Um dia na cidade do Porto presenciei uma cena entre um homem e uma mulher que nunca mais pude esquecer. O cenário onde isto se passou é dos mais pitorescos que os meus olhos viram: a Ribeira, ou a Ribeira Velha, creio eu que lhe chamam. É um cais sobre o Douro, perto da ponte de D. Luís. Todo o aspecto em redor é pesado e amontoado, conforme o carácter da cidade. Desde aquele cais a cidade sobe sempre em todas as direcções até à Torre dos Clérigos. Na outra margem a ascensão iguala-se à de cá, de modo que o rio parece ter metido pelo mais alto de um monte que ficou dividido. Tudo isto faz com que o cais nos dê a estúpida impressão de estar enterrado. Lembro-me de umas interessantíssimas casas cujos alicerces se adivinham por causa da solidez com que as suas fachadas intimam os nossos olhos. Julgo serem vermelhas, ou foi a impressão violenta da cor que me deixaram. Do que bem me lembro é dos arcos em vez de portas e de umas janelas que pareciam desviadas dos seus respectivos lugares. Os arcos abriam umas lojas não sei de quê, pois fixei apenas os seus fundos negros, os mais negros e os mais fundos que tenho conhecido.
Pondo por cima disto tudo uma camada de antiguidade cor de ardósia e de ferrugem, de nevoeiro fabril e de salitre, a descrição deve ficar aproximada, descontando, é claro, o autor e a circunstância de ter gozado esta vista apenas uma vez.
No cais as pessoas são bem as das respectivas casas. A aglomeração de gente é como a do casario. Um mercado justifica aquela frequência. Além disto, a carga e a descarga das fragatas ocupa uma quantidade imensa de mulheres e de homens, mas sobretudo mulheres. É uma raça diferente da do mercado. Poucas vezes me foi dado compreender melhor o que significam aquelas: ganhar o pão de cada dia, do que ao ver essas mulheres que iam e vinham sobre duas grossas e compridas pranchas de madeira lançadas desde a borda da fragata até ao cais, numa distância parecida com uns dez metros. O equilíbrio dessas mulheres não tinha uma hesitação à altura de três homens da água, e em menos de três palmos de largura durante os dez metros. Acrescente-se a isto que levavam à cabeça as canastras, umas vezes vazias e outras vezes cheias até acima, em pirâmide, conforme iam ou vinham da fragata. Daquela vez não me lembro do que descarregavam; apetecia-me que fossem laranjas, mas não insisto com a memória; tenho, contudo, ainda na mente a maneira rápida como davam conta daquele serviço, conservando sempre um tempo ginástico, e não digo militar, porque além dos gestos sóbrios e simplificados, corrigidos para o próprio trabalho repetido em que andavam, havia também uma beleza de linhas e de formas à qual não era estranha a sua natureza feminina. O gesto de abaixarem-se para acertar a cabeça ao meio da canastra carregada, a marcha sobre a prancha com o peso todo à cabeça, o modo de despejar a canastra inclinando o corpo de lado pela cintura eram exactos e cheios de graça. As alcochetanas que descarregam das fragatas o carvão inglês nos cais de Lisboa por este mesmo processo não podem infelizmente ser-lhes comparadas. Se não lhes falta a graça, a sua graça é outra, mas não dispõem das ossaturas opulentas das mulheres do Norte e muito menos daquela dignidade externa, a qual me surpreendeu em mulheres de pé descalço. Eram umas dezenas de mulheres todas semelhantes. Por contraste com a sua actividade havia no cais uns homens sentados e outros deitados ao sol em sacas de sarapilheira cheias de mercadoria. Para um destes homens aquelas dezenas de mulheres não eram todas a mesma; esperava sempre que essa passasse mais perto donde ele estava para lhe dizer o que tinha a dizer-lhe. A rapariga não fazia caso e seguia como as outras. Era um dito qualquer e talvez sempre o mesmo de todas as vezes que acontecia chegar a altura de ela passar por onde ele estava. Centenas de vezes e não falhou uma! Mas de uma vez a rapariga vinha a meio da prancha com a canastra carregadinha, e ele começou logo como de costume a gracejar com ela; sem ninguém esperar, ali mesmo de cima da prancha, parou de repente, despejou a canastra no rio, apontou o braço livre em direcção ao tal homem e com o sangue todo nas faces disse-lhe esta única palavra:
— Desgraçador!
Nunca mais esquece esta palavra.
José de Almada Negreiros
Nome de Guerra [1938], edição de Fernando Cabral Martins, Luis Manuel Gaspar, Mariana Pinto Dos Santos e Sara Afonso Ferreira, 4.ª ed., revista pelo original de Almada entretanto localizado, Lisboa, Assírio & Alvim, 2016
(Lido em Aureas Tenebrae, de Luis Manuel Gaspar)
(Fotografia de Eduardo Vales - Postigo do Carvão, Ribeira, Porto, 2020)