A ORTOGRAFIA É ESTÚPIDA
O meu pai escrevia o meu nome com "e". Enviava fotos legendadas à minha avó dizendo, "nesta, vê-se a Esabela a brincar com os gatos de um cantineiro nosso amigo".
Após conferência comigo sobre o assunto, o meu pai, que não era linguista, nem nada que se pareça, concluiu que escrevia Isabela com "e", e via dessa forma o nome, porque aprendera a grafá-lo assim quando andara na escola. Anos 30. Que nos anos 60 lhe tenham registado administrativamente o nome da filha com i, isso já era assunto que o transcendia, coisas lá do registo, porque quando pronunciou Isabela, o que enunciou foi Esabela. Não me sabia explicar por que motivo o "e" se tinha transformado em "i", tinha apenas uma pista: aquela a que chamávamos rainha Isabel II de Inglaterra, em inglês chamava-se Elisabeth, portanto o meu nome devia ser uma tradução. Devia ser Elisabeta, Elisabela, e depois, sabe-se lá como, Isabela. Achávamos nós, mas nunca ninguém nos explicou, porque não tínhamos nenhum doutor na família, e livros só na biblioteca itinerante da Gulbenkian.
Mais tarde, no colégio, o meu director, que tinha 90 anos nos anos 70, chamava-me igualmente a sua Esabela, nome próprio que escrevia em todos os documentos oficiais do colégio, o que muito me exasperava: a sua Esabela, a sua Zabelita. Na secretaria alguém lhe corrigia a grafia, para bem do meu processo curricular oficial.
O que o meu pai e o sr. Ilídio faziam era manter uma antiga regra ortográfica que aprenderam como correcta. Era como se alguém agora me viesse dizer que privilégio passou a escrever-se previlégio. Ou, afinal, que já não se escreve "emoção" e "elegante" mas, por força do uso fonético indevido, "imoção" e "ilegante". Meu Deus, meu Deus, tranformar o "e" num "i" que poderia ser confundido com um prefixo de negação em vocábulos que nada negam. Ultraje. E que violência!
As questões ortográficas levantam muitas questões emocionais, porque me parece que cada um de nós sente a ortografia como parte da sua identidade; como a caligrafia, o timbre da voz, a cor dos olhos, as linhas das mãos. É, portanto, impensável alterar essa parte da nossa identidade. É uma resistência, mas não um capricho. As pessoas têm as suas razões. Quem aprendeu a escrever Esabela com "e", e assim formou a sua identidade linguística, tem o direito de continuar a fazê-lo. Exactamente como quem escreve farmácia com ph. Sou cliente da Pharmácia Mendes da Silva. Qual é o problema? É apenas uma palavra escrita com uma ortografia que para mim é arcaica, mas eu tenho que conviver linguistica, social e civicamente com tantas outras atitudes arcaicas, e algumas bem graves.... e que remédio! É apenas uma palavra!
Tanto compreendo que os intelectuais, cultos, aculturados sejam contra o acordo ortográfico como que, ao povão, o assunto, rigorosamente, não interesse. Peço muita desculpa, sobretudo aos professores de Português que se descabelam corrigindo composições pejadas de erros ortográficos, e se matam em nome de uma norma, mas a ortografia é como as plantas selvagens: nasce onde calha, como calha, e o que interessa é que consiga sobreviver, realizar a fotossíntese e morrer quando chega o Inverno. A ortografia, desculpem-me, é estúpida como um calhau. Já conheci pessoas de uma enorme inteligência emocional e científica que, ao escrever uma frase, era cada tiro ortográfico, cada melro. Portanto, isto com toda a sinceridade, eu quero que a ortografia... vá dar uma volta, por exemplo. Já a sintaxe pia mais fininho, porque reflecte a organização do pensamento. A sintaxe está coladinha ao raciocínio lógico-dedutivo.
