terça-feira, 7 de maio de 2019

Entrevista a Dulce Maria Cardoso (DN, 17-08-2016)

Fotografia de Gustavo Bom / Global Imagens


Entrevista a Dulce Maria Cardoso realizada por Fernanda Câncio, e publicada no Diário de Notícias no dia 17 de agosto de 2016.


Dulce Maria Cardoso: "O que me fez pensar no que andamos aqui a fazer foi o olhar de um cão"

O passado é o sítio mais perigoso, diz a autora de O Retorno, que também por isso - e por causa do regime - nunca voltou a Angola. Conversa sobre quase tudo, do amor ao veganismo a deus. E à escrita, claro.


Comeu muitas cerejas neste ano?

Em maio fui convidada para ir ao festival da Gardunha e uma das coisas que me levaram a aceitar foram as cerejas. No ano passado, disseram-me, era toda a gente com cestas de cerejas. Mas este foi um ano mau, nem uma. Pensei: qualquer dia são mesmo mitológicas.

É a sua fruta mítica, por não haver em África. Quem lhe falou delas?

A minha irmã, cinco anos mais velha. Dizia que era uma coisa pequenina, redonda, muito docinha. E nos casamentos e batizados, quando queriam ser mesmo finos, arranjavam umas cerejas. Chegavam lá todas mirradas mas as pessoas olhavam para aquilo com um ar de maravilhamento. Já teria uns 8 anos quando finalmente comi uma. E achei aquilo terrível. Pensei: porque é que andam a falar disto? Quando cá cheguei comi e continuei sem achar piada. Tinha muitas saudades era das mangas, dos abacates, do abacaxi. Agora como os frutos todos. Sendo que se estiver doente ou mais triste procuro as comidas mais de lá. E há coisas que sinto... Por exemplo a primeira vez que fui ao Brasil e vi um homem a cortar um coco com uma catana. Sabia os gestos. Nunca mais tinha visto mas quando vi, eu sabia. E depois foi o sumo de caju. Também nunca mais tinha bebido, deram-me, estavam mais portugueses e ninguém identificou e eu disse: é caju. A memória dos sabores e dos gestos... Fica tudo marcado. Se tiver 100 anos bastar-me-á muito pouco para estar outra vez nas ruas cheias de terra vermelha e aquele calor e aquilo tudo...

Ruas onde nunca mais foi.

Nunca mais.

Porquê?

Ao princípio era por razões óbvias: era miúda, havia guerra, não tinha dinheiro, etc. Quis muitas vezes voltar, mais não seja que para confirmar. E uma das coisas piores é que não posso confirmar nada - dizer era aquela rua, era aquela escola, era assim. Perdeu-se para sempre. Mas quando comecei a publicar surgiram convites e tive de decidir. E aí pensei que eu, que critico tanto o regime angolano, não podia aceitar o convite desse mesmo regime. Não faz sentido aceitar para ir dizer mal das pessoas que te convidam.

Podia ir de férias.

Isso ainda não consegui achar que se justifica.

Tem medo?

Sim. O passado é um sítio muito perigoso. É talvez o sítio mais perigoso de todos. Não conheço sítio mais perigoso. Tem muitas armadilhas. E podes modificar o passado, que é uma coisa que não sabia até há pouco tempo. Refazê-lo. Podes ficcionar de tal maneira que o teu passado passa a ser outro. Aconteceu-me agora. À força de ter ficcionado a escrever O Retorno e de ser partilhado com tanta gente, o meu passado angolano já inclui aquela ficção. Mas também tenho muito pudor em visitar sítios onde se praticam coisas contra os direitos fundamentais. Muitas dúvidas sobre a fronteira entre ser cúmplice e ser testemunha. Ao ver os números assustadores de Angola - de mortalidade infantil, de assimetria social, de corrupção, etc., acho que conhecendo-me como me conheço não ia para o Mussulo [zona de praia perto de Luanda] banhar-me. Não teria prazer nisso. Se me sinto mal no Brasil, sinto-me mesmo mal, apesar de gostar muito da temperatura, da beleza... As babás, aquela coisa das fardas, dos carros de vidros fumados, das favelas, é tão agressivo que a não ser que tenhas umas palas gigantescas... Agora, há uma coisa: temos muita dificuldade em abrir mão do que nos sabe bem, do que nos dá conforto. E as pessoas têm a ingenuidade de pensar que não lhes vai chegar. E às vezes não chega, porque as vidas são curtas. Mas chegará aos filhos, aos netos. Porque a injustiça, a fome, as torturas que infligimos aos que têm menos poder... há uma altura em que a coisa muda. E é terrível. Como sucedeu com o nosso processo de independência. Há uma altura em que é tarde de mais. E em Angola não pode haver dúvida, por mais que a filha do presidente diga que começou a trabalhar muito cedo, ela não pode ter dúvida alguma de que os números da fortuna dela, num país em que a mortalidade infantil é o que é, são obscenos. Não pode haver dúvida sobre isso, não há anestesia nenhuma que te impeça de ver. Mas tens esse poder e não abres mão.

