Família
A toalha de mesa era nova e só se usava nesses
almoços de domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao
centro da mesa, ao lado do vinho. Antes, o meu pai tinha-me mandado à
venda. Levava uma alcofa com duas garrafas vazias. O cheiro do vinho
tinto estava entranhado nas paredes. Nessas horas, fim da manhã de
domingo, atravessava as fitas e não estava ninguém na venda, só a caixa
das pastilhas de mentol e uma cadela que não se incomodava com a minha
presença. Tinha de bater com a palma da mão no balcão, que me chegava à
altura dos ombros, e, meio tímido, tinha de chamar: Ti Lourenço, Ti
Lourenço. Quando chegava, trazia a sua calma e o seu bigode. Trocava a
garrafa vazia de laranjada por uma cheia e acertava o gargalo da outra
garrafa na torneira do barril. Eu pagava com o número certo de notas de
vinte e moedas de cinco escudos.
Nesses dias, não faltava sol no quintal. Agora, parece-me que eram
sempre domingos de uma primavera em que já se imaginava o verão. E as
galinhas debatiam um assunto calmo na capoeira, as coelhas ameigavam os
filhos na coelheira, os pombos atiravam-se em voos desde o pombal. A
claridade desse tempo entrava pela janela e pousava sobre a mesa posta, a
melhor terrina com canja, os melhores copos, os guardanapos dos dias de
festa. A televisão a cores brilhava. Estava ligada e não importa o que
estivesse a dar, programas religiosos, concertos em Viena, grandes
prémios intermináveis de automobilismo, qualquer coisa era boa e
acrescentava cor à nossa tarde. Eu tinha entre seis e treze anos
(1980-1987).
Depois, chegou uma altura em que essa toalha de mesa, já mais
desbotada, começou a ser usada nas refeições dos dias de semana. Lavada
muitas vezes, tornou-se mais suave ao toque. Ganhou nódoas que já não
saíam e, um dia, tornou-se demasiado velha até para esse uso. Então, a
minha mãe rasgou-a e transformou-a num esfregão. Agora, até esse dia é
remoto. Até o dia em que a minha mãe decidiu pôr o esfregão no lixo é
remoto.
Esses almoços de domingo moldaram a minha vida.
Quando era pequeno, qualquer tarefa me absorvia por completo. Se
decidia fazer uma torre de lego, não tinha mais pensamentos enquanto
escolhia as peças e as encaixava umas nas outras. Hoje, não há nada que
seja capaz de me prender a atenção dessa forma. Aconteceram muitas
coisas ao meu olhar.
Tenho a idade que os meus pais tinham durante esses almoços e
pergunto-me se eles olhariam para mim da maneira que eu, agora, olho
para os meus filhos. Nesse tempo, os meus filhos e as minhas sobrinhas
não existiam. A parte do mundo em que eles não existiam era cruel.
Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu
crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu
pai sem estar cá.
Pergunto-me como é que a minha mãe, que foi menina num tempo que
imagino a partir de poucas fotografias, que tratou de todos os almoços
de quando eu era pequeno, vê este tempo, sentada no seu lugar, a ser
tratada por avó pela voz destas crianças à espera de crescerem e de,
também elas, ocuparem todos os lugares da mesa.
Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num
dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos
misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para
mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas.
Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de
cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de
domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa.
Não tenho casa para almoços de domingo.
Recebo mensagens no telemóvel a lembrarem-me de trabalhos que tenho
de fazer até amanhã. Não os tinha esquecido, claro. As minhas sobrinhas
e os meus filhos falam de algo que não entendo, um jogo de computador, o
Justin Bieber ou um lutador de wrestling. As minhas irmãs entram nas
divisões com travessas saídas do forno. A minha mãe pergunta-me se já
paguei a segurança social. Está preocupada. Depois de lhe garantir que
vou pagar amanhã, repete esse pedido três vezes, quatro vezes. Olho para
ela e, em silêncio, peço-lhe para não envelhecer mais.
A toalha de mesa é nova. A toalha de mesa é sempre nova.