A ortografia consiste num conjunto de regras que permitem registar as emissões sonoras da língua. Ponto final. O objectivo primeiro é comunicar. Ponto parágrafo. O objectivo segundo, parecer bem e ascender social e profissionalmente. Ou seja, escrever de acordo com a norma e conhecer as regras da ortografia categoriza os indivíduos como melhores ou piores, o que é de um elitismo que só a nossa sociedade, irracional, pode encaixar e suportar. Mas ninguém é obrigado a grafar correctamente, se não teve os meios para isso, ou se não quis. É esse o motivo por que qualquer entidade pública ou privada é obrigada a aceitar e responder a uma reclamação, petição, impugnação, seja qual for o nível de correcção ortográfica que se apresente, desde que a mensagem se faça comunicar. Porque a língua serve para comunicar, e o resto é estilo.
A minha mãe fez a terceira classe com regente, porque o meu avô era um homem progressista, e retirou os filhos à fazenda para os levar à escola - olhem que no Ribatejo, nos anos 30, poucos pais do campo manifestavam preocupações desta ordem. Regalo-me ao ler as listas de compras que a minha mãe me escreve. Sorrio com ternura porque aquilo é que é mesmo o Português verdadeiro, o portuguezinho retinto: um quilo de arrôs; um pacote de maça pevide; maçãs de Alcobaça, das pequenas; um quilo de qivis; trez crujetes para sopa; grão; fajão; grêlos; cove branca... Quando leio as listas da minha mãe, que são perfeitas, que se comunicam melhor que Deus, lembro-me sempre de quem quase vive ou morre porque uma consoante muda pode cair.
Do que eu gosto nas línguas é do seu carácter insurrecto. É o que queremos dizer quando largamos aquela frase, que soa muito bem, sobre as línguas serem organismos vivos. Um organismo vivo evolui, adapta-se, muda. E é assim sem tirar nem pôr. As línguas estão-se nas tintas para o que pensamos que elas devem ser. São o que lhes dá mais jeito. Tanto na sua forma verbal oral como escrita. E vencem. Isso de associarmos diversas questões de classe e poder ao exercício da língua transcende-as. Querem elas lá saber se as legislam! Quando as legislam já elas estão além.
Sobre o acordo ortográfico, sinceramente, gasta-se muita tinta. As pessoas devem escrever como são capazes, e deixar os outros escrever como sabem e podem, excepção seja feita aos professores de Português que devem ensinar a norma em vigor e corrigir os desvios. Não creio que um acordo ortográfico, mesmo que concordando com ele na sua essência, que é o meu caso, sirva os indivíduos já formados como eu. O acordo ortográfico servirá parcialmente aqueles que ainda estão no sistema de ensino e que já escreviam acto sem t, e a nível profundo os que forem agora para a escola, fenómeno que se tornará visível dentro de década e meia. Nessa altura talvez cada um de nós comece a mudar, devagarinho. Para os que têm medo que ato se torne confuso, não se sabendo quando é um verbo ou um nome, resta-me sossegá-los lembrando-lhes que todos os enunciados linguísticos dependem de um contexto, e não vivem fora dele; como vale, que pode ser postal, ou verbo valer, ou designação geográfica. E se há confusão perguntamos, vale, que vale?
E rio. Eu, às vezes, rio ao pé do rio. Às vezes digo à senhora dos correios que não vale a pena mandar o vale, porque o carteiro não faz distribuição naquele vale, lá tão longe, para lá do rio onde tantas vezes me rio, rio, rio.
A mim o que chateia mesmo, mesmo a sério é o dente do siso do lado esquerdo. Dói-me. Tem um buraco até aos joelhos, e nem tempo tenho de o ir arrancar. Se houvesse aí alguém com um tira-dentes à século XIX, eu tomava uns Xanaxes antes, e uns Clavamoxes depois, e resolvia-se a empreitada, hein?! E o blogue continuava interactivo...
