sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O humor é uma arte (Luís Valente Rosa)



O humor é uma arte

Vi no outro dia, na televisão, uma reportagem sobre o humor, que incluía um conjunto de entrevistas a alguns grandes humoristas cá do burgo. E fiquei com esta dúvida: será que existem regras estruturantes que podem definir o conceito de humor e identificar o grande humor?

Penso que o primeiro contacto que tive com o verdadeiro humor, neste caso britânico, foi quando vi a Mary Poppins. Retive sobretudo um curto diálogo do filme em que o limpa-chaminés diz: "conheci um homem, com uma perna de pau, de nome Smith." Pergunta o miúdo: "como se chamava a outra perna?"

O meu segundo contacto relevante com o grande humor aconteceu com os Monty Python. Deles, vou aqui apenas recordar uma cena: no início do filme sobre o "Graal", vêem-se cavaleiros ao longe na névoa e ouve-se o galope dos cavalos; assim que se aproximam, percebemos que vinham sem cavalos, a saltitar imitando o movimento sobre a sela e a bater com duas metades de coco nas mãos para imitar as patadas inexistentes.

O terceiro contacto que é imperioso referir dá-se com o Herman, o rosto do humor mais genial que Portugal alguma vez conheceu. É impossível recordar todos os grandes momentos de diversão que lhe devo, mas realço - nem sei bem porquê - um número em que fazia de cirurgião maluco, a tirar órgãos da barriga do doente e a atirá-los ao ar (aos quais chamava "excrecências lapidoláticas), enquanto cantava uma canção totalmente disparatada em espanhol: "hoje voy a passar por el camino berde".

Pergunto: que há de comum nestes três grandes exemplos (mesmo que a memória me atraiçoe um pouco)? Qual é, para mim, a lógica interna que estrutura estes momentos de génio e que pode explicar a essência do grande humor?

Depois de alguma reflexão, cheguei a uma conclusão surpreendente: o que caracteriza o supremo do humor é o mesmo que caracteriza o supremo da arte.

Em primeiro lugar, o desenraizamento que nos projecta na irrealidade. Por outras palavras, a recusa de uma qualquer concretização. Como se de uma ficção se tratasse. Tem, por isso, uma dimensão abstracta, não redutível a um indivíduo, a uma situação, a um tempo ou a um espaço específicos. Como a grande arte, o grande humor deve ser universal e intemporal.

Em segundo lugar, também nos projecta, como a arte, num "mundo outro", não compreensível através das regras do nosso mundo vivencial. Muitas vezes, dizemos que se trata de uma ficção "maluca" - o "maluco" é, por excelência, aquele que não vive em função das regras adoptadas pelos outros. É daqui que sai, na minha opinião, a ideia do absurdo, do "nonsense", característica fundamental do grande humor (mesmo não britânico).

Para dar um exemplo, é por fugir a estas regras, e contrariar estas duas características fundamentais, que o humor que se faz em relação a uma pessoa em concreto (como acontece na piada política) não tem normalmente graça nenhuma.

O que provoca o riso profundo é, então, o contraste dilacerante entre o nosso pequeno e comprimido mundo real e a sua transfiguração num outro mundo, paralelo e semelhante, mas que nos surge estranho, por via de uma desmesura de irrealidade e de liberdade nas regras de funcionamento. Tal como se existisse uma possibilidade de vida alternativa numa outra dimensão totalmente livre, apenas limitada pela nossa imaginação.

Termino lamentando o facto de o humor não aparecer na lista das artes. Começaram por ser 6, depois veio o cinema - que tantas vezes não é uma arte mas um "voyeurismo" de vidas alheias que contraria as duas regras atrás enunciadas - e hoje já existe referência em relação a 11 ou 12 artes. Até a culinária já aparece mencionada. É altamente injusto. Não quero terminar mesmo sem fazer uma referência ao Ricardo Araújo Pereira e, como exemplo, ao enorme humor desse seu "a minha vida dava um filme indiano".

Luís Valente Rosa

Após 20 anos de ensino universitário, especializado em Metodologia para as Ciências Sociais e Estatística, e 20 anos de estudos de mercado, sondagens e previsões eleitorais, dedica-se hoje à escrita e ao projecto Social Data Lab, laboratório de investigação social.


Publicado na revista Visão (31.08.2015)