sábado, 31 de julho de 2021

Rui Knopfli - Ilha dourada



ILHA DOURADA

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio
As gentes calam na
voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da "Amizade"
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento
 
Rui Knopfli


E para além dos versos, este brevo texto do próprio Knopfli:

Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo.

 
(Fotografia de António Alfarroba: Um adeus português, Ilha de Moçambique)


segunda-feira, 19 de julho de 2021

João Simões Lopes Neto - Contos gauchescos

Fotografia de Eduardo Amorim 

 

Da digressão longa e demorada, feita em etapas de datas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão vivaz e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade... Vi a colméia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na retina até o último milésimo da luz, a impressão da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para que a raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heróicos, pela integração da Pátria comum, agora abençoada na paz ...

Fragmento de "Contos Gauchescos", de João Simões Lopes Neto 

Lido aqui: Eduardo Amorim 


João Simões Lopes Neto (Pelotas, Rio Grande do Sul, 1865 — 1916), foi um escritor e empresário sul-rio-grandense e brasileiro. Segundo estudiosos e críticos de literatura, foi o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, pois procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições.



segunda-feira, 12 de julho de 2021

Mário de Sá-Carneiro - Feminina




FEMININA

Eu queria ser mulher para poder me estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

Eu queria ser mulher para não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro –
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer potins – muito entretida.

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar –
Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.

Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos – mesmo ao predileto –
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

Eu queria ser mulher para excitar que me olhasse,
Eu queria ser mulher para me poder recusar...

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Paris, fevereiro de 1916



"Este poema foi escrito cerca de dois meses antes de Mário de Sá-Carneiro se suicidar. Ficou, por muito tempo, esquecido na carta em que o enviou a Fernando Pessoa e onde perguntava: «Como você vê - isto promete, hein? Quando arranjar por completo o poema, enviar-lho-ei. Mas vá-me dizendo as suas impressões». O poema jamais foi concluído." por Cine Povero, canal de Youtube onde achámos este vídeopoema.




segunda-feira, 5 de julho de 2021

Marquesa de Alorna - Cantiga

Fotografia de Guillén Pérez



Sozinha no bosque
com meus pensamentos.
calei as saudades,
fiz trégua aos tormentos.

Olhei para a Lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida,
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a pensar.

Marquesa de Alorna 

D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, Marquesa de Alorna (Lisboa, 31/10/ 1750 – Lisboa, 11/10/ 1839)

Conhecida por “Alcipe”, nome que adoptou na Arcádia.

Poetisa, escreveu sobre literatura, sociedade e política, traduziu a Arte Poética de Horácio e o Ensaio sobre a Crítica de Pope.

V. Infopédia       



quinta-feira, 1 de julho de 2021

Carlos Drummond de Andrade - "A castidade com que abria as coxas..."

Fotografia de Cronópio


A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estrita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres

em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.

Carlos Drummond de Andrade


Do seu livro O Amor Natural, publicado postumamente em 1982. Drummond tinha morrido em 1978.