Debondan's Blog
A ESTÉTICA DO FRIO
Esperei a tarde toda por uma tempestade de vento vinda de Porto Alegre. Anoiteceu. A chuva fina voltou a cair e a parar de cair sobre Satolep. A umidade faz as tijoletas e os livros suarem; mofa os discos, amolece e empena as capas dos livros. É junho. Vou até a janela; limpo o vidro e olho para a rua. As pedras regulares do calçamento estão acesas sob a luz dos postes, onde primeiro se vê a neblina densa que, chegando devagar, descerá até o chão e transformará esta cidade planejada numa cidade infinita. Nada nem ninguém acha Satolep à noite nestas condições. A tempestade de vento não virá. Volto para a escrivaninha e me sento. Fico olhando a foto de Edgar Allan Poe, mas não posso vê-lo.
Estou em outro junho. Estou no meu apartamento em Copacabana, Rio de Janeiro, de calção e chinelos, assistindo ao Jornal Nacional na TV. Assisto uma matéria sobre uma festa popular na Bahia. As imagens: um trio elétrico sobre um caminhão arrastando milhares de pessoas seminuas, pulando, suando, bebendo e cantando sob um céu furioso. Não consigo me imaginar atrás daquele trio elétrico. Não consigo me sentir próximo do espírito daquela festa, embora esteja igualmente seminú e com calor e a notícia seja apresentada num tom de absoluta normalidade, como se aquilo fizesse parte do meu dia-a-dia. Assisto a seguir uma matéria sobre a chegada do frio no sul. Vejo o Rio Grande do Sul. Vejo os campos cobertos pela geada na luz branca da manhã, vejo crianças escrevendo com o dedo nos vidros dos carros, vejo homens de pala andando de bicicleta, vejo águas congeladas, vejo gente esfregando as mãos, gente de nariz vermelho, vejo a espectativa de neve na serra, vejo o chimarrão fumegando. Seminu e com calor reconheço imediatamente aquele universo como meu. Mas as imagens são apresentadas num tom de anormalidade, de curiosidade, de quase incredulidade, como se estivessem chegando de outro país -fala-se em "clima europeu"-, o que faz com que eu me sinta estranhamente isolado, mais do que fisicamente distante. Tenho a incômoda sensação de estar no exílio e ver, ao mesmo tempo, o Rio Grande do Sul de perto, por dentro e além das imagens. Percebo então o quanto me sinto separado do Brasil.
Mais que isso, percebo o quanto o gaúcho se sente e o quanto realmente está separado o Brasil. Constato que o obscuro sentimento que nutrimos de não ser ou não querer ser brasileiros tem alcance muito maior que o de mera curiosidade histórica ou de motivos de piadas entre nós. E não preciso avançar até os casos isolados em que este é um assunto ideológico. Só o fato de um sentimento estar assim latente no espírito do gaúcho já é o suficiente para que se estabeleça separação e distância. Acreditar não ser ou não querer ser brasileiro e ao mesmo tempo saber que, mais do que fisicamente ligado ao Brasil, ele é irreversivelmente brasileiro – porque no fundo sabe que esta separação é impossível –, deixa o gaúcho num misto de frustração e impotência que o leva, inevitavelmente, a ter que administrar um sentimento de inferioridade. Uma simples manobra de compensação – uma manobra de sobrevivência – basta para que este sentimento de inferioridade transforme-se em sentimento de superioridade. E pronto. O gaúcho se sente superior ao brasileiro. Separação e distância.
O afastamento – ou inconsciente ou ideológico – do Rio Grande do Sul, torna-o o lugar do Brasil que mais facilmente pode ser definido em duas ou três idéias redutoras, enquanto suas sutilezas de estilo parecem insondáveis.
O gaúcho acaba tendo uma visão caricata de si próprio, a partir da visão superficial que o Brasil tem dele e que ele, como brasileiro, compartilha e assume. O deslocado gaúcho tende sempre a encarnar a personagem "gaúcho" quando se comunica com o Brasil. Do outro lado, os brasileiros tendem sempre a tratar o gaúcho como uma personagem. Numa visão geral, digamos a partir do centro do País, qualquer povo em qualquer região tem sempre suas peculiaridades transformadas em clichês, mas aparece antes de tudo como brasileiro. O gaúcho parece ter antes de tudo seus clichês, depois ser brasileiro. O Brasil o vê lá longe, isolado, e só pode enxergar o que nele é gritante, só as diferenças que saltam aos olhos. E o gaúcho faz que sim.
Assistindo ao Jornal Nacional me dei conta de que acima dos clichês comumente usados para nos definir, acima de toda e qualquer idéia redutora – que representam sempre pequenos recortes, fragmentos da nossa realidade –; que acima também das nossas sutilezas de estilo, estava a diferença fundamental entre o Sul e o resto do Brasil – como símbolo não redutor, primeiro e inquestionável, abrangendo todos os outros –: o frio. Vi que o Rio Grande do Sul simbolizava o frio no Brasil – a chegada do frio no Sul, mesmo com aquele ar "acredite se quiser", está anualmente na pauta da mídia nacional. E me dei conta de que o frio simbolizava o Rio Grande do Sul. Passei a ver o frio como metáfora amplamente definidora do gaúcho.
Esta idéia foi-se enchendo de sentido na medida em que, morando no Rio de Janeiro e viajando constantemente pelo Brasil, passei a sentir o clima tropical – a regularidade de um clima de mudanças tão discretas entre as estações; o calor; a presença constante e vital do sol, do mar e dos rios – como um grande pano de fundo onde se repetiam certas características que pareciam unificar o modo de ser dos brasileiros em sua diversidade. Deparei-me em muitos lugares – e lugares distantes entre si – com um mundo de valores, de hábitos, de gostos e anseios compartilhados que para mim não tinham a mesma significação. Mais objetivamente, vivenciei a expansividade, o excesso, o emocional, o gosto pelas ruas, pela diversão, pela alegria, pelo culto ao corpo, pela dança, pelo ritmo, pelo colorido, pela espontaneidade, pelo caos, pelo múltiplo, pelo variado, pelo eclético, etc. Vivenciei tudo isso e muito mais, sempre sob aquele amarelo forte, aquele quase tom laranja da luz do dia. Foi quando comecei a entender melhor o esforço dos românticos, a atitude dos modernistas, a postura dos tropicalistas. E foi quando não entendi e não aceitei a nossa distância "fria". Eu confirmara que a riqueza cultural do Brasil residia na sua diversidade e, claro, o Rio Grande do Sul já tinha nisso a sua contribuição. E depois, ao encontrar para cada característica comum dos "brasileiros" uma contrapartida na minha maneira de ser, nos meus hábitos de "homem que veio do frio", me perguntei como era possível que se visse nisso um sinal de incompatibilidade e não o sinal de que uma estreita colaboração entre os dois "estilos" abriria uma perspectiva humana e criativa infinitamente rica de possibilidades.
