Perdeu-se a arte de tirar uma italiana
Luís Pedro Nunes (www.expresso.pt)
0:00 Quarta feira, 19 de janeiro de 2011
Mas como é que se faz um chá decente? Eis uma questão que tem vindo a ser debatida nos últimos dias em alguns dos grandes jornais anglo-saxónicos e quase nos convencemos ser tema de grande complexidade. Foram repescar um texto de Yoko Ono sobre John Lennon e logo a Christopher Hitchens sentado nos ombros de George Orwell não resistiu a acrescentar... nada. Que chalaceiros. Resumo: primeiro põe-se a saqueta na chávena e depois é que se verte a água a ferver. The End. Ora que eu gostava de saber é porque é que já não consigo pedir uma italiana em Portugal sem me irritar. Sim, é mais ou menos um café curto para os do Porto que fingem não saber o que é. Como é que se perdeu a 'ideia de italiana bem tirada'? E como é que ninguém se rala com tal coisa?
A verdade é não há como os bifes para promover a sua inglesidade através de água fervida com plantas aprisionadas numa saqueta vindas de ex-colónias. Mas a 'arte' de fazer chá pode ser testemunhada ao vivo por vários pontos do Oriente e sem saqueta. Aí é que é de malabarista. Curioso é tentar perceber os porquês da não existência do culto do café em Inglaterra. Os salões de café eram também prostíbulos e quando foram encerrados a beberagem ficou com a má reputação. E há quem diga que fazer café era algo de muito complexo para um inglês, dado que exigia torrar, moer, coar... oh dear... ficaram-se pelo chá que é apenas água fervida. Mas vamos às italianas.
Ainda há pouco tempo a vida era simples. Havia a unidade - a bica, e poucas variações: bica cheia, carioca e italiana. Umas velhas chatas pediam bica escaldada ou em chávena fria e para os tipos de barba rija bica com cheirinho (uísque ou bagaço). O termo bica (café) tem os seu regionalismos - sim, o cimbalino - mas deixem lá isso agora. Como é que agora não se acerta numa italiana?
Há dias vi no Facebook uma indignação sobre este tema: uma italiana que só sujava o fundilho da chávena. E até tinha uma foto a comprovar: uma rodela castanha de espuma castanha-lama algures no fundo.
Tende-se logo a culpar a chegada dos Starbucks mas não é nada disso. Antes já tinham chegado os descafeinados, os abatanados (seja lá o que isso for) mas só as italianas foram descuradas. A culpa é mesmo nossa, dos consumidores. E dos donos dos estabelecimentos. Entra-se num café, aproximamo-nos do balcão de uma pastelaria tradicional e ao fim de dois minutos já percebemos a dinâmica social do lado de lá: quem está chateado com quem, quem é o ostracizado, quem é a chefona, eles representam para os clientes a sua sitcom de pastelaria. Desculpe mas é muito café para uma italiana. "Isto sempre foi uma italiana!", respondem em desafio e vão à máquina, despejam um pouco e devolvem arrogantes (na cabeça deles ouvem risos e aplausos).
Mas a questão essencial foi a grande rotatividade de funcionários nas últimas décadas - muitos deles emigrantes acabados de chegar. Aconteceu-me muitas vezes pedir uma italiana e não saber do que se tratava ou de me dar um pingo de café no fundo, reclamar e responder-me que tinha carregado no botão certo da máquina portanto tinha que ser aquilo.
Afinal o que é uma italiana? Nem eu sei já... porque já nem peço para não me passar. Os portugueses acabaram rendidos às mariquices dos cafés dos Clooneys e fazem filas à espera das cápsulas! Filas para comprar cápsulas de café... Mas basta pedir um café que não tenha mistura feita em Portugal (com o blend de cafés ao nosso gosto) para se perceber que não sai igual. Uma italiana não é um 'expresso'. Não é um 'levanta mortos' mas é meia chávena com espuma grossa e persistente, é quase morna mas não é fria, é forte mas não é desagradável, é potente mas não agreste. Ó senhor Nabeiro não lhe fazia mal nenhum pôr um thinktank a refletir sobre este assunto e mandar fazer um risquinho no lado de dentro das chávenas no ponto certo onde deve ser a italiana. Essa comenda exige dever social para com a comunidade. Obrigado.
