao velho com quem falou, deu uma carapuça vermelha, e com toda a fala que com ele passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que despediu e começou a passar o rio, logo se foi recatando e não quis mais tornar de lá para aquém. Os outros dois que o capitão teve nas naus a que deu o que já dito é, nunca mais aqui apareceram.

Disto tiro ser gente bestial e de pouco saber, e por isso são assim esquivos. Porém e com tudo isto, andam muito bem curados e muito limpos. Nisto me faz ainda mais julgar que são como aves ou alimárias monteses, às quais o ar faz melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque seus corpos são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser. Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhumas casas nem maneira delas.

Mandou o capitão àquele degredado Afonso Ribeiro que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço e à tarde tournou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu, antes, disse ele, que um deles lhe tomara umas continhas amarelas que levava, e fugia com elas, e ele se queixou, os outros foram logo após ele e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar. E então mandarm-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes como de Entre-Douro-e-Minho.

E assim nos tornámos às naus já quase noite, a dormir.

À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como nas outras vezes e já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós e depois a pouco e pouco misturavam-se connosco e abraçavam-nos e folgavam, e alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha. E em tal maneira se passou a cousa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, de que creio que o capitão há-de mandar amostra a Vossa Alteza. E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Nesse dia vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados, outros de metades, outros de tanta feição como em panos de armar, e todos com os beiços furados e muitos com os ossos neles e outros sem ossos.

Alguns traziam uns ouriços verdes de árvores que, na cor, pareciam de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios de uns grãos vermelhos pequenos que, ao ser esmagados entre os dedos, faziam a tintura muito vermelha de que eles andavam tintos. E, quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.

Todos andam rapados até acima das orelhas, e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas de fonte a fonte tintas da tintura prete, que parece uma fita preta larga de dois dedos.

E o capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e aos outros dois degredados que fossem lá andar entre eles, e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo por quem eles folgavam. E aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.

Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitaina. Eram de madeira, e das ilhargas de tábos, e cobertas de palha, de razoada altura; Todas numa só casa, sem nenhum repartimento. Tinham dentro muitos esteios, e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.

Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas e que assim os achavam: e que lhe davam de comer daquela vianda que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes que na terra há e eles comem.

Quando se fez tarde, fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.

Resgataram lá por cascavéis e por outras cousinhas de pouco valor que levavam, papagaios vermelhos muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores à maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas cousas verá, porque o capitão vo-las há-de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram, e nós tornámo-nos às naus.

À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha a lavar roupa. Estavam na praia quando chegámos obra de sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegámos, vieram-se logo para nós sem se esquivarem e depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto connosco que alguns nos ajudaram a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.

Enquanto cortávamos a lenha faziam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que ontem para isso se cortou.

Muitos deles vimham ali estar com os carpinteiros. E creio que faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, que por verem a cruz, porque eles não têm cousa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas num pau entre duas talas mui bem atadas, e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles connosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.

O capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e a outras, se houvessem delas novas, e que, em toda a maneira não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá nesta terra muitos. Mas eu não veria mais que nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são muitos e grandes e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves. Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.

Eu creio, senhor, que não dei ainda aqui conta a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que, creio, o capitão a Ela há-de enviar.

Á quarta-feira não fomos em terra porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e a fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.

Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, a que o capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem e trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase com pegas, senão quanto tinham o bico branco e os rabos curtos.

Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas elle não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram e mandou-lhes fazer cama de lençois, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.

E assim não houve nada mais este dia que para que escrever seja.

À quinta-feira, derradeiro dia de Abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira e de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.

Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles connosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta, e tanto que a tomou meteu-a logo no beiço. E, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe um pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe detrás seu adereço para se segurar e meteu-a no beiço assim revolta para cima e vinha tão contente com ela como se tivera uma grande jóia. E tanto que saímos em terra foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles, e daí a pouco começaram a vir mais, e parece-me que viriam à praia este dia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta.