Até quando essa dieta de brasilidade que nós gaúchos nos impomos? Aonde isso nos levará? E até quando essa dieta gaúcha que impomos ao Brasil, reduzindo-nos numa estreita e auto-indulgente visão caricata de nós mesmos e do nosso mundo? Por que uma comunicação natural e direta com o resto do país deve ser tão complicada e escassa? Por que não soar "normal" se somos brasileiros, se estamos fisicamente ligados ao Brasil, se fazemos parte da cultura nacional? Será que estamos fadados a que toda e qualquer expressão nossa soe sempre "folclórica"? Não iremos jamais compartilhar, contribuir regularmente, acrescentar de forma natural e efetiva com o país?
Penso nas queixas que ouvi de gente do Acre e do Mato Grosso a respeito do "gaúcho" que costuma chegar, esgotar a terra e sumir – enquanto mantém belas fazendas no Rio Grande do Sul. Penso nas cobranças dos gaúchos a Elis Regina e na expressão "vendidos", que tantas vezes ouvi ser usada em referência aos artistas que optaram por viver e trabalhar no centro do País – para qualquer brasileiro, vencer no centro do País é motivo de orgulho. Penso que ouvi em Porto Alegre alguém dizer que Lupicínio Rodrigues não era um compositor gaúcho, que ele fazia música brasileira – o fato de ser negro já parecia separá-lo um pouco da cor local.
Penso que os gaúchos devem se aproximar do Brasil. Se acham que são diferentes, tanto melhor! Penso que devem ambicionar – guardadas as proporções – contribuir tão fartamente para a cultura nacional quanto os nordestinos. Não quero dizer com isso que devam trocar a gaita pelo cavaquinho ou pelo berimbau – nem misturá-los acreditando que apenas o fato de estarem juntos já signifique uma fusão ou uma nova linguagem –; não acho que devam adotar o coco gelado no inverno, às margens do Guaíba. Acho, pelo contrário, que a aproximação dos gaúchos com o Brasil se dará no dia em que aproximarem-se de si próprios; no dia em que, refinando a sua linguagem, fizerem valer a completude da sua sensibilidade, deixando para trás um fragmento, uma curiosidade, ou como coisa imprestável, a caricatura redutora sob a qual se acomodaram.
Jorge Luis Borges disse que ao escrever não necessitava "tentar" ser argentino, porque já era. Se "tentasse" soaria artificial. Perfeito. O "tentar" ser é caricatura. Não "tentar" ser gaúcho, nem "tentar" ser brasileiro.
Quando falo em caricatura não estou falando em tradição. Porque a tradição não é jamais um engano. A tradição não deve ser um peso a ser suportado, nem um amontoado de fórmulas estanques a serem repetidas. O artista, para criar algo de valor, para realizar algo que faça sentido dentro do "fazer artístico", deve não apenas acompanhar criticamente a trajetória da sua própria sensibilidade, mas também dirigir seu olho crítico para o contexto em que está inserido e o que o precedeu – o que o levou à sua forma de expressão. Para estar viva, a tradição deve estar justificada na expressão contemporânea – e ela estará justificada mesmo que o novo represente uma ruptura. A expressão contemporânea, por sua vez, para justificar sua existência, deve ser eficaz o suficiente para promover um avanço na trajetória da tradição de que está imbuída, deve ser ela mesma tradição, tradição em movimento, tradição futura.
E penso logo: qual é a minha tradição? A tradição brasileira é minha? É natural que eu atue com ela e a partir dela? Mas tenho diferenças que me distanciam da "comunhão tropical"? Tenho mais forte a tradição de um "país frio", a tradição de um "país deslocado" do Brasil, ao mesmo tempo tão próximo do Uruguai e da Argentina? É natural que eu atue com e a partir dessa tradição "fria"? Sim! Devo fazer valer este sentimento de "dupla personalidade", devo querer o máximo desta "dupla cidadania", fazer dela fonte de criação e não fonte de diluição da minha capacidade criadora. Pensando o "frio" como metáfora amplamente definidora do gaúcho, acho que uma concepção "fria" tem muito o que fazer com uma concepção "quente". Estou pensando em uma "Estética do frio".
Quando daquela "incômoda sensação de estar no exílio", constatei que a música urbana do Rio Grande do Sul era, além de desconectada do Brasil, absolutamente indefinida, o que me pareceu inadmissível para um lugar com uma sensibilidade tão peculiar e uma produção tão grande. Olhei, evidentemente, para mim mesmo – este território que conheço com mais exatidão – e vi que, morando no centro do País há tanto tempo, aquela indefinição me acompanhava. A indefinição aparecia da seguinte forma: as coisas estavam lado a lado, visíveis, formando um corpo eclético. Não havia uma linguagem que imprimisse unidade a elas. Havia de um lado o dado regional, de outro o brasileiro, de outro o mundial, resultando num ecletismo completamente ineficaz e batido. Mais que isso. Em cada um desses dados havia indefinição, faltava rigor formal. Vi o ecletismo como herança cansada do tropicalismo, sua degeneração como estilo, como postura, em uma ausência do estilo, em um hábito. O que em outro tempo fora a reação natural a um mundo que tendia a se perpetuar em formas estanques, fazia agora – num mundo plural, onde as portas estavam todas abertas – menos sentido que uma linguagem que pusesse unidade na diversidade. E me veio a imagem invernal de um gaúcho solitário tomando seu chimarrão, a olhar a imensidão fria do pampa sob o céu cristalino da manhã. Uma imagem de pura definição! Uma expressiva composição de poucos elementos: a figura imóvel e bem delineada do gaúcho, o céu claro, o verde regular e a linha reta do pampa no horizonte. E me vieram palavras como rigor, precisão, concisão, sutileza. Uma cena regional, quase remota! Curiosa associação. Eu estava vislumbrando naquele pampa a música que eu queria: linguagem altamente definida abrindo um espaço onde a inteligência e a sensibilidade encontrassem um campo radicalmente aberto e irresistível para se expandir. Eu estava vislumbrando uma concepção naquele universo "frio". Uma concepção "fria". Talvez o tempo estivesse me fazendo transformar sentimentos em idéias.