Custa abrir mão quando se tem o poder. Numa entrevista fala da invisibilidade dos negros cá: não se veem na TV, na rua. E fala da "não oportunidade" como a mais grave das discriminações, pior do que chamar preto. Como é que ainda estamos assim, tantos anos depois?

Não são muitos anos. São muitos mas não são muitos. Comparados com outros países são muito poucos. Há 40 e tal anos ainda estávamos, nós, mulheres, com autorização para sair do país. Isto evoluiu muito mas estávamos muitíssimo atrasados. Sou uma otimista, vivemos muito melhor agora. Mas há muito ainda para fazer.

Os EUA nos anos 1960 ainda tinham a segregação racial na lei.

Mas ainda hoje nos EUA há sítios de um racismo absoluto, o Sul... Em termos formais não, porque são muito vigiados. Há o problema de brutalidade policial... Não acho que o facto de haver um presidente negro queira dizer que a questão está resolvida. Sempre achei que não estava. E o fenómeno Trump veio dar-me razão.

Não está resolvida mas fala-se dela. Aqui nem se fala do assunto, como se o problema não existisse.

Mas existe, claro. Há quem diga que aquelas pessoas são invisíveis porque não querem ser visíveis. Mas então porque é que vivem em grupo, em sítios que são dos piores? Porque é que não vão os brancos para lá? Se é igual, não percebo. Mas no outro dia estive num debate sobre racismo na RTP com um negro a dizer que nunca sentiu racismo, nunca se sentiu discriminado.

Também há mulheres que dizem que nunca sentiram o machismo.

Pois. Muitas vezes as vítimas não querem ser vítimas. Sentem-se envergonhadas, que assumir ser vítima é passarem-se um atestado de menoridade. Uma coisa engraçada a propósito de machismo: dizem-me muitas vezes que os meus livros parecem escritos por homens. Que há uma maneira de pensar masculina. E isto tem a ver com o quê? Dizem que há crueza. A maneira como abordo o sexo, por exemplo.

Sim, pode ser muito crua, até cruel. Como em Os Meus Sentimentos, o seu segundo romance.

Mas a vida é cruel. Gostava de não ter matéria para que aquilo fosse tão cruel. Que não fosse assim.

No caso do Retorno, porém, deixou muito do horror fora do livro. Houve um amigo seu - o protagonista do livro é masculino por causa dele - cujo irmão foi morto, uma grávida violada e esventrada. Não usou nada disso.

Porque quando cozinhas, o mais é... Se tens todos os ingredientes à tua disposição e puseres as especiarias todas no prato fica intragável. Aquilo já é um pano histórico único. Os hotéis são a solução mais aberrante que podes imaginar para pôr as pessoas. Já era tão violenta aquela deslocação de meio milhão, se depois ainda puseres uma violada, um morto... Quis mostrar que a perda foi sobretudo afetiva. E que não havia lados. Não houve lados. Aquilo que os negros fizeram depois do 25 de Abril é perfeitamente natural. O decurso de acontecimentos era perfeitamente natural.

Natural no sentido de refluxo, de violência vai, violência vem?

Sim. Era tarde de mais. Fomos agressores e vítimas à vez.

Atribui o sucesso do livro também a não ser um ajuste de contas.