Isabela Figueiredo
Retirado do seu blogue -fora a fotografia- O Mundo Perfeito (6 de junho de 2008)
O meu pai escrevia o meu nome com "e". Enviava fotos legendadas à minha avó dizendo, "nesta, vê-se a Esabela a brincar com os gatos de um cantineiro nosso amigo".
Após conferência comigo sobre o assunto, o meu pai, que não era linguista, nem nada que se pareça, concluiu que escrevia Isabela com "e", e via dessa forma o nome, porque aprendera a grafá-lo assim quando andara na escola. Anos 30. Que nos anos 60 lhe tenham registado administrativamente o nome da filha com i, isso já era assunto que o transcendia, coisas lá do registo, porque quando pronunciou Isabela, o que enunciou foi Esabela. Não me sabia explicar por que motivo o "e" se tinha transformado em "i", tinha apenas uma pista: aquela a que chamávamos rainha Isabel II de Inglaterra, em inglês chamava-se Elisabeth, portanto o meu nome devia ser uma tradução. Devia ser Elisabeta, Elisabela, e depois, sabe-se lá como, Isabela. Achávamos nós, mas nunca ninguém nos explicou, porque não tínhamos nenhum doutor na família, e livros só na biblioteca itinerante da Gulbenkian.
Mais tarde, no colégio, o meu director, que tinha 90 anos nos anos 70, chamava-me igualmente a sua Esabela, nome próprio que escrevia em todos os documentos oficiais do colégio, o que muito me exasperava: a sua Esabela, a sua Zabelita. Na secretaria alguém lhe corrigia a grafia, para bem do meu processo curricular oficial.
O que o meu pai e o sr. Ilídio faziam era manter uma antiga regra ortográfica que aprenderam como correcta. Era como se alguém agora me viesse dizer que privilégio passou a escrever-se previlégio. Ou, afinal, que já não se escreve "emoção" e "elegante" mas, por força do uso fonético indevido, "imoção" e "ilegante". Meu Deus, meu Deus, tranformar o "e" num "i" que poderia ser confundido com um prefixo de negação em vocábulos que nada negam. Ultraje. E que violência!
As questões ortográficas levantam muitas questões emocionais, porque me parece que cada um de nós sente a ortografia como parte da sua identidade; como a caligrafia, o timbre da voz, a cor dos olhos, as linhas das mãos. É, portanto, impensável alterar essa parte da nossa identidade. É uma resistência, mas não um capricho. As pessoas têm as suas razões. Quem aprendeu a escrever Esabela com "e", e assim formou a sua identidade linguística, tem o direito de continuar a fazê-lo. Exactamente como quem escreve farmácia com ph. Sou cliente da Pharmácia Mendes da Silva. Qual é o problema? É apenas uma palavra escrita com uma ortografia que para mim é arcaica, mas eu tenho que conviver linguistica, social e civicamente com tantas outras atitudes arcaicas, e algumas bem graves.... e que remédio! É apenas uma palavra!
Tanto compreendo que os intelectuais, cultos, aculturados sejam contra o acordo ortográfico como que, ao povão, o assunto, rigorosamente, não interesse. Peço muita desculpa, sobretudo aos professores de Português que se descabelam corrigindo composições pejadas de erros ortográficos, e se matam em nome de uma norma, mas a ortografia é como as plantas selvagens: nasce onde calha, como calha, e o que interessa é que consiga sobreviver, realizar a fotossíntese e morrer quando chega o Inverno. A ortografia, desculpem-me, é estúpida como um calhau. Já conheci pessoas de uma enorme inteligência emocional e científica que, ao escrever uma frase, era cada tiro ortográfico, cada melro. Portanto, isto com toda a sinceridade, eu quero que a ortografia... vá dar uma volta, por exemplo. Já a sintaxe pia mais fininho, porque reflecte a organização do pensamento. A sintaxe está coladinha ao raciocínio lógico-dedutivo.