Traziam alguns deles arcos e setas que foram trocados por carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam connosco do que lhes dávamos e alguns deles bebiam vinho. Outros o não podiam beber, mas parece-me que se lho avezarem o beberão de boa vontade.

Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem.

Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com muito boas vontades, e levavam-na aos batéis e andavam já mais manso e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles.

Foi o capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso parecer era esta mesma que vem ter à praia em que nós tomámos água.

Ali ficámos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo que é tão basto e de tantas prumagens, que homens não as pode contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.

Quando saímos do batel disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amnhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. Acenaram a estes dez ou doze que aí estavam para que fizessem assim e foram logo todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se homen os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem em nenhuma crença, segundo parece. E portanto, se os degredados, que aqui hão-se ficar, aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa fé, a qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade, e imprimir-se-à ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. E porque Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa Portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que, com pouco trabalho será assim.

Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha nem outra alimária que acostumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos.

Nesse dia, enquanto ali estiveram, dançaram e bailaram sempre com os nossos ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nosssos amigos que nós seus. Se homem lhes acenavam se queriam vir às nossa naus faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que se nós os quiséssemos convidar todos, todos viriam. Porém, não trouxemos esta noite às naus senão quatro ou cinco, a saber: o capitão-mor, dois; Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes da Silva, outro, também por pajem. Um dos que o capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez que aqui chegámos, o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa e com ele um seu irmão, os quais foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama de colchões e lençóis, para os amansar.

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o capitão o lugar onde fizessem a cova para a chantar.

Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz abaixo do rio, onde ela estava. Trouxemo-la dali com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, à maneira de procissão.

Eram já ali alguns deles, obra de setenta ou oitenta e quando nos viram assim vir logo se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passámos o rio ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando ali nisto, vieram bem cento e cinquenta ou mais.

Chantada a cruz com as armas e divisas de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos.

Ali estiveram connosco a ela obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos em joelhos assim como nós.

E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos de pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco e alçaram as mãos, ficando assim até ser acabado e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos posemos de joelhos, eles puseram-se assim todos como nós estávamos, com as mãos levantadas e em tal maneira sossegados que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.

Estiveram assim connosco até acabar a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o capitão com alguns de nós outros.

Alguns deles, por o sol ser grande, estando nós comungando, levantaram-se e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, ficou ali com aqueles que ficaram. Este, estando nós assim, juntava aqueles que ali ficaram e ainda chamava outros, e andando assim entre eles a falar, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem. E nós assim o tomámos. Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva e assim se subiu, junto com o altar, a uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos apóstolos cujo dia hoje é, tratando, no fim da pregação deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos causou mais devoção.

Esses que estiveram sempre à pregação, quedaram-se assim como nós olhando para ele. E aquele que digo que chamava alguns que viessem para ali, alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse uma ao pescoço de cada um, pela qual cousa o padre frei Henrique se assentou ao pé da cruz e ali, um por um, lançava a sua, atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinha a isso muitos e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta.

Isto acabado, era já bem uma hora depois do meio dia, viemos às naus comer, trazendo o capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o céu e um seu irmão com ele, ao qual fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa das outras.

E, segundo o que a mim a e todos pareceu, esta gente não lhe falece outra cousa para ser toda cristã senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos, por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria ou adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E para isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os baptizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa santa fé pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais ambos hoje também comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho em redor de si. Porém, ao assentar não fazia memória de o muito estender para se cobrir. Assim, Senhor, que a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria mais quanto a vergonha.

Ora veja Vossa Alteza se, quem em tal inocência vive, ensinando-lhe o que para sua salvação pertence, se converterá ou não.

Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a cruz, despedimo-nos e viemos comer.

Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumentes que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida. Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras altas, delas vermelhas, delas brancas e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia palma muito chã e muito formosa.

Vista do mar, nos pareceu, pelo sertão, muito grande, porque a estender olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos, que nos parecia mui longa terra. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal nem de ferro, nem lho vimos.

Porém, a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre-Douro-e Minho, porque neste tempo de agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-as aproveitar, dar-se-à nela tudo, por bem das águas que tem.

Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecut, isso bastaria, quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, o acrescentamento da nossa santa fé.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta vossa terra vi, e se algum pouco alonguei, Ela me perdoe, porque o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assim pôr pelo miúdo.

E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer cousa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há-de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé Osório, meu genro, o que d'Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500

Pero Vaz de Caminha

 
* * *


A carta de Pero Vaz de Caminha para o Rei D. Manuel I com as novas do achamento da Terra de Vera Cruz, Porto Seguro, 1 de Maio de 1500 A Carta está datada de Vera Cruz, 1 de Maio e assinada por Pêro Vaz de Caminha, escrivão da feitoria de Calecut, enviado por D. Manuel na armada de Pedro Álvares Cabral, e é o primeiro testemunho da existência de um mundo até então desconhecido dos povos ligados por contiguidade geográfica, o primeiro testemunho de uma realidade que mudou verdadeiramente a face da terra. Foi escrita no período crucial dos Descobrimentos, nos tempos em que a ciência náutica finalmente tornou possível fazer o reconhecimento do nosso planeta. As pessoas referidas na carta são, em primeiro lugar Pedro Álvares Cabral, o responsável pela armada, e outros,mencionados ou não, que faziam parte da expedição, eram capitães experientes, pertencentes a grandes famílias portuguesas, bem como grandes comerciantes florentinos. A Carta faz um relato muito circunstanciado dos costumes dos habitantes da terra, o seu comportamento pacífico, mesmo dócil, suas casas, alimentação, vestuário, vários utensílios como arcos, setas, machados, aves, a cor da terra, os densos arvoredos, a inexistência de animais domésticos. É também de realçar a forma como Caminha se refere aos índios: a três séculos de Rousseau, vemos o olhar maravilhado perante o seu bom primitivismo, a sua ingenuidade, a sua inocência. É como que a antecipação do mito do bom selvagem, que Rousseau teorizou e que originou obras como Atala e René, de Chateaubriand, ou o Guarani, do brasileiro Alencar.

A Carta foi escrita por uma testemunha presencial que acompanhou a armada e participou na expedição feita em terra firme, sob o comando de dois homens experientes, escolhidos por Cabral. Ele tinha a incumbência de transmitir ao rei todas as ocorrências e por isso esteve sempre no centro das operações. O tratado de Tordesilhas tinha sido assinado havia pouco tempo, e urgia comunicar a descoberta do novo mundo. A Carta guarda-se na Torre do Tombo no lugar próprio - nas inquirições, ou seja, os inquéritos a que se procedeu desde os primórdios da nacionalidade para se saber a situação dos bens e direitos da Coroa. A Carta é uma inquirição - de características específicas, decerto, próprias da natureza dos bens a inquirir. As descrições e confrontações habituais, tendo como pontos de referência acidentes geográficos diversos e bens de raiz dos mais diferentes senhorios, dão lugar ao relato dos sucessos primeiro da armada e por fim em terra firme. Em terra firme, a inquirição ganha contornos ímpares, pois que ímpar era a realidade. A Carta é pois um documento de arquivo que, devido à capacidade de observação, à cultura e ao talento do seu autor reúne a característica por excelência da obra literária - o prazer de a ler.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo




quarta-feira, 4 de junho de 2014

Mundial 2014: delírio tropical ou porta para a modernidade

O novo estádio de Manaus custará 204 milhões de euros
(Foto: Nelson Garrido)



Mundial 2014: delírio tropical ou porta para a modernidade

Hugo Daniel Sousa (texto) e Nelson Garrido (fotografia, em Manaus)
05/03/2014 - 00:01

Para uns, o Mundial de futebol no Brasil é uma megalomania sem sentido. Para outros, é uma oportunidade de mostrar o país ao mundo e fortalecer a economia brasileira.