Há uma coisa que não se pode esquecer. Quando o escrevi não imaginava que o tema retornados ia tornar-se tão presente. O que eu tinha dos retornados era um estigma enorme. Fui ver uma casa para comprar em 2009, pouco antes de escrever o livro, e a dona disse: "Sabe, isto está em muito mau estado porque estiveram cá retornados." E eu disse "não, não sei". O estigma estava ainda muito presente. Por exemplo a minha irmã, que sofreu muito mais do que eu, por ser mais velha, só quando publiquei o livro é que pessoas que trabalham com ela há mais de 30 anos souberam que é retornada: nunca disse. A primeira coisa que ouvimos aqui, e ela desatou a chorar, foi "vocês estão todas furadas pelos pretos". Nem percebi o que era aquilo. E é bom lembrar que os brancos que foram para lá, tirando uma minoria, uma casta de fazendeiros, foram em busca de uma vida melhor para os filhos, como iam para França ou para outro lado qualquer.

Foi o caso dos seus pais?

Eles foram por uma história diferente. Porque o meu pai subscreveu a lista de Humberto Delgado e ficou sem direito de voto e zangou-se muito com isto. E porque a minha mãe fugiu com o meu pai... Sou filha de um grande amor. Ela fugiu com o meu pai aos 17 anos. Era filha de uns lavradores muito ricos, quase latifundiários de Trás-os-Montes. E o meu pai não tinha, como dizia o meu avô, onde pendurar a panela. Era um pobretanas.

Como se conheceram?

Era empregado do meu avô. E 11 anos mais velho. Já tinha deixado duas noivas no altar, tinha esse lado doidivanas. E a primeira frase que trocaram - contavam a história à vez - foi o meu pai a pedir-lhe uma faca. A minha mãe tinha ido levar a comida aos trabalhadores. Foi amor à primeira vista. Depois namoraram por cartas, daquelas de pôr debaixo da soleira... Ele pediu a minha mãe em namoro e o meu avô pegou numa caçadeira e disse que o matava. Andaram anos escondidos até que o meu avô arranjou casamento à minha mãe com outro lavador e ela resolveu fugir com o meu pai para a aldeia dele. Um escândalo...

O seu avô não foi buscá-la?

Não, então já estava desonrada. Ela foi de uma coragem... Viveu amancebada muitos anos, porque só se podia casar aos 21, antes disso só com autorização dos pais e o meu avô não deu. Só quando a minha irmã nasceu, para não ser bastarda, o meu avô foi à conservatória dar autorização. E não se viram.

Conheceu esse avô?

Sim. Quando voltei. Não sei se é por isso que gosto de criar personagens, mas consigo sempre compreender. Na estrutura dele aquilo não fazia sentido nenhum. Ele próprio se tinha casado com um arranjo, com a não sei quantas das terras para juntar, era a lógica. Porque é que a minha mãe queria fugir por estar apaixonada? Que era isso de estar apaixonada? Pensava que aquilo era uma paixoneta que passava...

Não tinha lido Shakespeare.

Não, não tinha. Nem os meus pais, que ao princípio nem romantizavam muito isso, era só um facto da vida deles. A minha mãe aliás tinha muita vergonha, medo de nós repetirmos. Já o meu pai, e estou-lhe muito grata, o primeiro conselho que nos deu foi "vocês têm de estudar para não dependerem de ninguém". Isto num homem nascido em 1929 em Trás-os-Montes, de uma família muito remediada, que tinha só a 4.ª classe. E quando viemos para cá, não considerou ficar nem um dia em Trás-os-Montes, porque tinha de ficar em Lisboa para irmos para a universidade. Podíamos não ter pão, não ter roupas, nada - escola connosco.

E lá foi estudar Direito. Porquê ?

Porque já queria ser escritora. E não havendo um curso de escritora percebi que quanto mais me afastasse da literatura... Porque não quis ter uma abordagem técnica, isso eu sabia. Ainda fui advogada três ou quatro anos. E gostava. Podes ser várias pessoas ao mesmo tempo.

Decidiu ser escritora quando, como?

