PÁSCOA
A senhora tia alisa a toalha
põe sobre ela talheres muito antigos
herdados dos avós que a terra come
quantos anos passados deste dia
ainda estaremos como agora juntos
na cozinha de Sangalhos
entre o fumo da lenha seca
e o cheiro misturado
das carnes e das hortaliças
que acabam de ferver no fogo esperto
minha mãe diz um dito qualquer
seca a vista embaciada eu venho
do pátio certamente cantando
o tio – as urinas presas
no laço da bexiga –
conta uma história
da guerra de 14
do vizinho morto jovem
como ele Manuel sorte infeliz
ao tempo que isto foi
Fernando Assis Pacheco
Respiração Assistida, Assírio & Alvim, 2003
(Fotografia de Ricardo Vilaça - Talheres antigos, 2013)
segunda-feira, 14 de abril de 2025
Fernando Assis Pacheco - Páscoa
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Eduardo Pitta - “Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz...”
Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz.
Quando era tudo de perfil. Nem podia ser
de outro modo: de perfil e em diorite
como nos retratos do Império Antigo. Muitos
iriam acolher depois os ritos do primitivo
estigma. Nos parques, na penumbra dos relvados,
ficou dessa queimadura uma legenda. Alguns
resistem. Paralisa-os a vertigem de uma estreita
afeição. No limite do conhecimento, a tremer
de alegria, encontram aquilo que
tinha sido esquecido. A cabeça entre as pernas
nem sempre se distingue de um sussurro
de lâminas. A música de tal desígnio percute
nas sílabas todas do inominado canto. Às vezes
por um punhado de lágrimas, equívoco maior.
É claro que a iniquidade continua impune.
Eduardo Pitta
Mais poemas no blogue Poemário
sábado, 5 de abril de 2025
Página sobre Alexandre O’Neill
terça-feira, 1 de abril de 2025
Alexandre O’Neill - O amor é o amor
O AMOR É O AMOR
O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...
O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois? —
espírito e calor!
O amor é o amor — e depois?
Alexandre O'Neill
Abandono Vigiado (1960)
(Fotografia de Antonio Gutierrez)
segunda-feira, 31 de março de 2025
Teresa Dias Coelho - Mas há um dia...
É danado, mas há um dia, que, sabe-se lá porquê (até se sabe) tomamos consciência da nossa "finitude", morrem-nos os amigos, as referências de geração, ou de forma de estar, ficamos cada vez mais sós, cá nos aguentamos, que somos dessa espécie, a de nos aguentarmos, sobreviventes, por isso mesmo tenham cuidado connosco, não temos nada a perder e podemos ir aos limites do que possam imaginar, se é que podem imaginar seja o que for.
Teresa Dias Coelho
sexta-feira, 28 de março de 2025
António Reis - “Mudamos esta noite…”
Mudamos esta noite.
E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões
onde levar as plantas
e como disfarçar os móveis velhos
Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos
ainda aqui viviam
e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem
Vai descendo tu
Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias
António Reis
Poemas quotidianos (1967). Há uma edição da Tinta da China de 2017 com prefácio de Fernando J.B. Martinho e posfácio de António Sapinho.
Blog António Reis (último post: 25-9-2020)
(Fotografia de Pedro Couto e Santos)
segunda-feira, 24 de março de 2025
Manuel Bandeira - Rimancete
RIMANCETE
À dona do seu encanto,
À bem amada pudica,
Por quem se desvela tanto,
Por quem tanto se dedica,
Olhos lavados em pranto
O seu amante suplica:
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te meus olhos (disse ela),
Os meus olhos sim senhor…
— Ai, não me fales assim!
Que uma esperança tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te os meus lábios (disse ela),
Os meus lábios sim senhor
— Ai não me enganes assim!
sonho meu! Coisa tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Dou-te as minhas mãos (disse ela),
As minhas mãos sim senhor…
— Não me escarneças assim!
Bem sei que prenda tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela
Por preço do meu amor?
— Dou-te os meus peitos (disse ela),
Os meus peitos sim senhor…
— Não me tortures assim!