Era urgente ir atrás daquela concepção "fria". Era urgente definir a linguagem. Era urgente, portanto, que eu me debruçasse sobre "meu modo de fazer"; era urgente privilegiar o processo, adquirir confiança nele. Era preciso ganhar um sentido prático. Era dominar a linguagem para poder transcendê-la e chegar à poesia. Porque chegar à poesia é chegar em nossa essência – é não "tentar" ser. Era preciso ter controle sobre o que era passível de ser controlado, para que toda a dimensão incontrolável – a "inspiração", a dimensão secreta e obscura –, toda a dimensão que está além da técnica não fosse desperdiçada. O domínio da técnica é libertador, serve ao que não pode ser dominado. Era preciso refinar a linguagem. E era urgente, antes, uma faxina.
Tomei distância das práticas externas a mim, dos procedimentos institucionalizados, do ecletismo da média, daquilo que se faz meio sem saber por quê. Anotei as coisas ruins em que eu reincidia, as coisas boas que eu deixava de explorar. Joguei fora tudo o que me pareceu normal ou médio. Desci a lupa sobre os extremos: o grotesco e o sutil, o rítmico e o imóvel, o literário e o coloquial, etc. Forcei os limites. Estive na ausência da melodia, no minimalismo harmônico. Saí de letras gigantes, cheguei em letras de duas linhas. Compus músicas de dez minutos e músicas de alguns segundos. Partido em dois, em mim mesmo exercitei os extremos. Separei-me em dois personagens para dividir palco e repertório. Compus para cada um segundo suas necessidades expressivas. Proibi palavras, notas, acordes. Arrumei dificuldades para me obrigar a ir atrás de soluções. Saí da canção para voltar a ela e estar por dentro.
No fim da faxina uma constatação: eu não experimentara a forma da milonga. Não encontrara sentido nisso. Pelo contrário, minha maneira de tratá-la cada vez mais era sutilizar as suas características atrás de uma pureza que seria sua única forma possível. Por quê? Porque a milonga era feita da mesma matéria de que era feita a imagem do gaúcho e do pampa. O sentido que eu vislumbrara na imagem era o sentido de pureza que eu via na milonga. Ou seja: havia uma correspondência direta entre a forma ideal da milonga e as idéias que norteavam a minha busca daquela concepção "fria". E eu podia ir direto à sua essência, sem rodeios. Era simples lidar com ela e o resultado era eficaz. Meu rigor – que eu enxergara na imagem – se acomodava imediatamente à sua forma rigorosa. Em suma, nada do que ela exigia era estranho à concepção "fria". Isso significava que uma concepção "fria" se resumiria à forma da milonga? Não. Significava de que maneira haveria sentido e funcionalidade na concepção "fria". A milonga "funcionava". E se "funcionava" era porque tudo nela – melodia, ritmo, letra, etc. – estava sob controle. Nada pode não ser concebido ou concebido com displicência numa milonga sem que ela perca a sua força, sem que não haja eficácia no seu resultado final. Uma milonga deve ter sua própria concepção. Esta pista me levou de volta à imagem do gaúcho e do pampa. A concepção "fria" que nela eu vislumbrara só seria eficaz se a expressividade que eu captava na cena como um todo eu fosse capaz de captar nos seus detalhes – nos traços do rosto do gaúcho, por exemplo, na luminosidade do seu olho, na profundidade do seu pensamento, na dispersão da sua memória. Era desta forma que a concepção "fria" se afirmara na forma da milonga, a milonga que, da mesma forma que a imagem, se opunha a tudo o que era múltiplo, excessivo. A milonga em tom menor, reflexiva, densa, profunda e melancólica. Rigorosa em sua cadência, seu ponteio, seu fraseado; sutil em seu movimento melódico sinuoso, oriental. E não por isso cerebral: milonga intuitiva, emocional. Se abarcasse uma grande cena, um grande desenrolar temático, seria sempre contida, nunca excessiva. Milonga concebida.
Se eu fosse aquele gaúcho da imagem, absolutamente "definido", a forma da milonga me saciaria. Com ela eu poderia apreender a totalidade do meu universo "frio". Mas não se tratava disso. Eu não era absolutamente "definido", e meu universo era "plural". O mundo que eu queria apreender era múltiplo, excessivo. E para essa tarefa a forma puramente "definida" da milonga não me bastaria. O que me bastaria?
Ter encontrado um sentido de pureza naquela paisagem "fria" e na forma "fria" da milonga, indicava que aquele sentido de pureza já existia em mim. Indicava que eu estava vinculado àquele universo "frio", que eu tinha uma formação "fria" e – partindo do princípio de que toda arte é uma leitura do mundo – que eu tinha uma leitura "fria" do mundo. Eu queria unidade na diversidade? Pois ao tentar apreender a pluralidade do mundo através desta leitura "fria" eu teria unidade na diversidade. É que, para saciar o sentido de pureza que me movia, o único resultado possível seria o que tivesse a expressividade que eu via na paisagem "fria" e na forma "fria" da milonga. O mundo devia ser a minha leitura do mundo, não o contrário. Essa convicção banal era a única coisa que eu precisava para refinar a linguagem e chegar à sua "alta definição". Em termos práticos: assim como a forma da milonga não me bastava, também não era o caso de ficar transpondo mecanicamente para as músicas as características definidoras do universo "frio" – o frio favorece à introspecção Þ a música será introspectiva; o pampa é imenso e regular Þ a música será longa e repetitiva. Talvez só por curtição eu visse um determinismo nessas analogias. Depois da faxina, depois de ter feito aquela devassa no meu universo musical, e ter adquirido uma razoável consciência do que eu parecia fazer melhor e com mais gosto – essa consciência não se adquire muito facilmente –, era hora agora de voltar a este labirinto de informações, à infinidade das minhas referências, às minhas mais antagônicas obsessões e reestruturar tudo a partir da minha ótica "fria" – transformar meu caos em meu cosmos "frio"; buscar o sentido de pureza do "frio" em toda a parte – e fazer com que "funcionasse", fazer com que todos os meus resultados fossem eficazes. Se todos os elementos de uma música têm o poder de significar – melodia, arranjo, ritmo, harmonia, execução, etc. –, era preciso ter controle absoluto sobre cada um desses elementos. Se um deixasse de ser concebido, o efeito de conjunto estaria diluído. A minha marca deveria estar em todas as partes para estar no todo. Antes disso: o ato de compor já teria em vista a concepção final. A música deveria ser sua própria concepção. Concepção "fria".
