segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (António Lobo Antunes)



Estou sentada não no carro com o meu marido, sozinha num dos degraus que conduzem à praia do estacionamento frente ao mar, a ver as luzes dos barcos. Não ficou bem, recomeça. Estou sentada não no carro com o meu marido, sozinha num dos degraus que conduzem à praia do estacionamento frente ao mar, sem ver as luzes dos barcos. Outra vez, corrigindo a partir de frente ao mar. Estou sentada não no carro com o meu marido, sozinha num dos degraus que conduzem à praia do estacionamento frente ao mar, mais a ouvir que olhando e não são as ondas que oiço, é o que mora no interior das ondas e as….
Haverá noite para este dia digam-me, uma altura em que deixo de distinguir o salgueiro e depois do salgueiro a janela, os móveis desaparecem porque não acendemos a luz, ficam as pegas de metal a brilhar um momento, um frémito nas portas que ninguém gira, os meus irmãos procurando-se e eu em busca da saída dado que principiaram as dores e não acho o caminho da rua, apercebo-me do alpendre onde a lanterna baloiça na corrente, ao regressar ao baldio via-a na esquina e acalmava, estou a chegar, estou em casa, não me fazem mal já, o quintal fechava-se- -me sobre o corpo e escondia-me, nenhuma cólica, nenhum suor, a paz e com a paz a indecisão da madrugada no peitoril
- Nasço não nasço?
a desistir, a pensar melhor e a mostrar um esboço de trepadeiras, que parentes no velório amontoando guarda-chuvas no pote enquanto o meu irmão Francisco modifica os livros das contas, não apenas guarda-chuvas, sobretudos que escorrem turvas lágrimas lentas, se calhar com dinheiro nos bolsos
(oxalá que dinheiro nos bolsos)

António Lobo Antunes


 Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?  (2009) - romance.