Por causa de Trás-os-Montes. Porque os meus pais, como era a mais nova, tiveram a brilhante ideia, quando chegámos, de me mandarem para casa desses avós que não conhecia. O meu pai ainda não tinha chegado, a minha mãe estava com a minha irmã num hotel, havia pouco dinheiro... E achavam que era para me proteger, que eu tinha mais capacidade de adaptação. Mas foi um erro. Enorme, irreparável.

Deve ter sido brutal.

Foi inimaginável. E em 1975, sozinha. Foi um choque. Frio, as pessoas todas de preto, a viverem com os animais... A palha, o vento. A realidade tornou-se insuportável. Depois não tinha nem pais, nem amigos, nem ninguém. Só tinha aqueles avós que ainda por cima, como a vida nunca faz sentido, estavam doentes os dois. Portanto era feios, porcos e maus no seu esplendor. E eu a filha da filha fugida. Foi tal o choque que eu, que toda a gente dizia que ia ser enorme, não cresci mais. E descobri que era branca. Porque eu era morena e de repente comecei a ver-me branca branca. Ainda fico muito morena quando apanho sol. Mas não sabia que era branca. Não sabia a minha cor.

E começa a escrever lá?

Não. Passei pela fase de chorar todos os dias e depois pensei assim: tenho de tornar a vida melhor. E então comecei a inventar histórias como as de Os Cinco. O meu quotidiano deixava de ser tão violento, porque inventava que um tinha escondido um tesouro na fonte, que havia um crime...

Escrevia-as?

Não, era tudo de cabeça. Tinha um mundo, que se calhar já tinha em Luanda mas não dei conta dele, completamente paralelo, onde acontece quase tudo e é tudo possível. E depois percebi, ao ler outra vez Os Cinco, que era assim que se construíam as histórias. Então quando cheguei cá abaixo à escola (estive lá em cima sete meses e praticamente não havia escola, havia uma carrinha e a telescola) uma das primeiras perguntas que fiz à professora foi qual era o curso para ser escritora. E a professora, lembro-me perfeitamente, com aquele ar bovino, disse "acho que não há curso nenhum. Pode ser qualquer um, ou até nenhum". Fiquei desorientada: então tudo, médico, engenheiro, advogado, tinha curso e a minha vocação tão grande não? Até que vejo num filme um escritor a escrever à máquina. E pensei: é isto. E então comecei uma guerra que me durou um ano e tal com o meu pai para me pagar um curso para aprender a escrever à máquina com os dedos todos. Insisti, insisti e o meu pai caiu no erro de me dizer que se a dona da escola me fizesse um desconto ele pagava. Fui à escola, com muita lata, explicar que precisava de um curso de datilografia e o meu pai não tinha dinheiro. A senhora, que não devia ter muitos alunos e deve ter achado graça, anuiu. Passei o meu verão dos 14 anos, em vez de estar na praia como os outros miúdos todos - morávamos em Cascais -, na escola de datilografia a aprender o meu futuro. E as senhoras muito mais velhas, a estudar para secretárias, perguntavam: que estás aqui a fazer? E eu: quero ser escritora. Toda a gente se ria, mas nem com toda a gente a rir achava que aquilo podia ser ridículo. Só depois percebi que mesmo assim não sabia escrever livros. E foi então que tive a brilhante ideia de ir à biblioteca aprender. Achei que se lesse alguns possivelmente apanhava o jeito. Cheguei lá e vi tantos livros, tantos livros que disse "agora como é que escolho". Ainda por cima não tinha de ser um livro de que gostasse, tinha de ser um que me ensinasse a ser escritora. Estava um grupo de senhoras, possivelmente empregadas da limpeza, a comentar um livro e a chorar e tal. E quem era a escritora? A Corín Tellado, a de cordel. Achei que era a melhor do mundo, porque era a mais requisitada. E comecei a copiar a Corín Tellado.

Copiar?