O que uma boa audição resolveria:
– Música Popular Brasileira.
– Uma estética do rigor.
– Unidade na diversidade.
– O predomínio da canção. Música e letra. Longas canções lineares, pequenas canções de segundos (não vinhetas) e as deliciosas formas comuns tipo AABAB e variantes. Jamais encheção de lingüiça (repetir a letra, solos ou falas gratuitas, etc.). Pequenas, grandes, com refrão, sem refrão: todas as canções igualmente densas, exatas em sua duração. Cada canção impõe sua concepção. Mas há uma concepção para todas as canções.
– A melodia como um raciocínio minucioso e claro. Mas intuitiva. Muita melodia. Cromatismo. A sinuosidade melódica da milonga onipresente, mas sua melancolia aplacada pela leveza da canção brasileira. A repetição. O círculo. Motivos amplos e lineares. Também a eventual ausência da melocia,a tensão da fala: estranhezas preparadas.
– Harmonia aberta. Fluxo regular.Troca sutil de acordes. Também acordes de sétima chamados pelo orientalismo melódico da milonga. A harmonia nascendo e se desenvolvendo junto com a melodia, como um só corpo (onde também estará a letra). Esse corpo é o centro. Mas sem privilégio. O privilégio é para o todo. Talvez a harmonia tenha o papel de amalgamar o todo, de fazer a ponte entre as partes. Mas não sempre. O elemento atonal entrando naturalmente no fluxo, sem configurar um choque.
– O ritmo brasileiro, negro, dançante, tratado com certa dureza (o rigor do tango) e preciosismo planejados. O ritmo como um raciocínio minucioso. Mas intuitivo. O ritmo saído de dentro da harmonia/melodia ou o contrário. Buscando a estranheza: acentuações incomuns (coladas no movimento harmônico/melódico ou em nuances da letra); timbres percussivos incomuns (mas não muita variedade timbrística). O uso do ritmo eletrônico se a intenção for a regularidade e a repetição. A eletrônica vai muito bem com ritmos negros. Eletrônica + complementação com instrumentos tocados por mão humana: se for este o efeito procurado ou se só a eletrônica soar inexpressiva. O ritmo trazendo leveza. Limpeza. Uma analogia? Montanhas e morros do Rio colocados aqui e ali, criteriosamente, na vastidão lisa do pampa.
– Os músicos dentro da concepção. A concepção conta com as peculiaridades dos músicos. O músico livre sozinho e livre com os outros músicos. Conjunto. As bases tendendo à regularidade e à repetição (individualmente e entre si). A "cobertura" trazendo a variedade: sonoridades diversas e incomuns. O acústico. Tudo muito "vivo". Não padronização. Não redundância. Sonoridade preparada, não adotada. A ordem interna da letra e a ordem interna da harmonia e a ordem interna do ritmo refletidas na ordem do arranjo. Minúcias. Limpeza. Teclados eletrônicos só para sonoridades específicas. Solos escritos. Solos que as músicas exigem. Quase tudo já se resolve na estrutura da canção. Contenção. O violão executado dentro da concepção, não aleatoriamente, violão com afinação preparada para explorar a sonoridade das cordas soltas e os efeitos da harmonia aberta.
- As palavras saem da sugestão sonora da melodia. Os sons sem sentido da melodia viram palavras. Antes da letra já estão ali os acentos, as rimas, os tamanhos das palavras. As palavras virão dessa não-letra intuitiva, desses grunhidos espontâneos. A letra, portanto, será inseparável da melodia/harmonia. Um corpo só. Nada poderá ser tirado sem que ela perca a sua força. Exatidão. O tamanho da melodia é o tamanho da letra. Só que a melodia se repete e a letra não. A letra começando no início da melodia e evoluindo sempre diferente (um raciocínio minucioso) até o final. Repetição só no refrão. Mas não sempre. Surgidas de sons ininteligíveis, as palavras irão impor o seu sentido. E serão tratadas racionalmente como um poema. Talvez até "funcionem" ao serem apenas lidas. Mas não são poemas. Pertencem à poesia, mas são letras de música. Descrições minuciosas do cotidiano. A ambigüidade das palavras e o mundo concreto. Não há mensagem. Palavras abertas numa abertura tão vasta que quase nada pode passar por elas. O respeito absoluto à prosódia. O humor trazendo a leveza.
Edgar Poe, the ancient raven et moi.* Penso no refrão de uma milonga minha, onde sobrevôo a cidade de Porto Alegre: "Nunca mais, Nunca mais." O "Nevermore, Nevermore" do pássaro de Poe. Nunca mais havia pensado nisso. Boto na memória, desligo o computador e vou outra vez até a janela. Limpo o vidro, olho para a rua. No fundo, isso tudo é apenas o que meu olho inventa: Satolep. No tabuleiro rigoroso dessas ruas e na arquitetura minuciosa desses prédios a vida contemporânea explode em sua diversidade. Quando a noite chega, mil outras vezes a explosão se espalha em coisas que a cidade sonha. E a neblina desce e se instala. Estética do frio.