A ortografia consiste num conjunto de regras que permitem registar as emissões sonoras da língua. Ponto final. O objectivo primeiro é comunicar. Ponto parágrafo. O objectivo segundo, parecer bem e ascender social e profissionalmente. Ou seja, escrever de acordo com a norma e conhecer as regras da ortografia categoriza os indivíduos como melhores ou piores, o que é de um elitismo que só a nossa sociedade, irracional, pode encaixar e suportar. Mas ninguém é obrigado a grafar correctamente, se não teve os meios para isso, ou se não quis. É esse o motivo por que qualquer entidade pública ou privada é obrigada a aceitar e responder a uma reclamação, petição, impugnação, seja qual for o nível de correcção ortográfica que se apresente, desde que a mensagem se faça comunicar. Porque a língua serve para comunicar, e o resto é estilo.
A minha mãe fez a terceira classe com regente, porque o meu avô era um homem progressista, e retirou os filhos à fazenda para os levar à escola - olhem que no Ribatejo, nos anos 30, poucos pais do campo manifestavam preocupações desta ordem. Regalo-me ao ler as listas de compras que a minha mãe me escreve. Sorrio com ternura porque aquilo é que é mesmo o Português verdadeiro, o portuguezinho retinto: um quilo de arrôs; um pacote de maça pevide; maçãs de Alcobaça, das pequenas; um quilo de qivis; trez crujetes para sopa; grão; fajão; grêlos; cove branca... Quando leio as listas da minha mãe, que são perfeitas, que se comunicam melhor que Deus, lembro-me sempre de quem quase vive ou morre porque uma consoante muda pode cair.
Do que eu gosto nas línguas é do seu carácter insurrecto. É o que queremos dizer quando largamos aquela frase, que soa muito bem, sobre as línguas serem organismos vivos. Um organismo vivo evolui, adapta-se, muda. E é assim sem tirar nem pôr. As línguas estão-se nas tintas para o que pensamos que elas devem ser. São o que lhes dá mais jeito. Tanto na sua forma verbal oral como escrita. E vencem. Isso de associarmos diversas questões de classe e poder ao exercício da língua transcende-as. Querem elas lá saber se as legislam! Quando as legislam já elas estão além.
Sobre o acordo ortográfico, sinceramente, gasta-se muita tinta. As pessoas devem escrever como são capazes, e deixar os outros escrever como sabem e podem, excepção seja feita aos professores de Português que devem ensinar a norma em vigor e corrigir os desvios. Não creio que um acordo ortográfico, mesmo que concordando com ele na sua essência, que é o meu caso, sirva os indivíduos já formados como eu. O acordo ortográfico servirá parcialmente aqueles que ainda estão no sistema de ensino e que já escreviam acto sem t, e a nível profundo os que forem agora para a escola, fenómeno que se tornará visível dentro de década e meia. Nessa altura talvez cada um de nós comece a mudar, devagarinho. Para os que têm medo que ato se torne confuso, não se sabendo quando é um verbo ou um nome, resta-me sossegá-los lembrando-lhes que todos os enunciados linguísticos dependem de um contexto, e não vivem fora dele; como vale, que pode ser postal, ou verbo valer, ou designação geográfica. E se há confusão perguntamos, vale, que vale?
E rio. Eu, às vezes, rio ao pé do rio. Às vezes digo à senhora dos correios que não vale a pena mandar o vale, porque o carteiro não faz distribuição naquele vale, lá tão longe, para lá do rio onde tantas vezes me rio, rio, rio.
A mim o que chateia mesmo, mesmo a sério é o dente do siso do lado esquerdo. Dói-me. Tem um buraco até aos joelhos, e nem tempo tenho de o ir arrancar. Se houvesse aí alguém com um tira-dentes à século XIX, eu tomava uns Xanaxes antes, e uns Clavamoxes depois, e resolvia-se a empreitada, hein?! E o blogue continuava interactivo...
Isabela Figueiredo
Retirado do seu blogue -fora a fotografia- O Mundo Perfeito (6 de junho de 2008)