sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Manuel António Pina e a poesia

Fotografia de Fred Matos


A poesia é feita e desfeita da volúvel matéria das palavras, dos seus murmúrios, dos seus sentidos, dos seus tantas vezes misteriosos propósitos. E das raízes das palavras no mundo onde desgarradamente se prende a solidão no mundo, do formidável poder das palavras não apenas de nomear mas de fazer o mundo.

(...)

Acho que a minha relação com a poesia (com a arte em geral) não é uma busca de qualquer coisa de novo. É uma busca de qualquer coisa que eu já sabia mas que não sabia que sabia. O poema é essa revelação. Nesse aspecto de revelação também tem alguma coisa de mistério e de sagrado.

Manuel António Pina



A POESIA VAI ACABAR

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: – Que fez algum
poeta por este senhor? – E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
– Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar?



Manuel António Pina foi-se deste mundo a 19 de outubro de 2012.




quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Em louvor de uma infância (Alberto Soares)

Fotografia de André Sousa


Em louvor de uma infância

Hoje, tudo tem embalagens evasivas: em blister, tetrapack e quejandos. Aformoseadas até ao limite do disfarce ou dissimulação, onde os produtos jazem muito pouco substantivos, menos ainda se lhes descobre a filiação ou origem que permita às novas gerações conhecer-lhes a história em toda a sua simplicidade.

Quando criança, eu estava muito pouco acostumado à técnica, mas sabia, por exemplo, o que era um contador de água. E o seu verdete, quando já envelhecido. Desde cedo, sabia mudar fusíveis, ensinado que fora pela minha Mãe. Conhecia a cor do chumbo e do mercúrio. E os dejectos das cabras vicinais, como também os figos equestres que, por vezes, sinalizavam os animais de passagem pelos caminhos de terra batida, poeirentos. Sabia de como os ninhos eram feitos e conseguia facilmente distinguir um ovo de pata de outro, de galinha. Pasmava da galinha choca - ainda não havia os aviários -, na obscuridade da loja, sobre o enorme cesto vindimeiro, protegendo os pintaínhos recém-nascidos. Surpreendia-me com a agilidade das sardaniscas, fugindo por entre as pedras, nas manhãs de Sol. Tudo isto, apesar de viver numa cidade, embora de província, onde ainda não havia embalagens.


Alberto Soares no blogue Arpose  (20-10-2015)



segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Os Amigos Nunca São para as Ocasiões (Miguel Esteves Cardoso)

Fotografia de César


OS AMIGOS NUNCA SÃO PARA AS OCASIÕES 

Os amigos nunca são para as ocasiões. São para sempre. A ideia utilitária da amizade, como entreajuda, pronto-socorro mútuo, troca de favores, depósito de confiança, sociedade de desabafos, mete nojo. A amizade é puro prazer. Não se pode contaminar com favores e ajudas, leia-se dívidas. Pede-se, dá-se, recebe-se, esquece-se e não se fala mais nisso.

A decadência da amizade entre nós deve-se à instrumentalização que tem vindo a sofrer. Transformou-se numa espécie de maçonaria, uma central de cunhas, palavrinhas, cumplicidades e compadrios. É por isso que as amizades se fazem e desfazem como se fossem laços políticos ou comerciais. Se alguém «falta» ou «não corresponde», se não cumpre as obrigações contratuais, é logo condenado como «mau» amigo e sumariamente proscrito. Está tudo doido. Só uma miséria destas obriga a dizer o óbvio: os amigos são as pessoas de que nós gostamos e com quem estamos de vez em quando. Podemos nem sequer darmo-nos muito, ou bem, com elas. Ou gostar mais delas do que elas de nós. Não interessa. A amizade é um gosto egoísta, ou inevitabilidade, o caminho de um coração em roda-livre.

Os amigos têm de ser inúteis. Isto é, bastarem só por existir e, maravilhosamente, sobrarem-nos na alma só por quem e como são. O porquê, o onde e o quando não interessam. A amizade não tem ponto de partida, nem percurso, nem objectivo. É impossível lembrarmo-nos de como é que nos tornámos amigos de alguém ou pensarmos no futuro que vamos ter.

A glória da amizade é ser apenas presente. É por isso que dura para sempre; porque não contém expectativas nem planos nem ansiedade.

