segunda-feira, 28 de abril de 2014

Os três velhos (Vasco Graça Moura)

Fotografia de Gérard Castello Lopes



OS TRÊS VELHOS

vinde cá ver estes três velhos
tão pacatos ao sol.
 
o país despovoa-se.
a curva demográfica desce.
a inflação derrapa.
o desemprego aumenta.
o estado rouba.

mas estes três velhos apanham sol,
contentes no correr da tarde.

os ricos baldam-se a pagar impostos.
o lince da malcata está em perigo.
a poluição ameaça os cursos de água.
as crianças aproveitam zero na escola.
há escândalos, negociatas, corrupção.

mas estes três velhos sentam-se num banco
e vão apanhando sol.

os espanhóis querem reter os rios.
a saúde está um coas.
a justiça está uma vergonha.
vivemos do cartão de crédito.
até vamos alugar submarinos.

mas estes três velhos franzem os olhos
e as caras enrugadas
à claridade solar benfazeja.

a agricultura está em crise total.
as pescas estão em vias de extinção e de miséria.
os empresários só funcionam com subsídios.
a construção de obras públicas encerrou.

mas estes três velhos só não querem
que lhes roubem o sol (como diógenes).

a televisão transmite as maiores idiotias.
os noticiários só fazem propaganda do governo.
a inépcia do governo não tem limites.
o primeiro-ministro afecta um ar untuoso de primeira-comunhão,
ou de baptismo porque a maioria tem muitos afilhados.

mas estes três velhos estão-se borrifando
solenemente.
não são de direita nem de esquerda.
apanham sol.

Vasco Graça Moura


Poema lido no blogue Cão celeste.


Vasco Graça Moura morreu ontem em Lisboa aos 72 anos. A notícia na página da  RTP
.


24 de Abril, sempre. Democracia nunca mais (Ricardo Araújo Pereira)




24 de Abril, sempre. Democracia nunca mais

Celebram-se este mês os 40 anos da morte do 25 de Abril. Ou talvez não seja bem isto. Mas parece. Não se sabe ao certo como vão ser comemoradas as quatro décadas de democracia. Suspeita-se apenas que a cerimónia vai ser pobre, triste, e presidida por gente que não mexeu uma palha para que a Revolução acontecesse. Os capitães de Abril não estarão presentes. Durante o Estado Novo, as pessoas que fizeram o 25 de Abril não podiam falar na Assembleia da República. Ao fim de 40 anos de democracia, continuam a não poder. Podem estar presentes, desde que seja só para enfeitar. Mas não querem. É pena. Sugiro um friso de capitães de Abril feito de fotografias em tamanho real, recortadas em cartão. Faz o mesmo efeito que os organizadores da cerimónia pretendiam, e podem usar-se fotografias dos tempos em que os capitães de Abril estavam mais novos e mais magros. É uma maneira de termos um 25 de Abril ainda mais próximo do original. E de plástico, que é mais barato.

Outra ideia, um pouco mais subversiva, mas igualmente respeitadora da ordem e do silêncio: todos os democratas presentes na Assembleia para a cerimónia comemorativa do 25 de Abril levam no bolso uma máscara do Vasco Lourenço. E, quando a corja topa da tribuna do hemiciclo, põem a máscara. Talvez pregue um susto suficiente para que alguns dos organizadores da festa corram a comprar um bilhete para o Brasil. As agências de viagens bem precisam de um incentivo destes.

Entretanto, e creio que já no âmbito das festividades, Durão Barroso afirmou que, antes do 25 de Abril, "apesar de algumas liberdades cortadas, havia na escola uma cultura de mérito, exigência, rigor, disciplina e trabalho" que se perdeu. Realmente, havia algumas liberdades cortadas. E algumas goelas, também. Mas, para o presidente da União Europeia, o regime em que havia uma polícia política que prendia, torturava e matava tinha um ensino muito bom. Parece que, na antiga RDA, o desporto também era óptimo. Dizem que Jack, o Estripador, tinha uma linda colecção de selos. E, como se sabe, os nazis tinham marchas lindas.

De facto, e com muita pena minha, o ensino do Estado Novo era melhor e mais exigente. Cito, por exemplo, o Livro de Leitura da 3.ª Classe, de 1958: "Com o Estado Novo abriu-se para Portugal uma época de prosperidade e de grandeza, comparável às mais brilhantes de toda a sua história. (...) Construíram-se muitas escolas, e hão-de construir-se as que forem precisas para que todas as crianças em idade escolar tenham onde educar-se e instruir-se." A prova de que o ensino era bom é que Durão Barroso memorizou estas palavras do livro único e não mais as esqueceu. É pena que, aparentemente, os primeiros-ministros que governaram Portugal após o 25 de Abril não tenham conseguido manter este nível de excelência nas nossas escolas. Não sei se Durão Barroso conhece algum. Mas todos eles merecem uma palmatoada. E deviam decorar os nomes dos rios e caminhos-de-ferro de Angola, para castigo.

