sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Natal (Manuel António Pina)



NATAL

Quando eu era criança, o Natal entristecia-me. A desusada agitação dos adultos, a mãe metida na cozinha, o cheiro a fritos (as filhoses, as rabanadas, os sonhos) pela casa, as prendas, que me pareciam apenas uma rotina cabisbaixa (e porquê não poder abri-las antes da meia-noite?), o desolador menu da ceia (bacalhau!, eu que imaginava a felicidade sob a forma de um bife com batatas fritas!), tudo me fazia detestar o Natal. Só a construção do presépio me animava; com musgo e com algodão em rama imaginava campos e colinas cobertos de neve; um sinuoso caminho de serradura subia até à gruta, onde o Menino jazia deitado num ninho de pintarroxo (ainda hoje o tenho, a esse ninho); a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao tamanho do Menino, mas os meus pais sempre se recusaram a comprar outros; e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!

Como a infância, o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal é próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial: que o Menino da manjedoura éramos nós.

Manuel António Pina




quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A porta (Mia Couto)



A PORTA

Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para Moçambique. Junto da porta havia um porteiro. Chegou um indiano moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou vozes dizendo:
- Não abras! Essa gente tem mania que passa à frente!
E a porta não foi aberta. Chegou um mulato moçambicano, querendo entrar. De novo, se escutaram protestos:
- Não deixa entrar, esses não são a maioria.
Apareceu um moçambicano branco e o porteiro foi assaltado por protestos:
- Não abre! Esses não são originais!
E a porta não se abriu. Apareceu um negro moçambicano solicitando passagem. E logo surgiram protestos:
- Esse aí é do Sul! Estamos cansados dessas preferências…
E o porteiro negou passagem. Apareceu outro moçambicano de raça negra, reclamando passagem:
- Se você deixar passar esse aí, nós vamos-te acusar de tribalismo!
O porteiro voltou a guardar a chave, negando aceder o pedido. Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso. Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique.

Mia Couto




terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Bolsonaro, o pirralho que fala fino com Trump e grosso com Greta (Kiko Nogueira)

Autor: César Krash


Bolsonaro, o pirralho que fala fino com Trump e grosso com Greta

Kiko Nogueira, 10 de dezembro de 2019

Fabio Porchat é autor de uma das melhores frases do ano.

“Bolsonaro não governa, ele se vinga”, disse o humorista do Porta dos Fundos.

A gestão bolsonarista se destaca por esse tipo de comportamento destrutivo com relação a velhos ressentimentos.

Chamado de racista a vida toda, ele escala um ativista negro que odeia o movimento negro para a Fundação Palmares.

No Meio Ambiente, um ministro acusado de fraude ambiental.

Na Educação, um sujeito que odeia as universidades a ponto de espalhar a fake news de que elas produzem metanfetamina e plantam maconha.

No caso de Greta Thunberg, o presidente da República agiu como Carluxo, uma criança mimada e burra.

“A Greta já falou que os índios morreram porque estavam defendendo a Amazônia. É impressionante a imprensa dar espaço para uma pirralha dessa aí”, falou numa coletiva.

Horas depois dessa estupidez, a sueca respondeu com classe alterando sua descrição biográfica no Twitter para “Pirralha”.

Greta havia postado um vídeo sobre a morte dos guajajaras no Maranhão e Bolsonaro não gostou.

“Indígenas estão sendo mortos por tentar proteger a floresta do desmatamento ilegal. De novo e de novo. É uma vergonha que o mundo permaneça calado sobre isso”, denunciou.

O adulto na sala é a garota de 16 anos.

O fedelho é o covarde de 64 que chupa o dedo e só briga com gente menor que ele.

Quando Donald Trump o humilhou prometendo, nas redes, taxar aço e alumínio brasileiros, Bolsonaro correu a explicar que “não via como retaliação”.

“Vou conversar com Paulo Guedes. Se for o caso ligo para o Trump. Tenho um canal aberto com ele”, mentiu, o rabo entre as pernas.

Flávio, Eduardo e Carluxo têm comportamento de moleque, mas como seria diferente tendo como exemplo a molecagem do pai?

Greta faria um favor à humanidade se desse em Jair umas palmadas no lugar onde guarda o intelecto.

Kiko Nogueira, em Diário do Centro do Mundo, 10-12-2019



segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Natal d'um Poeta (António Nobre)



NATAL D'UM POETA

Em certo reino, à esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,
Ha quatro lustros, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!

E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo Ideal:

Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

António Nobre



António Pereira Nobre (Porto, 16 de agosto de 1867 — Foz do Douro, 18 de março de 1900), mais conhecido como António Nobre, foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista (interessada na ressurgência dos valores pátrios) da geração finissecular do século XIX português. A sua principal obra, (Paris, 1892), é marcada pela lamentação e nostalgia, imbuída de subjectivismo, mas simultaneamente suavizada pela presença de um fio de auto-ironia e com a rotura com a estrutura formal do género poético em que se insere, traduzida na utilização do discurso coloquial e na diversificação estrófica e rítmica dos poemas.