Miguel Esteves Cardoso

Do seu livro Explicações de Português (2001)




quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O Brasil enfrenta o anti-Brasil (José Eduardo Agualusa)

Fotografia de Amanda Vivan


O Brasil enfrenta o anti-Brasil

Nas redes sociais vem circulando um vídeo do ator inglês Stephen Fry, alertando os brasileiros para o perigo que representa o crescimento da extrema direita. No essencial, Stephen Fry considera a multiplicação de declarações racistas, homofóbicas e machistas uma escolha equivocada para um país que tem na diversidade o seu principal traço de caráter. Seria, sugere o ator inglês, como se o Brasil estivesse escolhendo o anti-Brasil para o representar.

A diversidade do material humano com que se constituiu o ser brasileiro é, sem dúvida, extraordinária; basta percorrer as ruas de qualquer cidade do país para perceber isso. Contudo, passeando por Londres, Cape Town ou Nova York iremos deparar-nos com idêntica ou ainda maior diversidade. O que torna o Brasil original, o que explica a alegre vitalidade da sua cultura popular, não é tanto a diversidade: é a voracidade com que assimila o outro, isso a que chamamos mestiçagem.

Vivi dois anos entre Olinda e o Rio de Janeiro. Recordo desse meu breve exílio brasileiro a experiência do não exílio. Nunca me senti ostracizado. Nunca me senti estrangeiro. Nunca me senti colocado à margem. Pelo contrário, tinha de lutar todos os dias contra a tentação de me esquecer de mim, me refundando brasileiro.

Guardo desse tempo a ilusão de que é fácil virar brasileiro. Difícil é ser alemão, por exemplo, para citar um país onde até hoje a ascendência (o sangue) tem mais importância do que o lugar onde alguém nasce e cresce. Isto é, os filhos de imigrantes turcos nascidos na Alemanha não são automaticamente alemães (apenas se os pais estiverem legalmente no país há mais de oito anos), e continuam a ser tratados como turcos por uma boa parte dos seus concidadãos. Já os russos ou poloneses pertencentes a minorias de etnia alemã têm direito a passaporte germânico, ainda que nunca tenham visitado o país.

A propósito da Alemanha, onde também morei, lembro de uma ocasião em que vi, em Berlim, uma “japonesa” sambando. No momento em que a vi eu soube que ela não era japonesa. Era brasileira. Só podia ser brasileira. Esta capacidade de transformar um japonês, um alemão ou um angolano em brasileiro — num brasileiro inteiro, sem arestas —, é que me parece verdadeiramente singular.

E é este Brasil que está sob ameaça: o Brasil.

O anti-Brasil que vem crescendo e envenenando o Brasil me lembra certas doenças autoimunes. É como se o organismo — no caso, a sociedade brasileira — não fosse capaz de se reconhecer a si mesmo, os seus próprios órgãos e células, começando a se autodestruir.

O crescimento do anti-Brasil será apenas responsabilidade de políticos com um venenoso e persistente discurso de ódio? Creio que não. Provavelmente esses políticos apenas dão corpo a uma insanidade latente, que terminaria se manifestando, mais cedo ou mais tarde, com eles ou sem eles. Para a combater é preciso determinar primeiro de onde vem.

Sinto muito, não tenho respostas. Stephen Fry também não. Fry apenas está assustado, como eu, como milhões de outras pessoas no mundo inteiro, que amam o Brasil e a sua alegre e maravilhosa máquina de engolir e misturar culturas.

Infelizmente, no meio do ruído que se instalou no Brasil, fica difícil escutar as vozes lúcidas interessadas em discutir a questão e em encontrar respostas.

José Eduardo Agualusa

"O Brasil enfrenta o Brasil". In: O Globo, Segundo Caderno, 29/09/2018.