Punha lá uns pormenores da minha vida, se estava arremelgada por um rapazito punha o nome do rapazito, mudava umas coisas, mas era uma cópia. Durante muito tempo andei a copiar aquelas exclamações, "Meu deus, o que estás aqui a fazer?", todas aquelas coisas muito enfáticas. Mas como era muito pequeno e com letras muito grandes copiava num instante. E então para poupar idas à biblioteca decidi escolher um mais grosso. Quis o acaso que trouxesse para casa o Dostoiévski. O primeiro que li foi Os Demónios. E inquietou-me imenso, aquele vício e aquela realidade que não conhecia. Cheguei a isto de uma forma tão ingénua, à literatura, que quando a senhora da biblioteca me perguntou se gostava dos russos, achei que era dos bolos [ri]. E pensei: como é que ela sabe que gosto muito de russos? Nem sabia que estava a ler um russo. E a senhora resolveu dar-me franceses. Deu-me o Flaubert.

A Bovary.

Sim. E além de começar a vigiar a minha mãe e as vizinhas, porque aquilo abriu-me um mundo - antes achava que namoros eram coisas de solteiras, não me passava pela cabeça que as casadas pudessem andar naquilo -, acho que me definiu também afetivamente.

Como?

Acho que aquela humilhação da Emma me impressionou tanto que há um limite nas relações amorosas que não consigo passar. Ninguém pode pedir a outro que o ame. Nem podes ficar à espera de que te amem. Por muito que tu gostes. Não se pode. E acho que se não tivesse lido aquele livro naquela altura, e não me tivesse impressionado tanto, seguiria mais esse caminho. Há aqui um pé sempre. E situo-o no livro. Se calhar era igualzinha sem o ter lido. Mas a primeira vez que marquei um encontro e o rapazinho não compareceu a primeira coisa em que pensei foi na Emma. Mas lia tudo, nessa altura. O Crime e Castigo, tudo. E não percebia nada.

Há quem ache que Crime e Castigo é sobre o encontro com deus. Escreveu sobre si numa biografia: "tem fé". Que fé?

Eu tenho fé, tenho fé. Mas uma vez numa entrevista escreveram que tenho fé em deus, no sentido católico. Não é isso. Tenho uma educação católica, os meus pais eram católicos, iam à missa ao domingo. Mas dificilmente teria essa fé. Porque a missa é extremamente desagradável, os padres a maioria das coisas que dizem são injustas e iníquas, e sendo uma pessoa tão crítica dificilmente me abeiraria sequer. Tudo isso que é ritual não gosto. E da igreja católica discordo de quase tudo. Mas fiz catequese e até fui catequista. Num bairro de exclusão, o das Marianas, a ensinar crianças a ler.

Aí acreditava no deus católico?

Acreditava no deus em que acredito agora. Que não somos o topo da hierarquia, que somos criatura, e que há uma ideia de bem que me é exterior. A minha ideia de deus é essa. É uma construção minha, que tentei replicar no Retorno. Ele faz esse jogo: se existes, prova que existes. E faz um acordo: o pai vai voltar; se não voltar até ao dia da independência morreu. O pai não volta e ele prefere matar o pai do que matar a ideia do parceiro com quem fez o acordo. Foi mais ou menos o que me sucedeu quando tive um grande acidente aos 15 anos.

Que acidente?

Foi uma parede que me caiu em cima e me partiu toda. Estive muito tempo no hospital e fiquei muito incapacitada. E isso tornou-me uma outra pessoa. É como se tivesse duas vidas. Várias vidas até. Uma vida muito cortada às fatias. E estávamos em 1980, tinha 15 anos, estava a habituar-me aos poucos a estar cá e fiquei toda desfigurada.

Não ficaram marcas visíveis disso. E como é a relação com esse deus? Fala com ele?

Não, não, é só saber que existe. É uma coisa que existe e impõe limites. Porque sendo uma pessoa medianamente inteligente se não acreditasse em deus acho que era a maior criminosa deste mundo.

Há a ideia de um castigo?

Não, não é pelo castigo. É por aspirar a essa coisa. Por me sentir compelida a chegar o mais perto possível. O meu objetivo na vida é causar o menos de sofrimento possível.

Por isso é vegan: não come qualquer produto de origem animal. Quando é que decidiu isso?