Vitor Ramil
JUNHO
Esperei a tarde toda por uma tempestade de vento vinda de Porto Alegre. Anoiteceu. A chuva fina voltou a cair e a parar de cair sobre Satolep. A umidade faz as tijoletas e os livros suarem; mofa os discos, amolece e empena as capas dos livros. É junho. Vou até a janela; limpo o vidro e olho para a rua. As pedras regulares do calçamento estão acesas sob a luz dos postes, onde primeiro se vê a neblina densa que, chegando devagar, descerá até o chão e transformará esta cidade planejada numa cidade infinita. Nada nem ninguém acha Satolep à noite nestas condições. A tempestade de vento não virá. Volto para a escrivaninha e me sento. Fico olhando a foto de Edgar Allan Poe, mas não posso vê-lo.
OUTRO JUNHO
Estou em outro junho. Estou no meu apartamento em Copacabana, Rio de Janeiro, de calção e chinelos, assistindo ao Jornal Nacional na TV. Assisto uma matéria sobre uma festa popular na Bahia. As imagens: um trio elétrico sobre um caminhão arrastando milhares de pessoas seminuas, pulando, suando, bebendo e cantando sob um céu furioso. Não consigo me imaginar atrás daquele trio elétrico. Não consigo me sentir próximo do espírito daquela festa, embora esteja igualmente seminú e com calor e a notícia seja apresentada num tom de absoluta normalidade, como se aquilo fizesse parte do meu dia-a-dia. Assisto a seguir uma matéria sobre a chegada do frio no sul. Vejo o Rio Grande do Sul. Vejo os campos cobertos pela geada na luz branca da manhã, vejo crianças escrevendo com o dedo nos vidros dos carros, vejo homens de pala andando de bicicleta, vejo águas congeladas, vejo gente esfregando as mãos, gente de nariz vermelho, vejo a espectativa de neve na serra, vejo o chimarrão fumegando. Seminu e com calor reconheço imediatamente aquele universo como meu. Mas as imagens são apresentadas num tom de anormalidade, de curiosidade, de quase incredulidade, como se estivessem chegando de outro país -fala-se em "clima europeu"-, o que faz com que eu me sinta estranhamente isolado, mais do que fisicamente distante. Tenho a incômoda sensação de estar no exílio e ver, ao mesmo tempo, o Rio Grande do Sul de perto, por dentro e além das imagens. Percebo então o quanto me sinto separado do Brasil.
Mais que isso, percebo o quanto o gaúcho se sente e o quanto realmente está separado o Brasil. Constato que o obscuro sentimento que nutrimos de não ser ou não querer ser brasileiros tem alcance muito maior que o de mera curiosidade histórica ou de motivos de piadas entre nós. E não preciso avançar até os casos isolados em que este é um assunto ideológico. Só o fato de um sentimento estar assim latente no espírito do gaúcho já é o suficiente para que se estabeleça separação e distância. Acreditar não ser ou não querer ser brasileiro e ao mesmo tempo saber que, mais do que fisicamente ligado ao Brasil, ele é irreversivelmente brasileiro – porque no fundo sabe que esta separação é impossível –, deixa o gaúcho num misto de frustração e impotência que o leva, inevitavelmente, a ter que administrar um sentimento de inferioridade. Uma simples manobra de compensação – uma manobra de sobrevivência – basta para que este sentimento de inferioridade transforme-se em sentimento de superioridade. E pronto. O gaúcho se sente superior ao brasileiro. Separação e distância.
O afastamento – ou inconsciente ou ideológico – do Rio Grande do Sul, torna-o o lugar do Brasil que mais facilmente pode ser definido em duas ou três idéias redutoras, enquanto suas sutilezas de estilo parecem insondáveis.
O gaúcho acaba tendo uma visão caricata de si próprio, a partir da visão superficial que o Brasil tem dele e que ele, como brasileiro, compartilha e assume. O deslocado gaúcho tende sempre a encarnar a personagem "gaúcho" quando se comunica com o Brasil. Do outro lado, os brasileiros tendem sempre a tratar o gaúcho como uma personagem. Numa visão geral, digamos a partir do centro do País, qualquer povo em qualquer região tem sempre suas peculiaridades transformadas em clichês, mas aparece antes de tudo como brasileiro. O gaúcho parece ter antes de tudo seus clichês, depois ser brasileiro. O Brasil o vê lá longe, isolado, e só pode enxergar o que nele é gritante, só as diferenças que saltam aos olhos. E o gaúcho faz que sim.
Assistindo ao Jornal Nacional me dei conta de que acima dos clichês comumente usados para nos definir, acima de toda e qualquer idéia redutora – que representam sempre pequenos recortes, fragmentos da nossa realidade –; que acima também das nossas sutilezas de estilo, estava a diferença fundamental entre o Sul e o resto do Brasil – como símbolo não redutor, primeiro e inquestionável, abrangendo todos os outros –: o frio. Vi que o Rio Grande do Sul simbolizava o frio no Brasil – a chegada do frio no Sul, mesmo com aquele ar "acredite se quiser", está anualmente na pauta da mídia nacional. E me dei conta de que o frio simbolizava o Rio Grande do Sul. Passei a ver o frio como metáfora amplamente definidora do gaúcho.
Esta idéia foi-se enchendo de sentido na medida em que, morando no Rio de Janeiro e viajando constantemente pelo Brasil, passei a sentir o clima tropical – a regularidade de um clima de mudanças tão discretas entre as estações; o calor; a presença constante e vital do sol, do mar e dos rios – como um grande pano de fundo onde se repetiam certas características que pareciam unificar o modo de ser dos brasileiros em sua diversidade. Deparei-me em muitos lugares – e lugares distantes entre si – com um mundo de valores, de hábitos, de gostos e anseios compartilhados que para mim não tinham a mesma significação. Mais objetivamente, vivenciei a expansividade, o excesso, o emocional, o gosto pelas ruas, pela diversão, pela alegria, pelo culto ao corpo, pela dança, pelo ritmo, pelo colorido, pela espontaneidade, pelo caos, pelo múltiplo, pelo variado, pelo eclético, etc. Vivenciei tudo isso e muito mais, sempre sob aquele amarelo forte, aquele quase tom laranja da luz do dia. Foi quando comecei a entender melhor o esforço dos românticos, a atitude dos modernistas, a postura dos tropicalistas. E foi quando não entendi e não aceitei a nossa distância "fria". Eu confirmara que a riqueza cultural do Brasil residia na sua diversidade e, claro, o Rio Grande do Sul já tinha nisso a sua contribuição. E depois, ao encontrar para cada característica comum dos "brasileiros" uma contrapartida na minha maneira de ser, nos meus hábitos de "homem que veio do frio", me perguntei como era possível que se visse nisso um sinal de incompatibilidade e não o sinal de que uma estreita colaboração entre os dois "estilos" abriria uma perspectiva humana e criativa infinitamente rica de possibilidades.
