quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O banqueiro anarquista (Fernando Pessoa)



Ele tirou da boca o charuto, que se apagara; reacendeu-o lentamente; fitou o fósforo que se extinguia; depô-lo ao de leve no cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, um momento abaixada, disse: —Oiça. Eu nasci do povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligencia naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram dons naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar. 

Fui operário, trabalhei, vivi uma vida apertada; fui, em resumo,o que a maioria da gente é naquele meio. Não digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá perto. De resto, podia te-la passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou do que lhe vou expor, nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.

Fui um operário vulgar, em suma; como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar, e trabalhava o menos possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia, lia coisas, discutia coisas, e, como não era tolo, nasceu-me uma grande insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições sociais que o faziam assim. Já lhe disse que, em boa verdade, o meu destino podia ter sido pior do que era; mas naquela altura parecia-me a mim que eu era um ente a quem a Sorte tinha feito todas as injustiças juntas, e que se tinha servido das convenções sociais para mas fazer. Isto era aí pelos meus vinte anos —vinte e um o máximo— que foi quando me tornei anarquista.

Parou um momento. Voltou-se um pouco mais para mim. Continuou, inclinando-se mais um pouco. 

—Fui sempre mais ou menos lúcido. Senti-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me anarquista consciente e convicto —o anarquista consciente e convicto que hoje sou.

Fernando Pessoa

Excerto de O banqueiro anarquista, obra publicada pela primeira vez na revista Contemporânea a 1 de maio de 1922.