sexta-feira, 22 de junho de 2018

A terra onde a camioneta parava num largo (João Tunes)



A TERRA ONDE A CAMIONETA PARAVA NUM LARGO

Com os meus sete anos de idade tive direito às minhas primeiras férias de praia no Algarve. Iria para Sagres a banhos durante dois meses nas férias grandes. Na altura, primeira metade da década de 50, o Algarve não era terra de turismo, exceptuando a Praia da Rocha e pouco mais e mesmo aí com dimensões muito modestas. Os algarvios viviam, a maioria muito mal, da agricultura, da pesca, das conservas e da indústria corticeira concentrada em Silves. Aliás, nos seus modos de viver, a pobreza algarvia era uma continuidade da pobreza alentejana, numa homogeneidade de paisagem humana e social, com a excepção da dimensão das propriedades agrícolas (mais concentrada no Alentejo e mais dispersa no Algarve) e que só as serranias de fronteira davam conta da mudança de província. E se o turismo em todo o Algarve era minúsculo, em Sagres o único forasteiro (turista) a banhos era eu. A razão deste tamanho privilégio devia-se à Dona Francisca, uma algarvia nómada que fazia temporadas de costura como modista em Lisboa, recolhendo-se à sua terra durante o verão em retorno à sua condição de pequena camponesa e cujos magros proventos compunha com os ganhos amealhados a costurar na capital. Como a senhora costurava para a minha Tia Ana, foram ajustadas com ela umas férias algarvias para o sobrinho enfezado e a quem talvez o iodo e umas braçadas ajudassem a encorpar. E foi assim, em suplemento de receita para a Dona Francisca, que ela se dispôs a ser minha hospedeira turística e eu usufrui dessa regalia a poucos acessível de me tornar um dos poucos turistas no Algarve da época.

Mas para veranear em Sagres, havia que lá chegar e usando os vagarosos meios de transporte daquele tempo e em que poucos eram os passageiros com tal destino. Fui metido mais a mala de bagagem na camioneta da carreira da Companhia dos Belos que saía de Cacilhas e ia até Faro. A mala foi guardada no tejadilho da camioneta juntamente com as tralhas dos restantes passageiros. De cada vez que a camioneta parava, o motorista subia ao tejadilho através de uma escada metálica e descarregava as malas e embrulhos dos que se apeavam e iam indicando quais os seus pertences e depois carregava as mercadorias acartadas pelos novos passageiros que se iam juntando à viagem. Eu tinha a recomendação que devia descer em Lagos, onde a Dona Francisca me esperava para me levar, noutra ligação rodoviária, para Sagres. Era a minha primeira viagem entregue a mim próprio. Perguntei como é que eu saberia quando tinha chegado a Lagos. Explicaram-me que Lagos era uma terra grande e a camioneta parava num largo, logo que lá chegasse disso me daria conta. Tentei fixar estes pormenores que eram fundamentais para me orientar. Repeti para comigo diversas vezes: “Lagos é uma terra grande e lá, a camioneta pára num largo”. Feitas as despedidas, a camioneta arrancou. Ao passar por Setúbal, a viagem já me parecia muito comprida. Tanto o tempo demorava a passar e o desfilar da paisagem pela janela me surgia monótona que me convenci que, passado que era essa tal terra grandinha de Setúbal, já não devia faltar muito para o meu destino. O Algarve, Lagos, devia ser um bocado mais à frente mas não muito. A camioneta entra em Alcácer do Sal sem me aperceber do nome da terra em que tinha entrado, vejo compridos casarios e dou com a camioneta a parar num largo. Sobressaltei-me com aquela visão de um largo, lembrando que a camioneta parava em Lagos num largo, apresto-me a sair, suando com o receio de passar Lagos e ir parar a um destino mais longínquo onde nunca mais encontraria a Dona Francisca. Peço ao motorista que tire a minha mala do tejadilho. Indico qual é e num instantinho já a tinha ao pé de mim. Olho em volta e não vejo sinal da Dona Francisca ou de quem, a seu mando, desse sinais de me esperar. Aflijo-me sem capacidade de reacção, a mala ao meu lado em companhia inerte. O motorista prepara-se para retomar a marcha mas um sexto sentido fá-lo reparar no meu ar em bloqueio aflito. Desce da camioneta e pergunta-me se está tudo bem. Eu explico que não vejo quem me vinha buscar a Lagos para me levar para Sagres. “Lagos? Sagres? Estamos em Alcácer”. É a minha vez de não entender o que se passava. “Alcácer? Mas eu quero ir para Lagos”. O motorista volta a carregar a maleta no tejadilho da camioneta, manda-me subir e diz para estar tranquilo que, quando chegasse a Lagos, me avisaria. A viagem pareceu-me interminável. E, para atrapalhar, em quase todas as terras onde a camioneta parava, havia largos. Fixava crispado o motorista pois estava sempre com um tremendo medo de o homem se esquecer de mim e passar à frente de Lagos. A solução era fixar, placa a placa, os nomes de todas as terras. Mas os nomes que ia vendo desfiarem-se perante os meus olhos nada me diziam. Cercal seria antes ou depois de Lagos? E Milfontes? E Aljezur? A concentração e o nervoso eram tantos que não toquei na merenda que me tinha sido preparada para a viagem para os confins do Sul. Não me podia distrair e o nervoso afugentava a fome. Lá cheguei a Lagos, com aviso prévio dado pelo motorista. E passada mais uma viagem adicional, já estava instalado na casa da Dona Francisca para início das minhas primeiras férias algarvias, estreando o turismo de praia em Sagres.