A praça é bonita, arranjada como poucas. As árvores, os bancos de madeira, a calçada portuguesa, os prédios baixos e pintados de fresco: tudo está impecável. E ali ao lado ergue-se o Teatro Amazonas, majestoso, com uma cúpula verde e amarela, a simbolizar a grandeza do Brasil. Ao mesmo tempo que o calor húmido invade os corpos, percebe-se por que razão Manaus já foi conhecida como a Paris dos Trópicos. Há quase 120 anos, um governador chamado Eduardo Ribeiro, visionário ou megalómano, transformou uma aldeia numa metrópole.

Mais de um século depois dessa transformação feita com o dinheiro da borracha exportada para a Europa, a maior cidade da Amazónia lançou-se em mais uma obra gigantesca e cara: um estádio de futebol para receber quatro jogos do Mundial de futebol deste ano. É um recinto bonito, moderno, uma obra de engenharia complexa. Tal como o teatro, está num plano mais elevado e também se impõe a tudo o que o rodeia.

No início da década de 1890, Eduardo Ribeiro foi, para uns, louco e, para outros, um homem à frente do seu tempo. A discussão repete-se agora: um estádio às portas da Amazónia está condenado a ser um elefante branco numa cidade sem clubes nas principais divisões do futebol brasileiro ou pode tornar-se um novo símbolo para a região? A pergunta transforma Manaus numa espécie de metáfora do Brasil que não se limita a receber o Mundial de futebol mas que quer organizar “a Copa das Copas”, como diz o slogan que a Presidente Dilma Rousseff não se cansa de repetir.

O Brasil não precisava de construir 12 novos estádios em 12 estados diferentes, da Amazónia, no Norte, a Porto Alegre, no Sul. É o próprio ministro do Desporto, Aldo Rebelo, quem o admite, assumindo que essa foi uma opção política. A FIFA também nunca o exigiu e até preferia menos cidades. Então porquê organizar o Mundial da forma mais extensa (e cara) possível? “Porque somos um país-continente”, respondeu Aldo Rebelo em entrevista ao PÚBLICO, afirmando que a Amazónia não podia ficar de fora.

“Curiosamente, ou desgraçadamente, o Brasil está repetindo em democracia a mesma megalomania dos militares, que construíram estádios por todo o país. O estádio de Manaus agora demolido foi construído no tempo da ditadura militar”, diz o jornalista Juca Kfouri, colunista da Folha de São Paulo e autor de um dos blogues de desporto mais populares do país.

O Teatro Amazonas, onde se cumpriu o desejo de ouvir ópera às portas da selva, é uma obra imponente. Nenhum edifício da cidade se lhe compara e os arranha-céus construídos um pouco por todo o lado não lhe retiram brilho. E, no reluzente interior, revela-se uma exuberância parisiense, feita de dourados, frescos, lustres e até um tecto que simula a Torre Eiffel vista de baixo. Já a Arena Amazónia é um estaleiro de obras, numa corrida contra o tempo. Está a ser construída no mesmo local do Vivaldão, o antigo estádio de Manaus que foi demolido para dar lugar a um novo recinto com 40 mil lugares, numa zona elevada da avenida que liga o aeroporto ao centro da cidade. “O estádio Vivaldo Lima podia ter sido aproveitado. Era um projecto arquitectónico premiado”, critica o escritor amazonense Milton Hatoum, que mora em São Paulo, mas nasceu e viveu em Manaus: “Esse novo estádio é um delírio populista e demagógico, com tenebrosas transacções, como diz a canção de Chico Buarque.”

Dentro do estádio, que tem a forma de uma cesta de frutas, milhares de trabalhadores finalizam a polémica obra. “Mesmo reformado, o Vivaldo Lima não tinha forma de oferecer condições adequadas a um evento deste padrão”, contra-argumenta Miguel Capobiango Neto, coordenador da Unidade Gestora do Projecto Copa do Governo do Amazonas. “Os estádios têm de dar conforto a quem vem assistir ao vivo, mas também condições de boa transmissão de imagem, até porque o volume de pessoas que assistem aos jogos em casa é muito maior do que o dos que assistem no estádio”, acrescenta, na azáfama de berbequins e martelos.