(Lido no blogue Acontecimentos, de Antonio Cícero)



terça-feira, 9 de outubro de 2018

"Um dia, na aula de Mecânica, parti um ponteiro..." (José Saramago)



Um dia, na aula de Mecânica, parti um ponteiro. O professor ainda não tinha chegado e nós aproveitávamos o tempo para armar o arraial do costume, uns a contar anedotas, outros a atirar aviões ou bolas de papel, outros a jogar às palmadas (magnífico exercício para estimular os reflexos, porquanto o jogador que tem as palmas das mãos para baixo terá de tentar escapar à palmada que o jogador que tem as palmas das mãos para cima vai tentar dar-lhe), e eu, para exemplificar o uso da lança, já não sei a que propósito, talvez por causa de algum filme que tivesse visto, empunhei o ponteiro como se lança fosse e corri para o quadro negro, supostamente o inimigo que teria de ser deitado do cavalo abaixo. Calculei mal a distância e o choque foi tal que o ponteiro se partiu em três pedaços na minha mão. O feito foi celebrado com aplausos por alguns, outros calaram-se e olharam-me com aquela expressão única que significa, em todas as línguas do mundo, «Estás bem arranjado», enquanto eu, como se acreditasse na possibilidade de um milagre, procurava ajustar um ao outro os pontos de fractura de dois dos bocados de pau. Como o milagre não se produziu, fui depor os destroços em cima do estrado e nesta operação estava quando o professor entrou. «Que aconteceu?», perguntou. Dei uma explicação atabalhoada («O ponteiro estava no chão e pus-lhe, sem querer, um pé em cima, senhor engenheiro») que ele fez de conta que aceitava. «Já sabes, terás de trazer outro», disse. Assim era e assim teve de ser. O pior é que em casa ninguém pensou em ir a uma loja de artigos escolares e perguntar quanto custava um ponteiro. Partiu-se logo do princípio de que seria demasiado caro e que a melhor solução seria comprar numa serração de madeiras um pau redondo, do mesmo tamanho, em bruto, e trabalhar eu em torná-lo o mais parecido possível com um ponteiro autêntico. E assim foi. Para bem ou para mal, nem meu pai nem minha mãe se meteram no assunto. Durante talvez duas semanas, tardes de sábado e domingos incluídos, de navalha em punho, como um condenado, desbastei, raspei, afilei, lixei e encerei o maldito pau. Valeu-me a experiência ganha na Azinhaga no manejo da ferramenta. A obra não ficou o que se chama uma perfeição, mas foi tomar dignamente o lugar do ponteiro partido, com aprovação administrativa e um sorriso compreensivo do professor. Havia que tomar em consideração que a minha especialidade profissional era a serralharia mecânica, e não a carpintaria ...

José Saramago

As Pequenas Memórias (2006)


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Biografia de José Saramago

O escritor português José Saramago retratado pelo fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado (Globo)


Biografia do Prémio Nobel português, retirada da página da Fundação José Saramago.

Filho e neto de camponeses, José Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo, no dia 16 de Novembro de 1922, se bem que o registo oficial mencione como data de nascimento o dia 18. Os seus pais emigraram para Lisboa quando ele não havia ainda completado dois anos. A maior parte da sua vida decorreu, portanto, na capital, embora até aos primeiros anos da idade adulta fossem numerosas, e por vezes prolongadas, as suas estadas na aldeia natal.

Fez estudos secundários (liceais e técnicos) que, por dificuldades económicas, não pôde prosseguir. O seu primeiro emprego foi como serralheiro mecânico, tendo exercido depois diversas profissões: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, tradutor, editor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance, Terra do Pecado, em 1947, tendo estado depois largo tempo sem publicar (até 1966). Trabalhou durante doze anos numa editora, onde exerceu funções de direcção literária e de produção. Colaborou como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973 fez parte da redacção do jornal Diário de Lisboa, onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante cerca de um ano, o suplemento cultural daquele vespertino.

Pertenceu à primeira Direcção da Associação Portuguesa de Escritores e foi, de 1985 a 1994, presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Entre Abril e Novembro de 1975 foi director-adjunto do jornal Diário de Notícias. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Casou com Pilar del Río em 1988 e em Fevereiro de 1993 decidiu repartir o seu tempo entre a sua residência habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias (Espanha). Em 1998 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel de Literatura.

José Saramago faleceu a 18 de Junho de 2010.


