segunda-feira, 12 de maio de 2014

A lição do aprendiz (Mia Couto)


Fotografia de José Carlos Costa


A LIÇÃO DO APRENDIZ

Apresentou-se com uma carta na mão. O barbeiro Lázaro interrompeu a tesouração e foi à porta. O miúdo estendeu a carta, com a mão esquerda segurando respeitos no braço direito. Era uma missiva triste, com notícias escuras dos lados da guerra. O rapaz que ali se apresentava ficara sem ninguém, a família dele era só pena dos outros.
O barbeiro fingiu demorar-se na leitura. Tinha receio de enfrentar aqueles olhos orfãos, parentes da morte.
- Quem escreveu este bilhete foi meu primo Ezequiel?
O miúdo acenou com a cabeça, dispensando a voz.
- E queres trabalhar aqui comigo, aprender o serviço de barbeiro?
Agora foram os ombros que responderam um encolhimento.
- Como te chamas?
Chamava-se Antoninho. O barbeiro aprontou-lhe na condição. Pequena mas constante. Antoninho trabalharia ali mesmo, ajudante. Dormiria na própria barbearia. Chegada a hora de fechar, retiravam-se as almofadas da cadeira e estendiam-se no chão. Ele deitava naquele sossego frio, até dava jeito para espantar a ladroeira.
O menino foi ficando, vassourando os intervalos da clientela, lustrando o espelho, sacudindo os panos. Nunca de sua língua se confeccionava palavra. Lázaro empurrava-lhe para a vontade, com ordem amiga:
- Está atentinho, veja como eu faço. Um dia desses vais poder cortar o cabelo, tu também.
Mas o miúdo parecia sempre longe, dissidente da infância, olhos exilados na rua por onde a vida se derramava quente e luminosa. Fazia ate medo contemplar aqueles olhos cheios dele. Toda a alma daquele pequeno corpo estava ali naqueles dois luzeiros, pareciam feitos de água incendiada. Antoninho amealhava silêncios, sem que ninguém suspeitasse que sonho brincava dentro dele.
Uma manhã, mais cedo que a hora habituada, Lázaro surpreendeu o miúdo deitado por baixo da cadeira, de alicate na mão. - Que estas a fazer?
O moço gaguejou: a razão por que alicateava era a cadeira que estava a soltar-se dos parafusos. Um dia desses, o cliente se descompunha, placando contra a vontade. Assim se explicou Antoninho, com a vergonha adoçando-lhe as maneiras da voz. Lázaro espreitou a obra, abanou a cadeira. A dita estava agora bem fixa. O raio do miúdo até que teve boa iniciativa. Dali em diante, sucederam-se as surpresas mecânicas. As dobradiças da porta foram reparadas, as tesouras afinadas. Antoninho revelava seus dotes de consertador.
- Você bem podia consertar este espelho, adaptar posição dele. Os clientes têm de esticar os pescoços para se verem.
Mas o suporte do espelho era obra demasiada, pedia habilitações superiores. Antoninho pediu tempo para se instruir dos serviços requeridos. Só um tempo que os dias estão cheios de semanas inúteis.
O tio começou a nutrir admiração pelo rapaz. Uma ideia lhe nasceu: o sobrinho merecia um futuro, quem sabe ele não dava um mecânico de primeira. Falou com o Manjate, proprietário da oficina lá do bairro.
Ficou assente. Depois de despegar da barbearia, Antoninho passou a frequentar a oficina, apreciar técnicas e segredos da mecânica. O jovem tinha olhos aprendizes, reparando em tudo com grande velocidade. Cedo se acostumou às intimidades dos motores, cirurgião dos ferros.
O barbeiro começou a pensar ainda mais alto. A barbearia, com essa coisa da Sida, estava adoecida, aflita de clientes. Talvez nem fosse má ideia aproveitar as tendências do miúdo e abrir ele próprio um negócio de oficina. Uma manhã, a loja repleta, Lázaro anunciou bem alto o seu plano. Na cadeira, Serafindo Matine, estudante de economia, esticou bem seu português:
- É um projecto de pequena dimensão, mas se tiver financiamento garantido, meios técnicos, viabilizados, então a reprodução do capital investido...
Levantando a mão, o barbeiro interrompeu os ditos. Nem ele suspeitava que sua simples ideia merecesse tamanha palavreação. E enquanto o futuro economista prosseguia xiricando sabedoria, Lázaro chamou o miúdo e lançou-lhe a proposta. Seriam sócios, o dinheiro seria por conta dele, mas as receitas não demorariam. E encheu a língua de promessas. Então?
- Não quero sociedade, tio
- Não queres?
- É que eu vou voltar na minha terra.
Lázaro estranhou. Mas então ele não via que aqui é que se ganham os tacos, enquanto lá, com essa porcaria dos bandidos, ninguém pára descansado? Mas o miúdo insistia:
- Já decidi, vou voltar. Lá sou muito precisado. Há tanta coisa que é preciso reparar lá, você nem imagina, tio.
No dia seguinte, o miúdo se abraçou à viagem, com um saco cheio de ferramentas compradas de sua economia. O barbeiro deu conta da sua ausência e foi logo à caixa ver se desaparecera dinheiro. A caixa estava intacta, virgem de maldades. Então o barbeiro reparou que um novo suporte, de haste flexível, sustentava o espelho. Sentou-se na cadeira e, horas perdidas, ficou remirando seu rosto, agora mais antigo, mais longínquo, como se houvesse na ausência do sobrinho uma lição que ele lentamente decifrasse.

Mia Couto


(Conto completo, do seu livro Cronicando)