No regresso, tudo foi mais fácil. A camioneta dos Belos parava em Cacilhas e imobilizava-se a olhar para o Tejo, a bisbilhotar os passageiros dos cacilheiros. No meu raciocínio de então, formulei o juízo definitivo de que as camionetas estavam muito mal organizadas. Elas deviam sair de um sítio até outro sem paragens pelo meio que só serviam para baralhar os passageiros. O certo é que daquelas longas férias de praia algarvia só acessível a um forasteiro privilegiado, mais que dos banhos e das brincadeiras, que foram prazenteiras e com muito bom trato da hospedeira, no que a minha memória ficou mais marcada foi a odisseia e sofrimento para chegar a Lagos, uma terra onde a camioneta parava num largo.

João Tunes


Lido no blogue Caminhos da memória (28 de julho de 2009)


João Tunes, um dos autores do blogue Caminhos da Memória, fala nele sobre si:

Sou homem de voltas trocadas. Transmontano de nascimento, fui criado como barreirense adoptivo. Filho biológico de camponeses com fome em demasia, uns parentes piedosos adoptaram-me para que tivesse “algum futuro”. Como estudante, andei mais na luta que de volta das “sebentas”. Pugnando pela liberdade, puseram-me a dormir em Caxias. Paisano enraizado, fardaram-me e fizeram-me oficial de comandar tropa para disparar canhão. Militante da luta anti-colonial, fiz comissão onde a guerra ferveu mais, na Guiné. Tendo gasto a juventude a intoxicar-me vivendo o fascismo à portuguesa, quando vinda a democracia, virei militante comunista a querer saltar para a revolução. Ateu e anticlerical de pequeno, sempre houve padres católicos que insistiram em serem meus amigos. Fui quadro técnico de uma grande empresa e, em vez de cuidar da carreira, andei feito dirigente sindical da classe operária organizada. Aliviei-me, farto, de tanta contradição. Quase só me resta o nojo pelas ditaduras (todas). Tento, com o jeito possível, dar testemunho, sobretudo dos meus enganos (que é do que mais sei em política). E olhar sempre nos olhos filhos e netos. Espero morrer coerente. Finalmente.


EDITORIAL

Caminhos da Memória é um blogue que pretende dar voz a formas de lembrar, de evocar e de interpretar o passado, recorrendo a leituras contemporâneas da história e da memória.

Procurará fazê-lo recorrendo a diferentes formulações que se coadunem com as características específicas da blogosfera e que ajudem a desenhar percursos para redescobrir os legados que recebemos do país e do mundo.

Incluirá também informação sobre documentos, livros, filmes e eventos relacionados com os objectivos que nos propomos perseguir, bem como ligações a instituições, publicações e blogues que privilegiem temas ligados à memória e à história.

O núcleo redactorial é constituído maioritariamente, por membros da Associação «Não Apaguem a Memória!», mas este blogue não compromete a direcção daquela Associação e mantém com a mesma um relacionamento puramente informal. No entanto, acompanhará de perto as suas actividades e está empenhado em contribuir para o desenvolvimento das mesmas.

(...)

Editorial de Caminhos da Memória


A última mensagem foi publicada a 16 de maio de 2010.