antonia
caminhamos pelas montanhas
como se se pudesse regressar do abismo
tu à frente, eu atrás
tu com uma corda às costas
calças curtas, uma camisola de malha
às vezes perdes-te à minha frente no trilho
pelo nevoeiro, o azul
da tua camisola confunde-se
com o cinzento da montanha
e eu chamo o teu nome
um som em perfeita queda
como a água ou a noite descendo
aguçada sobre os penhascos
de repente sei que não é este já
o tempo das revelações
as esquinas que virei em trastevere
tu pensas que é pouco o que resta
e talvez não baste e isto é a sério
eu penso se o pouco que resta
justifica paciência para tanto dano
estas são as pequenas perguntas
e as perguntas certas
os teus lábios fecham-se numa linha
isto é verdade o teu sorriso
vai ficar comigo muito depois
de termos batido a altitude
e regressado aos vales lá em baixo
e voltarmos a ser quem temos sido
mas são perfeitos os círculos que os pássaros
desenham acima dos ciprestes
cujas copas se cobrem agora de neve
e o cheiro do ar e o tilintar do teu cantil
gelado pela neve no bolso da tua mochila
não é bem isto a nossa pequenez
afundando-se na paisagem
os momentos de silêncio mudo
os momentos em que o silêncio
te esgotou e te fez falar demasiado alto
e nunca tão alto que chegasse para conversar
há entre nós duas
o mundo secreto de todos cadernos
e também este verso que agora é teu
gastei muitas folhas e muita tinta
e nenhum espaço que me cabe me conforta
queria ter vivido sem causar dano, antónia
mas até o amor, a alegria, a caneta esquecida num copo
e o papel de parede e a tua tosse enquanto
acendes mais um cigarro e estendes os braços
para abraçar o ar até a memória
do corpo despido e quente
e quieto entre os lençóis
tudo isso abre as suas feridas
pede as suas cicatrizes
um tempo que ultrapasse o tempo
medindo-o com a sua ternura
e com tudo o que se perde
com tudo o que vai e vem e não nos pode gelar
o corpo os dedos movendo-se lentamente
traçando o nome da minha cidade nas tuas costas
até a mais fechada das estações
se abre à tua frente
foste tu quem escreveu
um poema sobre um montanhista
que se perdeu as coisas despontam
até na incerteza e na espera
e na febre e no mais estéril dos tempos
até a erva que o gelo agora fere
com a sua aparência de lânguida lâmina
que um pouco de vento poderia desfazer
como se fossem frágeis cristais
pó como os corpos
o teu perfil, a atenção que olha adiante
e se precipita ansiosa sobre o tempo
até aqui na espera de quase nada, antónia
o teu olhar que cresce e o mundo
que recrudesce à nossa volta
Tatiana Faia
Oxford, 22 de Novembro de 2018
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