Um dia, na aula de Mecânica, parti um ponteiro. O professor ainda não tinha chegado e nós aproveitávamos
o tempo para armar o arraial do costume, uns a contar anedotas, outros a atirar aviões ou bolas de papel,
outros a jogar às palmadas (magnífico exercício para estimular os reflexos, porquanto o jogador que tem
as palmas das mãos para baixo terá de tentar escapar à palmada que o jogador que tem as palmas das mãos
para cima vai tentar dar-lhe), e eu, para exemplificar o uso da lança, já não sei a que propósito, talvez por
causa de algum filme que tivesse visto, empunhei o ponteiro como se lança fosse e corri para o quadro negro,
supostamente o inimigo que teria de ser deitado do cavalo abaixo. Calculei mal a distância e o choque foi tal
que o ponteiro se partiu em três pedaços na minha mão. O feito foi celebrado com aplausos por alguns, outros
calaram-se e olharam-me com aquela expressão única que significa, em todas as línguas do mundo,
«Estás bem arranjado», enquanto eu, como se acreditasse na possibilidade de um milagre, procurava ajustar
um ao outro os pontos de fractura de dois dos bocados de pau. Como o milagre não se produziu, fui depor os
destroços em cima do estrado e nesta operação estava quando o professor entrou. «Que aconteceu?», perguntou.
Dei uma explicação atabalhoada («O ponteiro estava no chão e pus-lhe, sem querer, um pé em cima,
senhor engenheiro») que ele fez de conta que aceitava. «Já sabes, terás de trazer outro», disse. Assim era e
assim teve de ser. O pior é que em casa ninguém pensou em ir a uma loja de artigos escolares e perguntar
quanto custava um ponteiro. Partiu-se logo do princípio de que seria demasiado caro e que a melhor solução
seria comprar numa serração de madeiras um pau redondo, do mesmo tamanho, em bruto, e trabalhar eu em
torná-lo o mais parecido possível com um ponteiro autêntico. E assim foi. Para bem ou para mal, nem meu
pai nem minha mãe se meteram no assunto. Durante talvez duas semanas, tardes de sábado e domingos
incluídos, de navalha em punho, como um condenado, desbastei, raspei, afilei, lixei e encerei o maldito pau.
Valeu-me a experiência ganha na Azinhaga no manejo da ferramenta. A obra não ficou o que se chama uma
perfeição, mas foi tomar dignamente o lugar do ponteiro partido, com aprovação administrativa e um sorriso
compreensivo do professor. Havia que tomar em consideração que a minha especialidade profissional era a
serralharia mecânica, e não a carpintaria ...
José Saramago
As Pequenas Memórias (2006)
José Saramago
As Pequenas Memórias (2006)