quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Em louvor de uma infância (Alberto Soares)

Fotografia de André Sousa


Em louvor de uma infância

Hoje, tudo tem embalagens evasivas: em blister, tetrapack e quejandos. Aformoseadas até ao limite do disfarce ou dissimulação, onde os produtos jazem muito pouco substantivos, menos ainda se lhes descobre a filiação ou origem que permita às novas gerações conhecer-lhes a história em toda a sua simplicidade.

Quando criança, eu estava muito pouco acostumado à técnica, mas sabia, por exemplo, o que era um contador de água. E o seu verdete, quando já envelhecido. Desde cedo, sabia mudar fusíveis, ensinado que fora pela minha Mãe. Conhecia a cor do chumbo e do mercúrio. E os dejectos das cabras vicinais, como também os figos equestres que, por vezes, sinalizavam os animais de passagem pelos caminhos de terra batida, poeirentos. Sabia de como os ninhos eram feitos e conseguia facilmente distinguir um ovo de pata de outro, de galinha. Pasmava da galinha choca - ainda não havia os aviários -, na obscuridade da loja, sobre o enorme cesto vindimeiro, protegendo os pintaínhos recém-nascidos. Surpreendia-me com a agilidade das sardaniscas, fugindo por entre as pedras, nas manhãs de Sol. Tudo isto, apesar de viver numa cidade, embora de província, onde ainda não havia embalagens.


Alberto Soares no blogue Arpose  (20-10-2015)