(Continua na Wikipédia)




sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Casa na Chuva (Eugénio de Andrade)


CASA NA CHUVA

A chuva, outra vez sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.

Eugénio de Andrade

Escrita da Terra (1974)



terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Os portugueses não gostam que os brasileiros falem português (Marco Neves)


Este artigo de Mário Neves foi publicado a 8 de dezembro de 2013 em Medium:


Os portugueses não gostam que os brasileiros falem português
Pronto, estou a exagerar. Mas às vezes parece!

Há poucas horas encontrei um post num grupo do Facebook sobre tradução em que uma tradutora portuguesa partilhava um post duma empresa de tradução brasileira, afirmando-se insultada.

O que dizia o tal post? Simplesmente isto (atentem no insulto):

Saudade”, uma palavra genuinamente brasileira.

O autor brasileiro é bem capaz de ficar a coçar a cabeça… “Mas que disse eu de errado?” Por que razão se sentiu a tradutora portuguesa insultada por esta declaração tão inócua?

Os comentários ao post são também curiosos. Houve quem acusasse o autor de ignorância ou de querer afirmar que “saudade” é uma palavra de origem brasileira, etc. A indignação foi muita, a surpresa de qualquer brasileiro que por ali parasse seria maior ainda.

Tentei argumentar um pouco, dizendo que erro seria dizer que “saudade” é uma palavra “exclusivamente” brasileira. No entanto, muito do que disse caiu em saco roto. A frase era incomodativa para muitos, e houve quem lembrasse, out of the blue, o acordo ortográfico, que é a bête noire dos portugueses no que toca à língua portuguesa. Tudo por causa duma palavra que não pode ser genuinamente brasileira! Nem pensar!

Mas que raio?…

Ora bem, o que se passou foi o seguinte (digo eu—que posso estar errado):

1. O autor brasileiro estava a falar duma palavra da sua língua, que é uma palavra que sente como genuína dessa língua (portuguesa) e da sua cultura (brasileira) e é, portanto, uma palavra genuinamente brasileira.

2. Os portugueses que comentaram a frase fazem uma outra associação. Desde pequenos ouvem dizer que “saudade” é uma palavra portuguesa, o que é obviamente verdade. Ouvem também dizer que é uma palavra que só existe em português e da qual devemos ter orgulho. Sendo o nome da língua indistinto do adjectivo que nos caracteriza enquanto povo, não fazemos convenientemente a distinção entre o que é uma palavra em português e uma palavra portuguesa. Se dizemos que “saudade” só existe em português, no nosso íntimo associamo-la, em exclusivo, à cultura portuguesa. Ouvir um brasileiro dizer que é uma palavra genuinamente brasileira enche-nos de estranheza, de confusão—e consideramos a coisa quase tão insultuosa como um espanhol dizer que a “saudade” é genuinamente espanhola.

Para destrinçarmos toda esta confusão, convém atentarmos na palavra “português”. Esta palavra tem vários significados, entre eles:

1. (n.) pessoa com nacionalidade portuguesa.
2. (n.) língua românica oficial em oito países.
3. (adj.) relativo a Portugal e aos portugueses [tal como “brasileiro” significa “relativo ao Brasil e aos brasileiros”].
4. (adj.) relativo ao português e à língua portuguesa [falada por portugueses, brasileiros, angolanos, etc.].

O brasileiro que escreveu a frase sabe distinguir entre os vários significados. Há, claro, uma associação entre todos, mas não deixam de ser significados separados. Um brasileiro pode dizer, sem qualquer dificuldade, que uma palavra é portuguesa, no sentido 4., sem querer com isso dizer que não é brasileira. Pode ainda dizer que uma palavra é brasileira (no sentido de “relativa aos brasileiros e ao Brasil”) sem deixar de defender que é portuguesa (no sentido 4.). “Saudade”, para um brasileiro, é uma palavra portuguesa (“em português”) e brasileira (“relativa ao Brasil e aos brasileiros”).

Já para um português, os sentidos estão misturados. Achamos que uma palavra portuguesa [4.] (=“em português”) é sempre uma palavra acima de tudo portuguesa [3.] (=“relativa aos portugueses”). Para nós, “saudade” é uma palavra portuguesa e, por isso, pertence, acima de tudo, aos portugueses e a Portugal. Ficamos irritados quando os brasileiros dizem que essa mesma palavra é também muito brasileira.

Claro que isto não faz sentido: se acharmos que os brasileiros só podem chamar genuinamente brasileiras as palavras que não sejam partilhadas com os portugueses, estaríamos a dizer que, no fundo, falam uma língua estrangeira desde a nascença e que pouco há de genuinamente brasileiro. E que os americanos também falam uma língua estrangeira desde a nascença e pouco têm de genuíno. O mesmo diríamos dos escoceses, dos argentinos, dos belgas, dos suiços, etc.