Luís Pedro Nunes
(Retirado do Expresso)
Luís Pedro Nunes (www.expresso.pt)
0:00 Quarta feira, 19 de janeiro de 2011
Mas como é que se faz um chá decente? Eis uma questão que tem vindo a ser debatida nos últimos dias em alguns dos grandes jornais anglo-saxónicos e quase nos convencemos ser tema de grande complexidade. Foram repescar um texto de Yoko Ono sobre John Lennon e logo a Christopher Hitchens sentado nos ombros de George Orwell não resistiu a acrescentar... nada. Que chalaceiros. Resumo: primeiro põe-se a saqueta na chávena e depois é que se verte a água a ferver. The End. Ora que eu gostava de saber é porque é que já não consigo pedir uma italiana em Portugal sem me irritar. Sim, é mais ou menos um café curto para os do Porto que fingem não saber o que é. Como é que se perdeu a 'ideia de italiana bem tirada'? E como é que ninguém se rala com tal coisa?
A verdade é não há como os bifes para promover a sua inglesidade através de água fervida com plantas aprisionadas numa saqueta vindas de ex-colónias. Mas a 'arte' de fazer chá pode ser testemunhada ao vivo por vários pontos do Oriente e sem saqueta. Aí é que é de malabarista. Curioso é tentar perceber os porquês da não existência do culto do café em Inglaterra. Os salões de café eram também prostíbulos e quando foram encerrados a beberagem ficou com a má reputação. E há quem diga que fazer café era algo de muito complexo para um inglês, dado que exigia torrar, moer, coar... oh dear... ficaram-se pelo chá que é apenas água fervida. Mas vamos às italianas.
Ainda há pouco tempo a vida era simples. Havia a unidade - a bica, e poucas variações: bica cheia, carioca e italiana. Umas velhas chatas pediam bica escaldada ou em chávena fria e para os tipos de barba rija bica com cheirinho (uísque ou bagaço). O termo bica (café) tem os seu regionalismos - sim, o cimbalino - mas deixem lá isso agora. Como é que agora não se acerta numa italiana?
Há dias vi no Facebook uma indignação sobre este tema: uma italiana que só sujava o fundilho da chávena. E até tinha uma foto a comprovar: uma rodela castanha de espuma castanha-lama algures no fundo.
Tende-se logo a culpar a chegada dos Starbucks mas não é nada disso. Antes já tinham chegado os descafeinados, os abatanados (seja lá o que isso for) mas só as italianas foram descuradas. A culpa é mesmo nossa, dos consumidores. E dos donos dos estabelecimentos. Entra-se num café, aproximamo-nos do balcão de uma pastelaria tradicional e ao fim de dois minutos já percebemos a dinâmica social do lado de lá: quem está chateado com quem, quem é o ostracizado, quem é a chefona, eles representam para os clientes a sua sitcom de pastelaria. Desculpe mas é muito café para uma italiana. "Isto sempre foi uma italiana!", respondem em desafio e vão à máquina, despejam um pouco e devolvem arrogantes (na cabeça deles ouvem risos e aplausos).
Mas a questão essencial foi a grande rotatividade de funcionários nas últimas décadas - muitos deles emigrantes acabados de chegar. Aconteceu-me muitas vezes pedir uma italiana e não saber do que se tratava ou de me dar um pingo de café no fundo, reclamar e responder-me que tinha carregado no botão certo da máquina portanto tinha que ser aquilo.
Afinal o que é uma italiana? Nem eu sei já... porque já nem peço para não me passar. Os portugueses acabaram rendidos às mariquices dos cafés dos Clooneys e fazem filas à espera das cápsulas! Filas para comprar cápsulas de café... Mas basta pedir um café que não tenha mistura feita em Portugal (com o blend de cafés ao nosso gosto) para se perceber que não sai igual. Uma italiana não é um 'expresso'. Não é um 'levanta mortos' mas é meia chávena com espuma grossa e persistente, é quase morna mas não é fria, é forte mas não é desagradável, é potente mas não agreste. Ó senhor Nabeiro não lhe fazia mal nenhum pôr um thinktank a refletir sobre este assunto e mandar fazer um risquinho no lado de dentro das chávenas no ponto certo onde deve ser a italiana. Essa comenda exige dever social para com a comunidade. Obrigado.
Luís Pedro Nunes
(Retirado do Expresso)