segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O velho Malaquias morreu (Germano Almeida)



O VELHO MALAQUIAS MORREU

O velho Malaquias foi-se a enterrar. Como ele próprio tinha determinado, morreu aos 95 anos, de velhice e simples cansaço da vida. Não de doença, pois que doença é coisa inventada pela loucura dos homens, afirmava, não existe na natureza.

Ironicamente, o velho Malaquias ganhava a vida como uma espécie de enfermeiro prático. Aliás, intitulava-se a si próprio "enfermeiro provisionário" e durante largos anos desempenhou essa função numa pequena dependência da sua casa onde tratava a gente pobre da ilha a preços de ocasião.

Ele era muito apreciado, quer como pessoa, quer como profissional, porque, além de nada careiro, possuía uma imensa consciência de missão, que colocava aberta e lealmente ao serviço de todos os seus pacientes. É facto que a doença não existe, proclamava, mas, se alguém entra no meu consultório pretendendo-se doente, certamente que não o vou abandonar na sua cisma. Creio que era por isso que ele utilizava muito a técnica dos placebos.

Racionalista cristão convicto e praticante, dizia ter confir­mado que tinha vindo ao mundo como uma reencarnação do grande Hipócrates com o fim de se ocupar da pobreza carenciada e desvalida.

E é verdade que nessa furiosa segurança algumas vezes chegou a exagerar nos desvelos que dedicava aos mais desprotegidos. Por exemplo, regressou certa vez de umas férias em Lisboa munido de um curso intensivo de prótese dentária por correspondência, coisa nova mesmo no estrangeiro quanto mais nas ilhas, explicou ufano. A partir daquela data, já não haveria mais razão para as pessoas não mastigarem bem a sua cachupa ou comerem o seu perentém. Se na sua indiscutível mas limitada bondade Deus tinha provido os humanos com apenas dois tipos de dentes, primeiro para "leites", depois para "carnes", ele, Malaquias, colocando uma técnica de ponta ao serviço dos ilhéus, ia resolver com competência todos os problemas de dentição da idade adulta. E não duas, mas até três ou mais vezes, afinal todas que fossem necessárias, porque de há muito que a ciência tinha ultrapassado com vantagem muitas das inegáveis insuficiências da divindade.

Nesse tempo ainda não se conheciam os nefastos efeitos da gravidez sobre os dentes, de modo que era quase uma raridade encontrar  mãe de filho com todos os dentes de nascença, e de tal forma até poderia ser perfeitamente possível, pelo simples exame de uma boca, determinar o número de filhos de uma mulher. E, de facto, a primeira paciente do sr. Malaquias foi uma senhora de meia idade que, conforme explicou, por cada um dos oito filhos tinha perdido em média quatro dentes.

O senhor Malaquias examinou quase com pena as faces agora encovadas, que nostalgicamente ela dizia terem sido cheiinhas, observou as gengivas já duras como pedra de tanto roer bolachas e foi peremptório: Garanto que ficará como nova!

Laboriosamente concebeu para a senhora uma prótese de primeira. E, para melhor a servir, ofereceu-lhe o bónus suplementar de mais quatro dentes, dois molares em cada um dos lados. Desse modo não só ficará com uma cara mais bolachuda e portanto mais agradável à vista, explicou-lhe prestimoso, como também melhor armada para enfrentar qualquer feijão pedra mais refractário ao pobre lume da nossa lenha.

E de facto dias depois colocava a nova dentição à senhora. Com muita facilidade, aliás, estava tão bem feita que foi chegar e entrar, nenhum ajuste foi necessário fazer. Só que a senhora não conseguia fechar a boca. O sr. Malaquias não entendeu logo a razão. Faça força, insistiu com a senhora, acabará por conseguir, olhe que nem a todos é dado ter 36 dentes. Porém, como a senhora acabasse permanecendo com a boca eternamente semiaberta, ele teve que aceitar a contragosto que há alguns casos particulares em que a natureza prefere dispensar ajudas.

Era. no entanto extremamente meticuloso nos seus serviços. Por exemplo, certa vez precisei de tomar algumas injecções de penicilina e dirigi-me a solicitar-lhe os serviços. Não havia problema, disse, seria uma coisa rápida. E logo me mandou encostar num balcão e descer as calças. E, após breve breve limpeza da zona com um algodão embebido em álcool, espetou a agulha. Porém, quando já ia a acoplar a seringa, lembrou-se: Ó diabo, não tenho cá antistina, disse batendo uma palmada na testa. E explicou-me que era absolutamente fundamental a antistina estar presente, quem poderia afirmar não ser eu alérgico à penicilina? Ora, sendo alérgico, poderia ser fatal, um deus nos acuda. Garanti-lhe que não era de certeza, ainda há poucos dias ... Mas calou-me com um gesto cortante:  Seria. uma grande imprudência, porque pode-se ficar alérgico de um dia para o outro, melhor é prevenir que remediar, vou até à farmácià e volto num instante, disse saindo porta afora.

Fiquei encostado ao balcão e de agulha espetada no rabo por cerca de meia hora, mas ele era um homem ufano da sua consciência profissional quando regressou. Perdemos cinco minutos, afirmou, mas ficamos tranquilos pela vida inteira.

Era assim o velho Malaquias. É certo que há muitos anos que se tinha reformado do seu apostolado, mas mesmo assim sofremos uma baixa considerável.

Germano Almeida

(Público, 4-maio-1997)

Germano Almeida é um escritor cabo-verdiano nascido na ilha da Boa Vista em 1945.