Mentes! Dádiva tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela,
Por preço do meu amor?
— Minha rosa e minha vida
Que por perdê-la perdida,
Me desfaleço de dor…
— Não me enlouqueças assim,
Vida minha! Flor tão bela
Nunca será para mim!
O que me darás, donzela?
— Deixas-me triste e sombria.
Cismo… Não atino o quê…
Dava-te quanto podia…
Que queres mais que te dê?
Responde o moço destarte:
— Teu pensamento quero eu!
— Isso não… não posso dar-te…
Que há muito tempo ele é teu…
Manuel Bandeira
Carnaval (1919)
(Fotografia de André Mantelli - Segredos de carnaval, 2010)
quinta-feira, 20 de março de 2025
Fernando Pessoa / Álvaro de Campos - “Soneto Já Antigo”
III
Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos ai de Londres,
Que embora não o sintas, tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de
Londres p’ra York, onde nasceste (dizes —
Que eu nada que tu digas acredito...)
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes
(Embora não o saibas) que morri.
Mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará. Depois vai dar
A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!...
(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente; uns quatro meses antes
do Opiário, portanto) Dezembro 1913
“Três Sonetos” Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 2.
1ª publ. com o título “Soneto Já Antigo” in Contemporânea, nº 6. Lisboa: Dez. 1922.
(http://arquivopessoa.net/textos/4390)
segunda-feira, 17 de março de 2025
José Tolentino Mendonça - O teu rosto aos vinte e cinco anos de idade
Numa conversa sobre o destino da arte
lembro o teu rosto
onde os elementos ensaiam
a revelação dos primeiros detalhes
irremediáveis:
a marca da sombra, o recuo das forças,
o alarme da dor,
a arte existe apenas
como homenagem (pobre, desolada)
àquilo que cada rosto foi
um dia através da paisagem.
José Tolentino Mendonça
Baldios (1999), em A Noite Abre Meus Olhos [poesia reunida], Assírio & Alvim, Lisboa, 2008
sexta-feira, 14 de março de 2025
Antero de Alda - Celestine
Há quem tome comprimidos para a diabetes, para o coração, para o colesterol... Há também quem tome comprimidos para morrer e quem tome comprimidos para matar. Há ainda quem não tome comprimidos, nem para a diabetes, nem para o coração, nem para o colesterol, nem para morrer ou para matar. Provavelmente, só para sobreviver...
Até que as pedras se tornem mais leves do que a água, como diz António Lobo Antunes. Ou até que uma nova alma húmida seja capaz de nos resgatar de certa solidão existencial.
Enfim, deverei tomar algum comprimido para não morrer?
Antero de Alda
(Antero de Alda - abril 2018)
segunda-feira, 10 de março de 2025
Carlos Drummond de Andrade - Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Carlos Drummon de Andrade
Sentimento do Mundo (1940)
sábado, 8 de março de 2025
Maria Gabriela Llansol - “Não há mais sublime sedução…”
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.
Maria Gabriela Llansol
O começo de um livro é precioso, assírio & alvim (2003)
(Fotografia de Vera Biryukova)
terça-feira, 4 de março de 2025
Alexandre O'Neill - Um Carnaval
UM CARNAVAL
Vem ao baile vem ao baile
Pelo braço ou pelo nariz
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris
Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber
Vem ao baile das palavras
Que se beijam desenlaçam
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças
Vem ao baile oh tens de vir
E perder-te nos espelhos
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir
Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caíres de borco
A tua alma é mais pura
Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile baile baile
E vais ver o que é bailar.
Alexandre O'Neill
No Reino da Dinamarca (1951)
(Fotografia de Hubert Cazals, Carnaval en Portugal, 2017)
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Almada Negreiros - A sesta
Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme, espreita também de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar. Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir. E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos. E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.
Almada Negreiros
(Leo Gestel - An Amorous Pierrot in the Café)
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Joaquim Cardozo - Poema para a nudez de Ítala Nandi
POEMA PARA A NUDEZ DE ÍTALA NANDI
Ítala Nandi despiu-se
Tirou suas roupas desnecessárias
E não conseguiu ficar nua:
Sua bunda, seus seios minúsculos, sua babaca pequenina,
São as mesmas da primeira nudez em que nasceu.