O preço desta opção é de 669 milhões de reais (204 milhões de euros), o custo global do novo recinto, todo por conta do Governo do Amazonas. Só que desta vez não há o dinheiro da borracha, que há 120 anos permitiu a Eduardo Ribeiro transformar Manaus numa cidade digna de ser capital. “Quando em 1906 um Presidente da República veio cá pela primeira vez, ficou boquiaberto”, conta Robério Braga, historiador e secretário da Cultura do Amazonas. “Afonso Pena declarou: ‘Manaus é o sonho da República. Isso não existe no resto do Brasil.’ E não existia mesmo.”

Esse era o tempo da Manaus Paris dos Trópicos. As senhoras compravam vestidos nas lojas parisienses, as famílias mandavam lavar a roupa em Lisboa, falava-se francês às refeições e ia-se à ópera. E é difícil não lembrar esse passado glorioso quando se ouve o responsável do Mundial dizer que “esse novo estádio pode ser o Teatro Amazonas do século XXI”: “É um novo momento”, diz Capobiango, sentado numa das cadeiras às cores da arena, a evocar as frutas da região.

 A notícia completa no jornal Público.



segunda-feira, 2 de junho de 2014

O outro Brasil que vem aí (Gilberto Freyre)

(*)


O OUTRO BRASIL QUE VEM AÍ

Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
de outro Brasil que vem aí
mais tropical
mais fraternal
mais brasileiro.
O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados
terá as cores das produções e dos trabalhos.
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças
terão as cores das profissões e regiões.
As mulheres do Brasil em vez das cores boreais
terão as cores variamente tropicais.
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil,
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem de morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
mãos para agir pelo Brasil
mãos de escultor que saibam lidar com o barro forte e novo dos Brasis
mãos de engenheiro que lidem com ingresias e tratores europeus e norte-americanos a serviço do Brasil
mãos sem anéis (que os anéis não deixam o homem criar nem trabalhar).
mãos livres
mãos criadoras
mãos fraternais de todas as cores
mãos desiguais que trabalham por um Brasil sem Azeredos,
sem Irineus
sem Maurícios de Lacerda.
Sem mãos de jogadores
nem de especuladores nem de mistificadores.
Mãos todas de trabalhadores,
pretas, brancas, pardas, roxas, morenas,
de artistas
de escritores
de operários
de lavradores
de pastores
de mães criando filhos
de pais ensinando meninos
de padres benzendo afilhados
de mestres guiando aprendizes
de irmãos ajudando irmãos mais moços
de lavadeiras lavando
de pedreiros edificando
de doutores curando
de cozinheiras cozinhando
de vaqueiros tirando leite de vacas chamadas comadres dos homens.
Mãos brasileiras
brancas, morenas, pretas, pardas, roxas
tropicais
sindicais
fraternais.
Eu ouço as vozes
eu vejo as cores
eu sinto os passos
desse Brasil que vem aí.

Gilberto Freyre

Gilberto Freyre (1900 — 1987) foi um polímata brasileiro. Como escritor, dedicou-se à ensaística da interpretação do Brasil sob ângulos da sociologia, antropologia e história. Foi também autor de ficção, jornalista, poeta e pintor. É considerado um dos mais importantes sociólogos do século XX. Recebeu da Rainha Elizabeth II o título de Sir, sendo um dos poucos brasileiros detentores desta alta honraria da coroa britânica.

Seu primeiro e mais conhecido livro é Casa-Grande & Senzala, publicado no ano de 1933 e escrito em Portugal. Nele, Freyre rechaça as doutrinas racistas de branqueamento do Brasil. Baseado em Franz Boas, demonstrou que o determinismo racial ou climático não influencia no desenvolvimento de um país. Entretanto, essa obra deu origem ao mito da democracia racial no Brasil, com relações harmônicas interétnicas que mitigariam a escravidão brasileira, que, segundo Freyre, fora menos ruim que a norte-americana.

(Wikipédia)


Freyre em Releituras.


Visite o Museu Gilberto Freyre em Pernambuco.