Até quando essa dieta de brasilidade que nós gaúchos nos impomos? Aonde isso nos levará? E até quando essa dieta gaúcha que impomos ao Brasil, reduzindo-nos numa estreita e auto-indulgente visão caricata de nós mesmos e do nosso mundo? Por que uma comunicação natural e direta com o resto do país deve ser tão complicada e escassa? Por que não soar "normal" se somos brasileiros, se estamos fisicamente ligados ao Brasil, se fazemos parte da cultura nacional? Será que estamos fadados a que toda e qualquer expressão nossa soe sempre "folclórica"? Não iremos jamais compartilhar, contribuir regularmente, acrescentar de forma natural e efetiva com o país?
Penso nas queixas que ouvi de gente do Acre e do Mato Grosso a respeito do "gaúcho" que costuma chegar, esgotar a terra e sumir – enquanto mantém belas fazendas no Rio Grande do Sul. Penso nas cobranças dos gaúchos a Elis Regina e na expressão "vendidos", que tantas vezes ouvi ser usada em referência aos artistas que optaram por viver e trabalhar no centro do País – para qualquer brasileiro, vencer no centro do País é motivo de orgulho. Penso que ouvi em Porto Alegre alguém dizer que Lupicínio Rodrigues não era um compositor gaúcho, que ele fazia música brasileira – o fato de ser negro já parecia separá-lo um pouco da cor local.
Penso que os gaúchos devem se aproximar do Brasil. Se acham que são diferentes, tanto melhor! Penso que devem ambicionar – guardadas as proporções – contribuir tão fartamente para a cultura nacional quanto os nordestinos. Não quero dizer com isso que devam trocar a gaita pelo cavaquinho ou pelo berimbau – nem misturá-los acreditando que apenas o fato de estarem juntos já signifique uma fusão ou uma nova linguagem –; não acho que devam adotar o coco gelado no inverno, às margens do Guaíba. Acho, pelo contrário, que a aproximação dos gaúchos com o Brasil se dará no dia em que aproximarem-se de si próprios; no dia em que, refinando a sua linguagem, fizerem valer a completude da sua sensibilidade, deixando para trás um fragmento, uma curiosidade, ou como coisa imprestável, a caricatura redutora sob a qual se acomodaram.
Jorge Luis Borges disse que ao escrever não necessitava "tentar" ser argentino, porque já era. Se "tentasse" soaria artificial. Perfeito. O "tentar" ser é caricatura. Não "tentar" ser gaúcho, nem "tentar" ser brasileiro.
Quando falo em caricatura não estou falando em tradição. Porque a tradição não é jamais um engano. A tradição não deve ser um peso a ser suportado, nem um amontoado de fórmulas estanques a serem repetidas. O artista, para criar algo de valor, para realizar algo que faça sentido dentro do "fazer artístico", deve não apenas acompanhar criticamente a trajetória da sua própria sensibilidade, mas também dirigir seu olho crítico para o contexto em que está inserido e o que o precedeu – o que o levou à sua forma de expressão. Para estar viva, a tradição deve estar justificada na expressão contemporânea – e ela estará justificada mesmo que o novo represente uma ruptura. A expressão contemporânea, por sua vez, para justificar sua existência, deve ser eficaz o suficiente para promover um avanço na trajetória da tradição de que está imbuída, deve ser ela mesma tradição, tradição em movimento, tradição futura.
E penso logo: qual é a minha tradição? A tradição brasileira é minha? É natural que eu atue com ela e a partir dela? Mas tenho diferenças que me distanciam da "comunhão tropical"? Tenho mais forte a tradição de um "país frio", a tradição de um "país deslocado" do Brasil, ao mesmo tempo tão próximo do Uruguai e da Argentina? É natural que eu atue com e a partir dessa tradição "fria"? Sim! Devo fazer valer este sentimento de "dupla personalidade", devo querer o máximo desta "dupla cidadania", fazer dela fonte de criação e não fonte de diluição da minha capacidade criadora. Pensando o "frio" como metáfora amplamente definidora do gaúcho, acho que uma concepção "fria" tem muito o que fazer com uma concepção "quente". Estou pensando em uma "Estética do frio".
A ESTÉTICA DO FRIO
Quando daquela "incômoda sensação de estar no exílio", constatei que a música urbana do Rio Grande do Sul era, além de desconectada do Brasil, absolutamente indefinida, o que me pareceu inadmissível para um lugar com uma sensibilidade tão peculiar e uma produção tão grande. Olhei, evidentemente, para mim mesmo – este território que conheço com mais exatidão – e vi que, morando no centro do País há tanto tempo, aquela indefinição me acompanhava. A indefinição aparecia da seguinte forma: as coisas estavam lado a lado, visíveis, formando um corpo eclético. Não havia uma linguagem que imprimisse unidade a elas. Havia de um lado o dado regional, de outro o brasileiro, de outro o mundial, resultando num ecletismo completamente ineficaz e batido. Mais que isso. Em cada um desses dados havia indefinição, faltava rigor formal. Vi o ecletismo como herança cansada do tropicalismo, sua degeneração como estilo, como postura, em uma ausência do estilo, em um hábito. O que em outro tempo fora a reação natural a um mundo que tendia a se perpetuar em formas estanques, fazia agora – num mundo plural, onde as portas estavam todas abertas – menos sentido que uma linguagem que pusesse unidade na diversidade. E me veio a imagem invernal de um gaúcho solitário tomando seu chimarrão, a olhar a imensidão fria do pampa sob o céu cristalino da manhã. Uma imagem de pura definição! Uma expressiva composição de poucos elementos: a figura imóvel e bem delineada do gaúcho, o céu claro, o verde regular e a linha reta do pampa no horizonte. E me vieram palavras como rigor, precisão, concisão, sutileza. Uma cena regional, quase remota! Curiosa associação. Eu estava vislumbrando naquele pampa a música que eu queria: linguagem altamente definida abrindo um espaço onde a inteligência e a sensibilidade encontrassem um campo radicalmente aberto e irresistível para se expandir. Eu estava vislumbrando uma concepção naquele universo "frio". Uma concepção "fria". Talvez o tempo estivesse me fazendo transformar sentimentos em idéias.
