PECADOS DA LUSOFONIA
Conta a minha mãe que em pequena aprendi quimbundo em vez de português. Conta ainda a minha mãe que eu não só falava quimbundo como gostava de comer funje e de dançar com as lavadeiras dos vizinhos. Os meus pais nada sabiam de quimbundo portanto não sei até que ponto eu me expressei em quimbundo, possivelmente repeti algumas palavras que ouvi aos filhos das lavadeiras com quem brincava e pouco mais. Lembro-me no entanto de me aperceber mais tarde de que havia um conflito entre a nossa língua e as línguas deles.
As línguas deles nunca eram usadas oficialmente. Nas escolas, nos hospitais ou nas repartições públicas só se falava português e a maioria dos colonos ridicularizava os negros por não serem capazes de pronunciar algumas palavras portuguesas e por não usarem devidamente as regras gramaticais. Para a maioria dos colonos essa incapacidade era sinónimo de pouca capacidade intelectual e prova irrefutável de que eles não saberiam governar-se sozinhos. Chamavam por isso matumbos aos negros. Os brancos usavam muitas vezes palavras da língua deles para os insultarem. O uso da língua deles limitava-se praticamente a isso. Porque só o que é familiar pode ferir profundamente mais.
O facto de a maioria dos brancos não saber das línguas deles mais do que meia dúzia de insultos não era visto como sinal de pouca capacidade intelectual, era apenas sinal de que a língua deles não tinha interesse e ainda que os brancos desconfiassem que eles conspiravam na língua deles nem assim perdiam tempo com isso. Os negros e as línguas deles não eram uma ameaça perante o poder que os brancos e, consequentemente a língua dos brancos, tinham.
Segundo a wikipédia, a Lusofonia é o conjunto de algumas identidades culturais existentes em países, regiões, estados ou cidades falantes da língua portuguesa, como Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste, Goa, Damão e Diu, e também por diversas pessoas e comunidades em todo o mundo. Alguns teóricos que a estudam advogam que temos de entender a lusofonia no presente, isto é, sem o peso dos factos históricos que lhe deram origem.
Creio não ser possível pensar na lusofonia sem ter em conta os cinco séculos de Império e Portugal como colonizador. A lusofonia é fruto do Império. Desfizemo-nos do Império como se fosse uma camisa velha, no dizer do Professor Eduardo Lourenço. Penso que o mais correcto será dizer que quisemos desfazer-nos do Império como se fosse uma camisa velha mas que nunca o conseguiremos fazer porque o Império nos moldou enquanto povo, no passado, tal como a falta dele nos vai moldando o presente. Talvez por isso seja difícil fazerem-se ouvir vozes lúcidas sobre o Império. Renegamo-lo ou exaltamo-lo consoante as nossas perspectivas de vida e credo político, mas raramente conseguimos abordar com profundidade o que foi efectivamente o Império e o que dele restou.
Dizia que cresci testemunhando que uma língua pode ser uma arma muito poderosa e verifiquei que a língua dos mais fortes ganha. Por ser uma criança, não me pude aperceber de que a língua portuguesa em Luanda expressava o domínio de uns e a submissão de outros, e quando muitos anos mais tarde comecei a pensar no que tinha testemunhado era já ponto assente que o Império Português nunca deveria ter existido e que uma das grandes conquistas da Revolução de Abril tinha sido acabar com esse crime da Pátria.
Poucas vezes terei ouvido que a marca mais visível, ou melhor, mais audível desse crime é exactamente a língua. A língua portuguesa é a marca mais permanente da colonização que Portugal empreendeu. Aquando da descolonização, para os novos estados independentes era demasiado tarde ou demasiado cedo para escolherem outra língua que não o português como sua língua oficial. Lembro-me de algumas canções que os negros cantavam e que tinham palavras portuguesas pelo meio. Um dia perguntei a razão e explicaram-me que não havia uma palavra em quimbundo para o que queriam dizer. Uma dessas palavras era «identidade». Outra dessas palavras era «documento».
Dulce Maria Cardoso
Texto escrito pela escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso, que foi uma das convidadas dos Encontros da Lusofonia, na Fundação Calouste Gulbenkian no ano passado, em Paris. Este é o texto que ela leu nesses Encontros.
