quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Nuno Júdice - Lusofonia

 


LUSOFONIA


rapariga: s.f., fem. de rapaz; mulher nova; moça; menina; (Brasil), meretriz.


Escrevo um poema sobre a rapariga que está sentada
no café, em frente da chávena do café, enquanto
alisa os cabelos com a mão. Mas não posso escrever este
poema sobre essa rapariga porque, no brasil, a palavra
rapariga não quer dizer o que ela diz em portugal. Então,
terei de escrever a mulher nova do café, a jovem do café,
a menina do café, para que a reputação da pobre rapariga
que alisa os cabelos com a mão, num café de lisboa, não
fique estragada para sempre quando este poema atravessar
o atlântico para desembarcar no rio de Janeiro. E isto tudo
sem pensar em áfrica, porque aí lá terei
de escrever sobre a moça do café, para
evitar o tom demasiado continental da rapariga, que é
uma palavra que já me está a pôr com dores
de cabeça até porque, no fundo, a única coisa que eu queria
era escrever um poema sobre a rapariga
do café. A solução, então, e mudar de café, e limitar-me a
escrever um poema sobre aquele café onde nenhuma rapariga se
pode sentar à mesa porque só servem cafés ao balcão.

Nuno Júdice


A Matéria do Poema, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008


(“Ao telemóvel” - Rapariga sentada no café... 1ª edição do encontro “Desenhar Viseu” Lápis de grafite e pastel de óleo. - José Carlos Carvalho - 11/02/2011)



segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Paulo Leminski - esquecimento





esquecimento

um dia sobre nós também
vai cair o esquecimento
como a chuva no telhado
e sermos esquecidos
será quase a felicidade

Paulo Leminski





(Pedro Domingos - A arte do esquecimento, 2015)

domingo, 10 de dezembro de 2023

Clarice Lispector - Um sopro de vida




Ângela

Meu ideal seria pintar um quadro de um quadro.

Vivo tão atribulada que não aperfeiçoei mais o que inventei em matéria de pintura. Ou pelo menos nunca ouvi falar desse modo de pintar: consiste em pegar uma tela de madeira – pinho de riga é a melhor – e prestar atenção às suas nervuras. De súbito, então, vem do subconsciente uma onda de criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as um pouco – mas mantendo a liberdade. Fiz um quadro que saiu assim: um vigoroso cavalo com longa e vasta cabeleira loura no meio de estalactites de uma gruta. É um modo genérico de pintar. E, inclusive, não precisa saber pintar: qualquer pessoa, contanto que não seja inibida demais, pode seguir essa técnica de liberdade. E todos os mortais tem subconsciente.

Você de repente não estranha de ser você?

Eu não sou uma sonhadora. Só devaneio para alcançar a realidade.


Clarice Lispector


Um Sopro de Vida (1970)


(Pintura de Clarice Lispector)



segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Adélia Prado - Bendito





BENDITO

Louvados sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo despojos,
– velho ao fim da guerra como uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvados sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!

Adélia Prado