De um dia para o outro. A minha vida é sempre assim, antes e depois. E foi uma coisa que até podia ser literária. O olhar de um cão. O que me fez pensar no que andamos aqui a fazer foi o olhar de um cão. Era um cão abandonado que os meus pais recolheram e trataram, e a certa altura o veterinário disse que era impossível. Decidiu-se eutanasiá-lo. E eu, claro, não queria ir. O cão não me era muito próximo, tenho uma memória que nunca mais apaga e sabia que ia ficar com aquilo. Mas por qualquer motivo começou a encostar-se a mim e decidi que ia com ele até ao veterinário e depois não assistia. Mas lá, pior, pôs a cabeça sobre o meu colo, de forma impositiva. Tentaram tirá-lo e ele insistia. E eu disse: fico. Foi muito pacífico, muito belo mas naquele momento entre levar a injeção e morrer ele inclinou a cabeça para mim, com um olhar... O olhar dos cães é muito expressivo, mas era um olhar inquietante. E eu, durante um ano, dois, fiquei com o olhar do cão. Intrigou-me. E um dia estava naquelas minhas defesas - das mulheres, dos negros, dos ciganos, de todos os excluídos - e percebi: "Há aqui um grupo enorme de desprotegidos que nem sequer considero, que são os outros animais." E de repente o olhar do cão fez-me sentido. Como se um ser não falante me dissesse: nós existimos, estamos aqui. E percebi, que por mais que adorasse a carne assada da minha mãe, por mais que adorasse queijo...

Mas é um esforço, ser vegan.

Não é difícil, difícil é ser animal. E a minha vida está cada vez mais facilitada, já há tofu no Pingo Doce. Há 12 ou 13 anos não havia. Já não sou uma lunática, pertenço a um grupo identificado. Mas é muito agressivo socialmente. Porque quando dizes que não comes determinadas coisas por razões éticas está implícito que os outros são trogloditas. Não sei como dizer de outra maneira [ri]. Portanto digo "é uma decisão, é pessoal..." Sou extremamente tolerante, toda a minha família come carne.

Mas que sente quando vê comerem carne ao seu lado?

Que não há prazer que justifique. Aquilo não é um pedaço de carne, é um pedaço de sofrimento que ali está cristalizado. A carne é um vício. E o queijo. Tudo isso são vícios. Agora, foi a decisão da minha vida que me fez mais feliz. Porque de tudo aquilo de que falámos - exclusão, etc. - não podes fazer mais nada a não ser denúncia ou evitar determinados comportamentos. Em termos gerais não podes fazer nada. Nisto podes fazer uma diferença: podes dizer "não consumo". E é eficaz. Dá-te um poder. Além de achar que de facto é a revolução que está por fazer.

Voltando à escrita: quando começa a escrever coisas suas?

Muito tarde. Na faculdade ainda copiava. Tive a minha fase do realismo mágico, a fase do surrealismo francês [ri]. Ia evoluindo. Depois comecei a escrever. Mas como lia muito, quando lês muito tudo o que fazes é bastante desinteressante.

Hoje consegue viver da escrita?

Viver da escrita é muito relativo. Se for só com os livros, não. Mas consegues viver de atividades conexas, como eles dizem. Conferências, bolsas, residências. E algumas vendas lá para fora, também. Mas infelizmente é tudo no estrangeiro. Somos um país pequeno, somos poucos. Claro, se tivesse decidido ser advogada, ou ter filhos, teria uma vida completamente diferente. Por isso é que na autobiografia digo que há muitos anos matei uma mulher.

Tem essa vertigem de olhar para trás, pensar nas pessoas diferentes que podia ter sido?

Tenho. Acho que me tornei adulta quando percebi que já não teria tempo para ser tudo o que queria ser, que tinha de me focar, ser só uma coisa. Quando percebi que isto era finito, que íamos morrer. Mas tenho muito esse problema da escolha. Que é como se escolhe com a mínima margem de erro. Porque para o passado todos sabemos escolher - que era evidente que era mesmo para ali.

Ou que não era. Pode-se até achar que se errou tudo.

Nos momentos em que penso que errei quase tudo também julgo que acertei muito. E espero. É a espera: quando estou muito feliz nunca fico muito feliz porque penso sempre que vai acabar, não vai durar, não vai ser assim para sempre. Quando estou muito triste também não fico muito triste porque penso: isto não vai durar. Como é o ditado?