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Foi há vinte anos: o Nobel da Literatura, para José Saramago


A Academia Nobel anuncia a atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 1998 a José Saramago (8 de outubro de 1998)


Academia Sueca

O Secretário permanente

Communicado à imprensa

8 de Outubro de 1998

Prémio Nobel da Literatura 1998


“que, com parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia torna constantemente compreensível uma realidade fugidia”

O português José Saramago faz 76 anos de idade em Novembro. É um prosador oriundo da classe trabalhadora que só atingiu a celebridade quando cumpriu os 60 anos. Desde então alcançou a notoriedade e tem visto a sua obra ser frequentemente traduzida. Vive presentemente nas ilhas Canárias.

“Manual de Pintura e Caligrafia: um romance”, que saiu em 1977, ajuda-nos a entender o que viria a acontecer mais tarde. No fundo, trata-se do nascimento de um artista, tanto o do pintor como o do escritor. O livro pode, em grande parte, ser lido como uma autobiografia mas, na sua intensidade, encerra também o tema do amor, assuntos de natureza ética, impressões de viagens e reflexões sobre a relação entre o indivíduo e a sociedade. A libertação alcançada com a queda do regime salazarista transforma-se numa imagem final portadora de abertura.

“Memorial do Convento”, de 1982, é o romance que o vai tornar célebre. É um texto multifacetado e plurissignificativo que tem, ao mesmo tempo, uma perspectiva histórica, social e individual. A inteligência e a riqueza de imaginação aqui expressadas caracterizam, de uma maneira geral, a obra saramaguiana. A ópera “Blimunda”, do compositor italiano Corghi, baseia-se neste romance.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, publicado em 1984, é um dos pontos altos da sua produção literária. A acção passa-se formalmente em Lisboa no ano de 1936, em plena ditadura, mas possui um ambiente de irrealidade superiormente evocado. Este ambiente de irrealidade é acentuado pelas repetidas visitas do falecido poeta Fernando Pessoa a casa da personagem principal (que é extraída da produção pessoana) e das suas conversas sobre os condicionalismos da existência humana. Juntos deixam o Mundo após o seu último encontro.

Em “A Jangada de Pedra”, publicada em 1986, o escritor recorre a um estratagema típico. Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina na separação da Península Ibérica que começa a vogar no Atlântico, inicialmente em direcção aos Açores. A situação criada por Saramago dá-lhe um sem-número de oportunidades para, no seu estilo muito pessoal, tecer comentários sobre as grandezas e pequenezas da vida, ironizar sobre as autoridades e os políticos e, talvez muito especialmente, com os actores dos jogos de poder na alta política. O engenho de Saramago está ao serviço da sabedoria.

Existem todas as razões para também mencionar “História do Cerco de Lisboa”, de 1989, um romance sobre um romance. A história nasce da obstinação de um revisor ao acrescentar um não, um estratagema que dá ao acontecimento histórico um percurso diferente e, ao mesmo tempo, oferece ao autor um campo livre à sua grande imaginação e alegria narrativa, sem o impedir de ir ao fundo das questões.

“O Evangelho segundo Jesus Cristo”, de 1991, romance sobre a vida de Jesus encerra, na sua franqueza, reflexões merecedoras de atenção sobre grandes questões. Deus e o Diabo negoceiam sobre o Mal. Jesus contesta o seu papel e desafia Deus.

Um dos romances destes últimos anos aumenta consideravelmente a estatura literária de Saramago. É publicado em 1995 e tem como título “Ensaio sobre a Cegueira”. O autor omnisciente leva-nos numa horrenda viagem através da interface que é formada pelas percepções do ser humano e pelas camadas espirituais da civilização. A riqueza efabulatória, excentricidades e agudeza de espírito encontram a sua expressão máxima, de uma forma absurda, nesta obra cativante. “Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem.”

O último dos seus romances, “Todos os Nomes”, sairá este Outono, em tradução sueca.Trata-se de uma história sobre um pequeno funcionário público da Conservatória dos Registos Centrais de dimensões quase metafísicas. Ele fica obcecado por um dos nomes e segue a sua pista até ao seu trágico final.

A arte romanesca multifacetada e obstinadamente criada por Saramago, confere-lhe um alto estatuto. Em toda a sua independência Saramago invoca a tradição que, de algum modo, no contexto actual, pode ser classificada de radical. A sua obra literária apresenta-se como uma série de projectos onde um, mais ou menos, desaprova o outro mas onde todos representam novas tentativas de se aproximarem da realidade fugidia.

The Swedish Academy 

(Fonte: The Nobel Prize)