quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O dia cinzento (Mário Dionísio)



Da estação via-se a praia e o mar. A água vinha de longe, muito azul e muito lisa, e aproximava-se, cada vez menos azul e menos lisa, até espadanar em pequenos cachões de espuma que morriam na areia. A praia estava deserta. Uma ou outra pessoa descia os degraus de cimento da esplanada para matar o tempo, dava uns passos na areia, voltava a subir os degraus, sentava-se a uma mesa como toda a gente.

A aprendiza entregara os chapéus o mais depressa possível. Ficara com vinte minutos livres. E com um olho no relógio, o outro na esplanada, gozava aquele espectáculo dos guarda-sóis de tantas cores e das mesinhas brancas cheias de rapazes de pele queimada, raparigas bonitas de cabelos soltos e sem meias, estiraçados, fumando.

Nunca estivera tão perto do mar. Pelo menos desse mar assim azul, dessa língua de areia que só conhecia dos cartazes de turismo, dessas pessoas despreocupadas, saudáveis, felizes, vestindo roupas caras com o à-vontade com que ela usava a bata de trabalho e eram tal qual as pessoas dos filmes que passavam no pequeno cinema do seu bairro. Mas aquilo não era um filme, era verdade. Os cartazes não mentiam. Em Janeiro estava uma temperatura de princípios de Outono. Andava-se em cabelo. As raparigas não usavam meias. Janeiro e podia-se andar como no Verão. Que diferente do seu bairro de Lisboa, das ruas que sempre conhecera, do prédio onde trabalhava em casa da Madame Ivone, dos jardins da cidade! Agradecia a Deus a sua sorte. A Madame escolhera-a para trazer os chapéus àquela freguesa que pagava o bastante para se permitir o luxo de receber as encomendas em casa, a trinta quilómetros de Lisboa. Podia ter escolhido outra. Acaso. Sorte. Primeiro, nem queria crer. Perguntara de olhos espantados: Eu? E a Madame Ivone, sem dar por nada: «Sim, tu, despacha-te.» Dava as suas ordens, explicava: «Tiras um bilhete de terceira só para lá.» E ela só pensava: eu?, é possível que seja eu? «À volta, tiras de segunda, porque o comboio com terceira é muito tarde. Despacha-te. Quero-te cá antes da noite.»

Mário Dionísio 

O dia cinzento (1944)

Poeta, crítico, pintor, romancista, licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, onde viria a desenvolver atividade docente. Mário Dionísio desempenhou um papel importante na teorização do Neorrealismo, movimento literário que, pelas décadas de 40-50, à luz do materialismo histórico, valorizou a dimensão ideológica e social do texto literário, enquanto instrumento de intervenção e de consciencialização. (continua - Infopédia)