segunda-feira, 5 de março de 2012

O homem que anotava a cor dos cabelos (hmbf)

Fotografia de Lina Cepero


O HOMEM QUE ANOTAVA A COR DOS CABELOS

O que te falta para seres feliz? – perguntou a si próprio o homem que anotava a cor dos cabelos das pessoas com quem se cruzava. Tinha mulher e filhos, viviam numa casa modesta rodeados de monotonia, com o pó das estantes domesticado e uma ausência de paixão que salva os corpos do fracasso. Que mais poderia desejar? No entanto, sentia-se só, talvez por ninguém à sua volta querer saber da sua solidão, por toda a gente olhá-lo como se fosse normal, natural, passar o tempo todo a anotar a cor dos cabelos das pessoas. Não conseguia dialogar porque sentia não haver quem quer que fosse à altura do seu desespero, preferia sentar-se na varanda, como quem caça lufadas de ar fresco, a anotar a cor dos cabelos das pessoas. Um dia disse: vou-me embora. E toda a gente chorou, acorrentaram-no antes que ele pudesse dar o primeiro passo na direcção do voo, armadilharam-lhe as asas com o desprendimento dos criminosos que cometem crimes sem consciência de que estão a cometê-los. Ou então disfarçavam a tortura, fingindo nada perceberem, nada notarem, nada sentirem de anormal no homem que passava a vida a anotar a cor dos cabelos das pessoas com quem se cruzava. Não havia paixão naquele homem, apenas desistência. Há muito deixara de sentir o coração, limitava-se a respirar, mal, e a coçar a cabeça sempre que lhe faziam perguntas sobre o estado do tempo. Não se recordava da última vez que dissera quero ou amo-te ou faço, apenas de ter apanhado, em tempos, boleia para o destino e de ter falhado por escassos segundos o encontro que lhe mudaria a vida. Há na existência de um homem circunstâncias que tudo determinam, inclusive o tom da voz em silêncio, a degeneração da coluna numa curva abismal, o suor nas palmas das mãos sempre que se aproximam dois corpos. Talvez fosse uma vítima do amor que os outros lhe dedicavam, embora não conseguisse sentir esse amor senão como uma barreira, uma espécie de muro que o separava de si próprio e da afirmação da sua personalidade. Porque para o homem que passava a vida a anotar a cor dos cabelos das pessoas com quem se cruzava o amor era um acto falhado, a esperança era uma ilusão e o tempo era um mal ao qual todos estamos sujeitos. Então perguntava-se: O que te falta para seres feliz? Não conseguia pensar em si na primeira pessoa, por isso questionava-se como se estivesse a falar com terceiros. Falta-me não ter consciência do tempo. – pensou. Porque cada segundo perdido a fazer o que não quero e a agir contra a minha vontade é, sem dúvida, uma vida inteira desperdiçada. Circunstâncias há que tudo determinam, o homem que passava a vida a anotar a cor dos cabelos das pessoas sabia que nada podia contra as evidências: falhara, era escravo da sua inabilidade para fugir, da sua incapacidade de agir, da sua total inoperância, era escravo de se deixar escravizar. E então sentava-se na varanda a anotar a cor dos cabelos das pessoas que com ele se cruzavam, e imaginava por debaixo dessas cores o tom grisalho da velhice e vingava-se do estado em que se encontrava pensando, de si para si, que vítimas e carrascos acabarão todos por desaparecer. Mas nada disto o confortava, e não podia conformar-se com a possibilidade de vir a desaparecer sem nunca ter sequer aparecido, sem nunca ter podido dizer quero ou amo-te ou faço sem que isso implicasse o fim do mundo com suas imponderáveis consequências (sic).


Lido no blogue antologia do esquecimento - hmbf