Era urgente ir atrás daquela concepção "fria". Era urgente definir a linguagem. Era urgente, portanto, que eu me debruçasse sobre "meu modo de fazer"; era urgente privilegiar o processo, adquirir confiança nele. Era preciso ganhar um sentido prático. Era dominar a linguagem para poder transcendê-la e chegar à poesia. Porque chegar à poesia é chegar em nossa essência – é não "tentar" ser. Era preciso ter controle sobre o que era passível de ser controlado, para que toda a dimensão incontrolável – a "inspiração", a dimensão secreta e obscura –, toda a dimensão que está além da técnica não fosse desperdiçada. O domínio da técnica é libertador, serve ao que não pode ser dominado. Era preciso refinar a linguagem. E era urgente, antes, uma faxina.
Tomei distância das práticas externas a mim, dos procedimentos institucionalizados, do ecletismo da média, daquilo que se faz meio sem saber por quê. Anotei as coisas ruins em que eu reincidia, as coisas boas que eu deixava de explorar. Joguei fora tudo o que me pareceu normal ou médio. Desci a lupa sobre os extremos: o grotesco e o sutil, o rítmico e o imóvel, o literário e o coloquial, etc. Forcei os limites. Estive na ausência da melodia, no minimalismo harmônico. Saí de letras gigantes, cheguei em letras de duas linhas. Compus músicas de dez minutos e músicas de alguns segundos. Partido em dois, em mim mesmo exercitei os extremos. Separei-me em dois personagens para dividir palco e repertório. Compus para cada um segundo suas necessidades expressivas. Proibi palavras, notas, acordes. Arrumei dificuldades para me obrigar a ir atrás de soluções. Saí da canção para voltar a ela e estar por dentro.
No fim da faxina uma constatação: eu não experimentara a forma da milonga. Não encontrara sentido nisso. Pelo contrário, minha maneira de tratá-la cada vez mais era sutilizar as suas características atrás de uma pureza que seria sua única forma possível. Por quê? Porque a milonga era feita da mesma matéria de que era feita a imagem do gaúcho e do pampa. O sentido que eu vislumbrara na imagem era o sentido de pureza que eu via na milonga. Ou seja: havia uma correspondência direta entre a forma ideal da milonga e as idéias que norteavam a minha busca daquela concepção "fria". E eu podia ir direto à sua essência, sem rodeios. Era simples lidar com ela e o resultado era eficaz. Meu rigor – que eu enxergara na imagem – se acomodava imediatamente à sua forma rigorosa. Em suma, nada do que ela exigia era estranho à concepção "fria". Isso significava que uma concepção "fria" se resumiria à forma da milonga? Não. Significava de que maneira haveria sentido e funcionalidade na concepção "fria". A milonga "funcionava". E se "funcionava" era porque tudo nela – melodia, ritmo, letra, etc. – estava sob controle. Nada pode não ser concebido ou concebido com displicência numa milonga sem que ela perca a sua força, sem que não haja eficácia no seu resultado final. Uma milonga deve ter sua própria concepção. Esta pista me levou de volta à imagem do gaúcho e do pampa. A concepção "fria" que nela eu vislumbrara só seria eficaz se a expressividade que eu captava na cena como um todo eu fosse capaz de captar nos seus detalhes – nos traços do rosto do gaúcho, por exemplo, na luminosidade do seu olho, na profundidade do seu pensamento, na dispersão da sua memória. Era desta forma que a concepção "fria" se afirmara na forma da milonga, a milonga que, da mesma forma que a imagem, se opunha a tudo o que era múltiplo, excessivo. A milonga em tom menor, reflexiva, densa, profunda e melancólica. Rigorosa em sua cadência, seu ponteio, seu fraseado; sutil em seu movimento melódico sinuoso, oriental. E não por isso cerebral: milonga intuitiva, emocional. Se abarcasse uma grande cena, um grande desenrolar temático, seria sempre contida, nunca excessiva. Milonga concebida.
Se eu fosse aquele gaúcho da imagem, absolutamente "definido", a forma da milonga me saciaria. Com ela eu poderia apreender a totalidade do meu universo "frio". Mas não se tratava disso. Eu não era absolutamente "definido", e meu universo era "plural". O mundo que eu queria apreender era múltiplo, excessivo. E para essa tarefa a forma puramente "definida" da milonga não me bastaria. O que me bastaria?
Ter encontrado um sentido de pureza naquela paisagem "fria" e na forma "fria" da milonga, indicava que aquele sentido de pureza já existia em mim. Indicava que eu estava vinculado àquele universo "frio", que eu tinha uma formação "fria" e – partindo do princípio de que toda arte é uma leitura do mundo – que eu tinha uma leitura "fria" do mundo. Eu queria unidade na diversidade? Pois ao tentar apreender a pluralidade do mundo através desta leitura "fria" eu teria unidade na diversidade. É que, para saciar o sentido de pureza que me movia, o único resultado possível seria o que tivesse a expressividade que eu via na paisagem "fria" e na forma "fria" da milonga. O mundo devia ser a minha leitura do mundo, não o contrário. Essa convicção banal era a única coisa que eu precisava para refinar a linguagem e chegar à sua "alta definição". Em termos práticos: assim como a forma da milonga não me bastava, também não era o caso de ficar transpondo mecanicamente para as músicas as características definidoras do universo "frio" – o frio favorece à introspecção Þ a música será introspectiva; o pampa é imenso e regular Þ a música será longa e repetitiva. Talvez só por curtição eu visse um determinismo nessas analogias. Depois da faxina, depois de ter feito aquela devassa no meu universo musical, e ter adquirido uma razoável consciência do que eu parecia fazer melhor e com mais gosto – essa consciência não se adquire muito facilmente –, era hora agora de voltar a este labirinto de informações, à infinidade das minhas referências, às minhas mais antagônicas obsessões e reestruturar tudo a partir da minha ótica "fria" – transformar meu caos em meu cosmos "frio"; buscar o sentido de pureza do "frio" em toda a parte – e fazer com que "funcionasse", fazer com que todos os meus resultados fossem eficazes. Se todos os elementos de uma música têm o poder de significar – melodia, arranjo, ritmo, harmonia, execução, etc. –, era preciso ter controle absoluto sobre cada um desses elementos. Se um deixasse de ser concebido, o efeito de conjunto estaria diluído. A minha marca deveria estar em todas as partes para estar no todo. Antes disso: o ato de compor já teria em vista a concepção final. A música deveria ser sua própria concepção. Concepção "fria".
