segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

O ruço (António Lobo Antunes)




O RUÇO

A saudade é, para mim, um sentimento estranho.
Sempre ouvi dizer que diminui com o tempo, que nos vamos habituando, que nos vamos esquecendo mas, no meu caso, aumenta, surge quando menos espero, instala-se ao meu lado, dói. É estranha a dor da saudade porque, para mim, é física. Sinto-a na cabeça, nos músculos, no corpo todo. Por exemplo saudades da tia Madalena a chamar-me
- Filho
da tia Bia a chamar-me
- Antoninho Cravo Roxo
da Gija enquanto me coçava as costas à noite, antes de deitar-me
- menino, menino
e eu tão pequeno quando a saudade dela chega e, quando os seus dedos me tocam, tão contente. Saudades da casa grande de Benfica, saudades do lago. Até saudades do Marciano a regar os canteiros. Saudades dos rebanhos a passarem à tarde num tinir de badalos. Saudades da chuva de abril, tão leve. Saudades do avô, de casaco de linho branco, a sorrir. Não consigo lembrar-me da voz dele, por mais que tente não consigo lembrar-me da voz dele, lembro-me que dizia
- O meu morgado, o meu morgado
porque o Brasil continuava nele. Isto em Belém do Pará, lá em cima. Porque não voltámos nunca, porque ficámos aqui? Saudades de canções
Mamãe
diz ao Papai
que eu quero ir para a guerra
do Paraguai
Não vás meu filho
que podes morrer
tão pequenino
que irá acontecer?
de poemas que escandalizavam a minha avó
Um brasileiro mui rico
querendo espantar o mundo
mandou fazer um penico
com uma paisagem no fundo.
Diz-lhe um amigo que louco
para que queres isso tu?
É para alegrar um pouco
o triste olho do cu.
E a minha avó a abanar a cabeça, consternada.
A minha bisavó que não conheci, morreu nova, chamavase Leopoldina como tantas raparigas da sua geração: era o nome da Imperatriz. O meu pai tinha em cima de uma mesa a fotografia dela. A avó Leopoldina
(saudades)
e o bisavô João, de cabelos brancos e corrente de relógio no colete. Saudades dos doces do Brasil da minha tia avó Isabel, cocada, rebuçados de ovos e o tempo, nessa época, compridíssimo. Tia Biluca, tia Mimi, tia Marocas, avó Chuta, senhoras de peitos imensos, com buço. O trisavó Bruno Álvares Lobo cuja família saiu de Portugal para a Holanda e da Holanda para o Brasil, séculos antes, por serem judeus. Isto explicou-me, no dia da entrega do Prémio Jerusalém, em Israel, um velhote especialista em genealogia, que estivera nos campos de concentração nazis e se foi informar da história da família. A minha pequena costela judia era um orgulho para ele. O meu avô, aliás
(tantas saudades de si, avô)
possuía uma cara chapada de judeu, igualzinha à da sua mãe, que morreu de pneumonia. Lembro-me do meu pai, muitas vezes
- Vou morrer de pneumonia como a minha avó
e assim foi. Tio Joaquim, médico, que vinha às vezes de barco e falava com sotaque carioca, carregado de doces e de livros, magro, ao contrário do meu avô que pesava mais de cem quilos. Mostrava-me o anel ao lado da aliança
- É o anel do morgado, é para ti
e a minha avó entregou-mo no dia em que ele morreu.
Essa vinha de alemães: tantos sangues no meu. Cartas em alemão do tio Rudolf mandadas aos pais da Guerra da Crimeia. Herdei isso tudo, cartas, documentos, papelada vária, fotografias de sujeitos de bigodes loiros e olhos azuis. Quando estive num hospital em Londres o director para mim
- Você não parece português mas também não parece inglês
e logo a seguir, com uma expressão zangada
- Parece um alemão
numa espécie de ódio que me confundiu. Na escola os meus colegas chamavam-me Ruço. Há séculos que não me chamam Ruço. Saudades disso, também. Não só os colegas, pessoas crescidas que não conhecia
- Sacana do miúdo é ruço
e não pareciam especialmente alegres por isso. Esta crónica é escrita por um ruço. Os ruços e os ruivos, a quem chamavam Estás A Arder, eram olhados com uma curiosidade desgostosa. Até disso sinto saudades, olha, que me observem com uma curiosidade desgostosa.
- São manhosos, os russos
dizia-me o senhor da carvoaria
- São manhosos
se calhar com medo que eu lhe pinasse uns briquetes, embora o meu pai fosse doutor.
- Não é verdade que o teu pai é doutor ó ruço?
e uma olhadela curiosa, entre a desconfiança e o respeito.
Quando fui treinar para o Futebol Benfica um dos rapazes anunciou ao grupo
- O pai do ruço é doutor
e levei menos encostos por isso. O treinador, da idade do meu pai, que jogara contra ele
- O pai do ruço foi aos campeonatos da Europa e tudo porque o pai do ruço fez parte do Time Maravilha,
no Benfica, e lá estava ele, com os colegas, numa parede, emoldurados. Isto já no Benfica, que era outra loiça.
O meu pai todo penteadinho, com a águia na camisola.
Havia uma caixa de lata cheia de medalhas, que os meus irmãos e eu às vezes púnhamos ao peito. Medalhas de campeão nacional e tudo. Às vezes ia jantar com os antigos colegas e davam imensas palmadas uns aos outros.
Os colegas também me chamavam ruço. Depois, com o tempo, o ruço desapareceu. Continua apenas, meio apagado, no meu rol de saudades.


António Lobo Antunes

(Revista Visão, 21-12-2016)