Não faz sentido, mas é uma reacção imediata (“gut reaction”) genuinamente portuguesa... Está associada à forma como muitos portugueses dizem “brasileiro” para descrever a língua falada pelos brasileiros, como muitos portugueses ficam admirados quando um estrangeiro diz que aprendeu português mas desata a falar com sotaque brasileiro, como muitos portugueses dizem que existe um sotaque brasileiro mas não existe um sotaque português, etc. No fundo, muitos portugueses acham que os brasileiros falam uma língua emprestada e deviam ter respeitinho a quem lhes emprestou essa língua. (Alguns vão mais longe e acham que os brasileiros andaram a estragar a língua…)

Ora, para um brasileiro, a língua portuguesa é sua. Pode ser doutros também, incluindo os portugueses, mas é, indubitavelmente, sua. Que tenha um nome “estrangeiro” não importa muito. Sempre aprendeu português e sempre associou a língua portuguesa ao Brasil de forma tão íntima como os portugueses associam a língua portuguesa a Portugal. Um brasileiro não está constantamente a lembrar-se de que há uma ligação a outros países com a mesma língua, da mesma forma que os portugueses também não fazem essa associação sempre que falam da língua portuguesa. Para um brasileiro, uma palavra em português é, por definição, uma palavra brasileira, porque o português é a língua dos brasileiros. Claro como água—mas estranhíssimo, e até ofensivo, para ouvidos portugueses.

Para os portugueses a língua portuguesa é acima de tudo portuguesa. Que os brasileiros a falem é um pormenor de somenos importância. E, atenção, dentro desta forma de pensar, os brasileiros deviam lembrar-se que falam uma língua dos portugueses sempre que se atrevem a falar de palavras da sua língua!

Confesso que este problema é um problema que tem consequências negativas acima de tudo para os portugueses, que assim revelam uma visão limitada e mais pobre da sua própria língua. Sim, fomos nós que pegámos num dialecto da zona do Minho (falado entre a Galiza e o Norte do que é hoje Portugal) e lhe demos estatuto de língua oficial. Fomos nós que desenvolvemos essa língua nos primeiros séculos—e fomos nós que pegámos nela e a levámos a outros locais, que assentámos arraiais no outro lado do Atlântico e nos misturámos com outras raças e culturas e criámos o Brasil—e por lá ficámos. Não se esqueçam que os brasileiros não importaram o português: os brasileiros são os descendentes dos portugueses que levaram o português até àquelas paragens.

E não se esqueçam que as línguas são de quem as fala, desde a nascença, conhecendo o sabor particular que cada palavra tem na língua de cada um, um sabor que muda de lugar para lugar, de época para época, mas que não é propriedade de ninguém. Porque o português é mesmo de todos nós— genuinamente de todos nós.

Marco Neves 

Gestor na Eurologos-Lisboa. Docente Universitário na FCSH/NOVA. Formador na área da tradução

Certas Palavras - Página de Marco Neves sobre línguas, livros e outras viagens


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Eufemismos (Blogue Enfado)


Um eufemismo 02.02.2006

Dizer “não tive tempo” em vez de “eu sei que estavas à espera, mas na hierarquia de prioridades que defini para a minha vida recente, aquilo que me pediste estava mesmo lá no fundo”.


Dois eufemismos 02.02.2006

Dizer “ando cheio de trabalho” em vez de “não vou gastar contigo o pouco tempo que tenho para mim”.


Três eufemismos 02.02.2006

Dizer “correu muito bem” em vez de “estou farto de passar a vida a baixar expectativas por vossa causa”.


Publicado por Guilherme Cartaxo no seu blogue Enfado.




segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

"Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas / leituras..." (Manoel de Barros)

(*)

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.

Manoel de Barros

VI poema de O Livro das Ignorãças

Notas
Bugre, s.m.: denominação dada a indígenas de diversos grupos do Brasil por serem considerados não cristãos pelos europeus.

Ariticum é um nome indígena que vem do Tupi e significa 'fruta mole'. Nativo dos cerrados brasileiros, sua distribuição é descontínua, aparecendo nos campos abertos, como no cerrado e cerradão onde a vegetação é mais densa. Pode ser encontrado em Goiás, Tocantins, no estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul. A árvore do ariticum cresce até 10 metros e possui tronco tortuoso de 20 a 40 cm de diâmetro.

Conhecida popularmente por Pinha, Ariticum, Araticum, Embira, araticum-cagão-macho, cortiça-amarela, araticum-do-morro, araticum-grande, pasmada-do-mato, a Rollinia sylvatica é uma árvore que, quando adulta, atinge o porte de 6,8 m de altura.


(*) Manoel de Barros (1916-2014) “Mundo pequeno, VII” in «O Livro das Ignorãças», 1993. Voz de Manoel de Barros em «Manoel de Barros», Audio-Livro, Ed. Cidade da Luz (Coleção Poesia Falada), São Paulo, 2001 Música: Virgina Astley, “With my eyes wide open I'm dreaming” in «From Gardens Where We Feel Secure», 1983