terça-feira, 14 de setembro de 2010

O caixão do Molhado (Pepetela)



SÔ BELARMINO MOREIRA nasceu na cidade do Porto, cidade que ele nunca nomeava pela designação oficial, mas pela carinhosa de «Invicta». O feliz acontecimento que o trouxe ao mundo aconteceu em 1918, num dia que culminava uma semana inteira de chuva ininterrupta na Península Ibérica e arredores. Por isso o rio ameaçava galgar todos os muros e obstáculos que ao longo da Ribeira as pessoas tinham acumulado à força de braços e também dos músculos dos mulos, para evitar a inundação. Trabalho insano e praticamente inútil, pois no momento em que a mãe o empurrou para a vida ao ar livre, Belarmino escapou às mãos cansadas da parteira e mergulhou pela primeira vez na água do Douro, que por essa altura já subia a vinte centímetros no chão da casa. Por isso o seu primeiro nome não foi Belarmino, como o conheceremos mais tarde, mas «Molhado», como lhe chamaram sempre na cidade natal. O pai, vagamente adepto da Maçonaria e declaradamente anticlerical, arranjou no facto pretexto para não permitir que fosse baptizado, já lhe chegava de águas, coitadinho, que mal saiu do calorzinho aconchegante do ventre materno logo mergulhou no Douro castanho e gelado.

Muito mais tarde falaria sempre a brincar do seu primeiro nome de Molhado. Mas descrevia com supersticiosa reserva, já muito a sério, a primeira visão que teve de uma outra cheia do Douro, aos quatro anos de idade. A visão que para sempre o marcou foi a do cadáver de um homem a passar no rio que corria, inchado, à frente da sua casa. Sempre associou as cheias do Douro a esse instante de mudo terror. E registou, com notável precisão, o infortúnio desmedido de se passar silenciosamente à frente de uma cidade, sem um caixão que resguardasse a face morta e pálida dos curiosos olhares dos outros.

Quando o Molhado tinha cinco anos, o pai partiu para Angola, tentar a sorte. E quatro depois, seguiu a família, ele, a mãe, e três irmãos. Para trás ficou definitivamente o Douro e suas cheias. E quando lhe perguntavam na escola de Luanda de onde tinha vindo ele respondia sempre da Invicta, pois claro. Viveu no alto da Boavista, num sítio onde havia poucas casas e piores estradas, sobretudo quando chovia. Deste sítio do outro lado do mundo também via água ao sair de casa. Só que esta era do mar e contida numa calma e belíssima baía azul com coqueiros e palmeiras à volta. Se apaixonou pela diferença de cores e nunca mais quis mudar de sítio. E, por morar na Boavista de Luanda, se tornou adepto ferrenho do clube de futebol Boavista, do mesmo nome mas do Porto.

Pepetela

Do seu livro Contos de Morte. Caxinde, 2008

O conto completo aquí, no blogue Contos de Aula.



Escritor angolano, Pepetela é um dos nomes mais relevantes da literatura contemporânea de língua portuguesa. Em 1997 foi galardoado com o Prémio Camões, considerado o mais importante prémio literário para autores de língua portuguesa.

Pepetela, de nome próprio Artur Pestana, nasceu em Angola, na província litoral de Benguela, aos 29 de Outubro de 1941. Descendente de uma família colonial, os seus pais eram, no entanto, já nascidos em Angola.

Resto da biografia em C.I.T.I.