Apenas ficou lisa
Apenas entrou na periferia
De um corpo nu pintado: de Cranach ou de Balduing.
- Nudez de Eva, a primeira mulher.
Ítala Nandi, porque escondeste
Por tanto tempo a todos nós
Tua santa e secreta nudez?
Tua nudez sagrada
Nudez para ser beijada
Com esse nu, tão assim de superfície
Todo o teu esforço no sentido da arte erótica
Onde a platéia e os atores são os mesmos,
Dás apenas o efeito tátil de pouca penetração
Com essa primeira e indígena nudez
Ítala Nandi, é quando te vestes
Que ficas nua
Joaquim Cardozo
(Recife, 1897 - Olinda, 1978)
(© Foto de Mauro De Blanco. A atriz Ítala Nandi aos 16 anos de idade no seu primeiro ensaio fotográfico. Caxias do Sul (RS). Brasil, 1958.)
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
Uma estrofe de Jorge de Sena
VI
A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.
Jorge de Sena
Estrofe do poema "O beco sem saída, ou em resumo..." do livro Exorcismos (1972)
(Fotografia de Angela, 2005)
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Manuel da Fonseca - Quinta
Bem alto foram os gritos e os braços erguidos,
bem amargas as lágrimas choradas.
E secas as lágrimas estalaram as raivas
nas florestas dos braços aflitos
… A Vida lá vai,
mais amada que ontem, mais desejada que nunca!
Manuel da Fonseca
Lido no blogue Voar fora da asa
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Hilda Hilst - "Que este amor não me cegue nem me siga.”
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça mais pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.
Hilda Hilst
(Lido em da luz & da sombra)
(Fotografia de Isadora Picolo)
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
Tatiana Faia - antonia
antonia
caminhamos pelas montanhas
como se se pudesse regressar do abismo
tu à frente, eu atrás
tu com uma corda às costas
calças curtas, uma camisola de malha
às vezes perdes-te à minha frente no trilho
pelo nevoeiro, o azul
da tua camisola confunde-se
com o cinzento da montanha
e eu chamo o teu nome
um som em perfeita queda
como a água ou a noite descendo
aguçada sobre os penhascos
de repente sei que não é este já
o tempo das revelações
as esquinas que virei em trastevere
tu pensas que é pouco o que resta
e talvez não baste e isto é a sério
eu penso se o pouco que resta
justifica paciência para tanto dano
estas são as pequenas perguntas
e as perguntas certas
os teus lábios fecham-se numa linha
isto é verdade o teu sorriso
vai ficar comigo muito depois
de termos batido a altitude
e regressado aos vales lá em baixo
e voltarmos a ser quem temos sido
mas são perfeitos os círculos que os pássaros
desenham acima dos ciprestes
cujas copas se cobrem agora de neve
e o cheiro do ar e o tilintar do teu cantil
gelado pela neve no bolso da tua mochila
não é bem isto a nossa pequenez
afundando-se na paisagem
os momentos de silêncio mudo
os momentos em que o silêncio
te esgotou e te fez falar demasiado alto
e nunca tão alto que chegasse para conversar
há entre nós duas
o mundo secreto de todos cadernos
e também este verso que agora é teu
gastei muitas folhas e muita tinta
e nenhum espaço que me cabe me conforta
queria ter vivido sem causar dano, antónia
mas até o amor, a alegria, a caneta esquecida num copo
e o papel de parede e a tua tosse enquanto
acendes mais um cigarro e estendes os braços
para abraçar o ar até a memória
do corpo despido e quente
e quieto entre os lençóis
tudo isso abre as suas feridas
pede as suas cicatrizes
um tempo que ultrapasse o tempo
medindo-o com a sua ternura
e com tudo o que se perde
com tudo o que vai e vem e não nos pode gelar
o corpo os dedos movendo-se lentamente
traçando o nome da minha cidade nas tuas costas
até a mais fechada das estações
se abre à tua frente
foste tu quem escreveu