(Fonte: Público, 21-10-2015)
Conta a minha mãe que em pequena aprendi quimbundo em vez de português. Conta ainda a minha mãe que eu não só falava quimbundo como gostava de comer funje e de dançar com as lavadeiras dos vizinhos. Os meus pais nada sabiam de quimbundo portanto não sei até que ponto eu me expressei em quimbundo, possivelmente repeti algumas palavras que ouvi aos filhos das lavadeiras com quem brincava e pouco mais. Lembro-me no entanto de me aperceber mais tarde de que havia um conflito entre a nossa língua e as línguas deles.
As línguas deles nunca eram usadas oficialmente. Nas escolas, nos hospitais ou nas repartições públicas só se falava português e a maioria dos colonos ridicularizava os negros por não serem capazes de pronunciar algumas palavras portuguesas e por não usarem devidamente as regras gramaticais. Para a maioria dos colonos essa incapacidade era sinónimo de pouca capacidade intelectual e prova irrefutável de que eles não saberiam governar-se sozinhos. Chamavam por isso matumbos aos negros. Os brancos usavam muitas vezes palavras da língua deles para os insultarem. O uso da língua deles limitava-se praticamente a isso. Porque só o que é familiar pode ferir profundamente mais.
O facto de a maioria dos brancos não saber das línguas deles mais do que meia dúzia de insultos não era visto como sinal de pouca capacidade intelectual, era apenas sinal de que a língua deles não tinha interesse e ainda que os brancos desconfiassem que eles conspiravam na língua deles nem assim perdiam tempo com isso. Os negros e as línguas deles não eram uma ameaça perante o poder que os brancos e, consequentemente a língua dos brancos, tinham.
Segundo a wikipédia, a Lusofonia é o conjunto de algumas identidades culturais existentes em países, regiões, estados ou cidades falantes da língua portuguesa, como Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste, Goa, Damão e Diu, e também por diversas pessoas e comunidades em todo o mundo. Alguns teóricos que a estudam advogam que temos de entender a lusofonia no presente, isto é, sem o peso dos factos históricos que lhe deram origem.
Creio não ser possível pensar na lusofonia sem ter em conta os cinco séculos de Império e Portugal como colonizador. A lusofonia é fruto do Império. Desfizemo-nos do Império como se fosse uma camisa velha, no dizer do Professor Eduardo Lourenço. Penso que o mais correcto será dizer que quisemos desfazer-nos do Império como se fosse uma camisa velha mas que nunca o conseguiremos fazer porque o Império nos moldou enquanto povo, no passado, tal como a falta dele nos vai moldando o presente. Talvez por isso seja difícil fazerem-se ouvir vozes lúcidas sobre o Império. Renegamo-lo ou exaltamo-lo consoante as nossas perspectivas de vida e credo político, mas raramente conseguimos abordar com profundidade o que foi efectivamente o Império e o que dele restou.
Dizia que cresci testemunhando que uma língua pode ser uma arma muito poderosa e verifiquei que a língua dos mais fortes ganha. Por ser uma criança, não me pude aperceber de que a língua portuguesa em Luanda expressava o domínio de uns e a submissão de outros, e quando muitos anos mais tarde comecei a pensar no que tinha testemunhado era já ponto assente que o Império Português nunca deveria ter existido e que uma das grandes conquistas da Revolução de Abril tinha sido acabar com esse crime da Pátria.
Poucas vezes terei ouvido que a marca mais visível, ou melhor, mais audível desse crime é exactamente a língua. A língua portuguesa é a marca mais permanente da colonização que Portugal empreendeu. Aquando da descolonização, para os novos estados independentes era demasiado tarde ou demasiado cedo para escolherem outra língua que não o português como sua língua oficial. Lembro-me de algumas canções que os negros cantavam e que tinham palavras portuguesas pelo meio. Um dia perguntei a razão e explicaram-me que não havia uma palavra em quimbundo para o que queriam dizer. Uma dessas palavras era «identidade». Outra dessas palavras era «documento».
Dulce Maria Cardoso
Texto escrito pela escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso, que foi uma das convidadas dos Encontros da Lusofonia, na Fundação Calouste Gulbenkian no ano passado, em Paris. Este é o texto que ela leu nesses Encontros.
(Fonte: Público, 21-10-2015)