O que uma boa audição resolveria:
– Música Popular Brasileira.
– Uma estética do rigor.
– Unidade na diversidade.
– O predomínio da canção. Música e letra. Longas canções lineares, pequenas canções de segundos (não vinhetas) e as deliciosas formas comuns tipo AABAB e variantes. Jamais encheção de lingüiça (repetir a letra, solos ou falas gratuitas, etc.). Pequenas, grandes, com refrão, sem refrão: todas as canções igualmente densas, exatas em sua duração. Cada canção impõe sua concepção. Mas há uma concepção para todas as canções.
– A melodia como um raciocínio minucioso e claro. Mas intuitiva. Muita melodia. Cromatismo. A sinuosidade melódica da milonga onipresente, mas sua melancolia aplacada pela leveza da canção brasileira. A repetição. O círculo. Motivos amplos e lineares. Também a eventual ausência da melocia,a tensão da fala: estranhezas preparadas.
– Harmonia aberta. Fluxo regular.Troca sutil de acordes. Também acordes de sétima chamados pelo orientalismo melódico da milonga. A harmonia nascendo e se desenvolvendo junto com a melodia, como um só corpo (onde também estará a letra). Esse corpo é o centro. Mas sem privilégio. O privilégio é para o todo. Talvez a harmonia tenha o papel de amalgamar o todo, de fazer a ponte entre as partes. Mas não sempre. O elemento atonal entrando naturalmente no fluxo, sem configurar um choque.
– O ritmo brasileiro, negro, dançante, tratado com certa dureza (o rigor do tango) e preciosismo planejados. O ritmo como um raciocínio minucioso. Mas intuitivo. O ritmo saído de dentro da harmonia/melodia ou o contrário. Buscando a estranheza: acentuações incomuns (coladas no movimento harmônico/melódico ou em nuances da letra); timbres percussivos incomuns (mas não muita variedade timbrística). O uso do ritmo eletrônico se a intenção for a regularidade e a repetição. A eletrônica vai muito bem com ritmos negros. Eletrônica + complementação com instrumentos tocados por mão humana: se for este o efeito procurado ou se só a eletrônica soar inexpressiva. O ritmo trazendo leveza. Limpeza. Uma analogia? Montanhas e morros do Rio colocados aqui e ali, criteriosamente, na vastidão lisa do pampa.
– Os músicos dentro da concepção. A concepção conta com as peculiaridades dos músicos. O músico livre sozinho e livre com os outros músicos. Conjunto. As bases tendendo à regularidade e à repetição (individualmente e entre si). A "cobertura" trazendo a variedade: sonoridades diversas e incomuns. O acústico. Tudo muito "vivo". Não padronização. Não redundância. Sonoridade preparada, não adotada. A ordem interna da letra e a ordem interna da harmonia e a ordem interna do ritmo refletidas na ordem do arranjo. Minúcias. Limpeza. Teclados eletrônicos só para sonoridades específicas. Solos escritos. Solos que as músicas exigem. Quase tudo já se resolve na estrutura da canção. Contenção. O violão executado dentro da concepção, não aleatoriamente, violão com afinação preparada para explorar a sonoridade das cordas soltas e os efeitos da harmonia aberta.
- As palavras saem da sugestão sonora da melodia. Os sons sem sentido da melodia viram palavras. Antes da letra já estão ali os acentos, as rimas, os tamanhos das palavras. As palavras virão dessa não-letra intuitiva, desses grunhidos espontâneos. A letra, portanto, será inseparável da melodia/harmonia. Um corpo só. Nada poderá ser tirado sem que ela perca a sua força. Exatidão. O tamanho da melodia é o tamanho da letra. Só que a melodia se repete e a letra não. A letra começando no início da melodia e evoluindo sempre diferente (um raciocínio minucioso) até o final. Repetição só no refrão. Mas não sempre. Surgidas de sons ininteligíveis, as palavras irão impor o seu sentido. E serão tratadas racionalmente como um poema. Talvez até "funcionem" ao serem apenas lidas. Mas não são poemas. Pertencem à poesia, mas são letras de música. Descrições minuciosas do cotidiano. A ambigüidade das palavras e o mundo concreto. Não há mensagem. Palavras abertas numa abertura tão vasta que quase nada pode passar por elas. O respeito absoluto à prosódia. O humor trazendo a leveza.
JUNHO
Edgar Poe, the ancient raven et moi.* Penso no refrão de uma milonga minha, onde sobrevôo a cidade de Porto Alegre: "Nunca mais, Nunca mais." O "Nevermore, Nevermore" do pássaro de Poe. Nunca mais havia pensado nisso. Boto na memória, desligo o computador e vou outra vez até a janela. Limpo o vidro, olho para a rua. No fundo, isso tudo é apenas o que meu olho inventa: Satolep. No tabuleiro rigoroso dessas ruas e na arquitetura minuciosa desses prédios a vida contemporânea explode em sua diversidade. Quando a noite chega, mil outras vezes a explosão se espalha em coisas que a cidade sonha. E a neblina desce e se instala. Estética do frio.
Vitor Ramil
Ensaio publicado no livro Nós, os gaúchos, Editora da UFRGS, 1992 - (Lido aqui)
Vitor Ramil (1962) é um músico, cantor, compositor e escritor brasileiro.
Site de Vítor Ramil