um poema sobre um montanhista
que se perdeu as coisas despontam
até na incerteza e na espera
e na febre e no mais estéril dos tempos
até a erva que o gelo agora fere
com a sua aparência de lânguida lâmina
que um pouco de vento poderia desfazer
como se fossem frágeis cristais
pó como os corpos
o teu perfil, a atenção que olha adiante
e se precipita ansiosa sobre o tempo
até aqui na espera de quase nada, antónia
o teu olhar que cresce e o mundo
que recrudesce à nossa volta
Tatiana Faia
Oxford, 22 de Novembro de 2018
Mais três poemas em Ruido manifesto
Blog Enfermaria 6: "Um quarto em atenas, poética do acontecer (recensão)", de Vítor Gonçalves
Tatiana Faia (aeuropafaceaeuropa)
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025
Armindo Mendes de Carvalho - Os /As
Os / As
Os dos bilhetes postais
os dos cartões de visita
dos anúncios nos jornais
os das palavras cruzadas
dos retratos pornográficos
do amor em dias certos
do amor em certos dias
os que nos contam a fita
os que só falam dos filhos
e lá vem o retratinho
os que são muito machistas
as do furor uterino
os caçadores de autógrafos
os que sabem sempre a última
os dos parabéns por tudo
dos sentimentos por nada
os que mandam boas-festas
os que estão sempre doentes
os que eles é que sabem
os que não sabem pevide
os que se riem por tudo
os que não riem de nada
os da lágrima na esquina
os que falam no cinema
os que ressonam no dito
os que são sempre os melhores
os nem homens nem mulheres
os que só têm memória
os que perderam a mesma
os da última anedota
os que impingem a receita
e os que fazem dieta
os que nos mandam missivas
e escrevem em grande estilo
os que só falam de si
os que só falam dos outros
os mais isto e mais aquilo
Armindo Mendes de Carvalho
Poemas de ponta e mola (1975)
(Lido no blogue Poesia dos Dias Úteis)
A Página da Educação - “Mendes de Carvalho - uma poesia crítica e satírica”
(Fotografia de Pedro Neves - Basta! Parte 7, 2 de março de 2007)
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
Maria de Lurdes Hortas - Adaga
ADAGA
Sim
ceifei
e atei em molhos
as horas deste dia.
Minha adaga:
a palavra.
Maria de Lurdes Hortas
Giestas, Pirata, Recife, 1980
(Fotografia de Eduardo Hanazaki - Palavras, Museu da Língua Portuguesa, Estação da Luz, São Paulo, SP, 2008)
segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
David Mourão-Ferreira - Escolha
Entre o vento e a navalha escolho o vento
Entre verde e vermelho aquele azul
que até na morte servirá de espelho
ao vento que por dentro me deslumbra.
Entre vento e cipreste escolho o Sol
Entre as mãos que se dão a que se oculta
Entre o que nunca soube o que já sobra
Entre a relva um milímetro de bruma
David Mourão-Ferreira
segunda-feira, 13 de janeiro de 2025
Cassiano Ricardo - Serenata sintética
SERENATA SINTÉTICA
Rua
torta.
Lua
morta.
Tua
porta.
Cassiano Ricardo
Um dia depois do outro (1947)
Cassiano Ricardo (1894 - 1974) foi um jornalista, poeta e ensaísta brasileiro.
Representante do modernismo de tendências nacionalistas, esteve associado aos grupos Verde-Amarelo e da Anta, foi o fundador do grupo da Bandeira, reação de cunho social-democrata a estes grupos, tendo, sua obra se transformado até o final, evoluindo formalmente de acordo com as novas tendências dos anos de 1950 e tendo participação no movimento da poesia concreta.
(Fotografia de Vanessa Mendes Argenta)
segunda-feira, 6 de janeiro de 2025
José Tolentino Mendonça - Travessia da infância
Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas
lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo
não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias
só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo
mas isso foi depois
muito depois
repito
José Tolentino Mendonça