Nem há bem que sempre dure nem mal... Diz que a escrita é uma forma de chegar aos outros. E que o "a grande batalha deste ofício de estarmos vivos é a batalha contra a solidão".

Acho que existimos para ser amados. E a minha maneira de ser amada - que eu acho mais eficaz de chegar a que me amem - é através da escrita. No outro dia estava a dizer isso e disseram-me: os livros que escreves são tão violentos, quem é que vai amar-te?[ri] Teve graça essa conversa, eu muito lírica e o interlocutor muito bruto. Mas acho que os meus livros são redentores. Admito que são violentos...

Os Meus Sentimentos, redentor?

Não é que acabe bem, mas há um esforço do bem. Tanto que nos capítulos há um caminho pelas trevas e um caminho pela luz. E aquele fim luminoso na estalagem é uma coisa de paz, não é uma coisa de tristeza. Ainda que as pessoas achem que é a morte. Mas para mim a Violeta não morreu. E há sempre a ideia de que o bem é possível. Isso basta-me como redenção. O que não é possível é modificarmos o que já passou. E aborrece-me cada vez mais a crítica constante ao passado por quem não o viveu: como é que é possível os nazis, como é que é possível não sei quê. É possível porque não são marcianos. E continua a ser possível, não percebo o espanto.

As pessoas gostam de crer que fariam diferente.

Pois, a questão é essa: quando tens de agir. O passado permite-te só criticar, porque não tens responsabilidade nenhuma. É nesse sentido que falo na redenção: o de ter presente que pode ser diferente. Pode parecer lírico, mas é muito sincero: o objetivo da minha vida é mesmo causar o mínimo de sofrimento possível. E não é só na questão dos animais. Mas isso implica uma atenção chata, um desprazer. E por muito que chateie a minha vida e a dos que estão comigo, agradeço não ter essa indiferença. Porque é acima de tudo a indiferença que permitiu todos os crimes com os quais toda a gente se indigna. É o "estamos aqui na nossa vida, temos a nossa casinha, o pãozinho, olha os comboios a passar, que é que levam lá dentro...."

Olha os barcos a naufragar.

Exatamente. Olha, há uns que se afogaram, pois é, coitadinhos, vamos lá para a nossa sopinha. Não podes escolher a indiferença. Dizer "vou ver isto e não vou ver aquilo". Ou vês ou não vês.

A expressão "os meus sentimentos" diz esse dilema e essa ironia.

Sim. E é só da língua portuguesa. Não podes fazer esse trocadilho em mais nenhuma língua. Por exemplo os italianos puseram "as condolências", Holanda, França e Colômbia o nome da Violeta. Fui muito aconselhada a não usar a expressão porque parecia diário de menina parva. Mas acho que calha bem ao livro. Que me deu um trabalhão... Porque não tem condicionais, não tem presentes, não tem futuros. Excluí não sei quantos tempos verbais. E determinou o meu método criativo, que é o mais maluco. Porque o perdi.

Então?

Foi em 2004, para aí. Recebi um e-mail com um palhaço e cliquei no nariz. No dia seguinte tinha o computador todo preto. Chamei um técnico, ele disse que era impossível, e eu, que ainda era casada na altura, disse ao meu marido: ou esqueço isto, esqueço a Violeta de vez, ou reescrevo de memória, enquanto está fresco. Porque nunca mais vou ser capaz de estar aos bocadinhos a escrever a Violeta, porque agora já sei tudo, passei anos com este livro. Como com o que estou a escrever agora. E como vivia com alguém conseguia ter as coisas todas asseguradas e fechei-me a escrever durante um mês.

Como se fosse uma história que viveu e a rememorasse.

Exatamente. E depois pensei: gosto mais disto assim. Porque toda a palha de que não me consigo livrar, as metáforas pirosas, quando estás a escrever de memória esqueces, porque não é importante. E agora faço sempre isso: apago tudo. Já tentei não o fazer, mas não fica bem. É horrível, mas assim só fica o que me parece essencial.


Entrevista de Fernanda Câncio


(Diário de Notícias, 17 Agosto 2016)