Ricardo Araújo Pereira


Revista Visão  (24 de abril de 2014)





sexta-feira, 25 de abril de 2014

25 de abril de 1974 (Noémia Pinto)




25 de abril de 1974

Eu era uma criança.
Gostava de ter vivido aqueles momentos de apreensão mas também mágicos que acompanharam a revolução e ficaram para além dela.
Gostava de ter podido abraçar sentidamente aqueles Homens, em nada parecidos com os homúnculos que hoje por aí pululam.
De ter podido dizer-lhes «Obrigada» de rosto lavado em lágrimas e voz embargada.
De ter podido entregar um cravo vermelho a cada um deles.
De ter podido dizer-lhes que agora sim, agora é que o futuro nos ia sorrir. Agora é que iríamos concretizar a nossa grandeza, graças a eles.
De os ter acompanhado pelas ruas fora.
De ter ficado com o seu cheiro entranhado nas minhas roupas que não lavaria nem usaria jamais, de modo a perpetuar aquele odor heróico.
De ter abraçado todos aqueles com quem me cruzasse, subitamente transformados em meus irmãos na felicidade de concretizar um futuro sonhado.
De ter sentido aquele saborzinho único que fica quando a justiça impera e quando sabemos que vivemos momentos especiais.
De ter visto o povo nas ruas, cada vez em maior número, uns com olhares de medo, olhando ainda de soslaio, tentando perceber onde andaria o «bufo» mais perto de si, outros com um sorriso de orelha a orelha, sonhando já com o amanhã em liberdade.
De ter presenciado as reacções dos meus pais, de lhes ter lido o medo. De, depois, rir com eles, e construir sonhos de alegria, de igualdade, de justiça social. De entoar lindas e frescas canções de revolução, liberdade e esperança.
Sim, o dia 25 de Abril de 1974 amanheceu especial e histórico e eu, infelizmente, era demasiado criança para o viver intensamente ou para simplesmente o viver.
Ainda assim, nunca é tarde para isto:
OBRIGADA por tudo o que fizeram pelo nosso país.


Publicado por Noémia Pinto a 25 de Abril de 2013 em aventar.





quinta-feira, 24 de abril de 2014

os equívocos de abril - blogue 'Blasfémias'

Governo de Pedro Passos Coelho, de cravo ao peito, durante as comemorações
oficiais do 25 de Abril em 2012, na Assembleia da República
(Blogue 
Cais do olhar)



os equívocos de abril
22 Abril, 2014
por rui a.

O 25 de Abril, que celebra 40 anos nos próximos dias, foi fonte de inúmeros equívocos que macularam indelevelmente o regime e o país. O mais grave de todos foi ter-nos legado uma “direita” cujo principal representante à data o celebra agora de cravo vermelho na lapela, lado a lado com a esquerda e a extrema-esquerda desse e do nosso tempo. Por mais que nos esforçássemos, dificilmente haveria melhor síntese dos motivos históricos que explicam o estado a que o país chegou.

Fonte: blogue Blasfémias


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Quanto pesa um cravo vermelho na lapela?

Em dia de comemoração de Abril, o uso da flor que simboliza a revolução continua a ser polémica. A esquerda enverga-a com orgulho mas é um incómodo para a direita. Rui Gaudêncio. Público,  26/04/2013 - 18:11 





Dois poemas de Sophia de Mello para este 25 de Abril




25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O día inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo



Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro inícío
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen



Mais: 25 poemas e canções para o 25 de Abril, em Biblio Beiriz.




quarta-feira, 23 de abril de 2014

Palavras de Saramago para o Dia do Livro



"O leitor também escreve o livro quando lhe penetra o sentido, o interroga"

José Saramago

 
José Saramago (1922-2010)










25 de Abril, sempre! (Tomás Vasques)



25 de Abril, sempre!


Esta gente que nos governa detesta o 25 de Abril, o dia fundador da nossa democracia - o dia mais feliz da vida de quem o viveu e de quem não se acomodou à ditadura


Comemora-se esta semana o quadragésimo aniversário do derrube da ditadura salazarista. Uma prolongada ditadura que chegou pela mão de um professor da Universidade de Coimbra, apessoado e bem-falante, seminarista e anti-republicano, depois de um golpe militar que pôs termo à I República, a qual se deixou afundar numa crise política, económica e financeira permanente. Uma ditadura igual a todas as ditaduras, com o seu rol de perseguições políticas, prisões e assassinatos de opositores. De pobreza, analfabetismo e cacete. Inculta e profundamente reacionária.

À medida que nos afastamos no tempo daquela madrugada de Abril, adensa-se cada vez mais, no discurso político e na "análise histórica" elaborados nestes últimos anos, a partir de uns "jovens turcos" acantonados em jornais, revistas e blogues, promovidos a "ideólogos" de outros amanhãs que cantam, o branqueamento da ditadura e a desvalorização do significado do dia 25 de Abril, enquanto data fundadora da nossa democracia. O desbragamento e a falta de vergonha e de memória assumiram tais proporções que até Durão Barroso, ex-presidente do PSD, ex-primeiro-ministro de uma coligação dos partidos que nos governam e ainda presidente da Comissão Europeia louvou, descontraidamente e sem corar, a "excelência" do ensino em tempo de ditadura. O velho ditador de Santa Comba Dão, lá na tumba onde expia os seus pecados, deve ter aplaudido o reconhecimento póstumo e gracejado, à sua maneira, sobre os discípulos que por cá deixou.

Os jovens turcos que sustentam ideologicamente este governo sempre se sentiram incomodados com o 25 de Abril, com os militares que executaram o golpe de Estado que derrubou a ditadura e com o povo que o transformou numa revolução. Recusando liminarmente o entendimento de que a democracia é o regime que dá espaço de luta a todas as expressões políticas - o que aconteceu a partir daquele dia de Abril -, começaram por teorizar que só a 25 de Novembro de 1975 nasceu a democracia, quando os comunistas são metidos na ordem democrática. Depois, cimentada a ideia, e após a elaboração de muitos estudos, concluíram que, afinal, a democracia só existiu em Portugal depois de 1982, altura em que foi extinto o Conselho da Revolução.

Mas não se ficaram por aqui. Mais tarde, começaram a falar em 1985, altura da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, como a data fundadora da democracia. De imediato, empurraram-na mais um ano, para 1986, com a eleição de Mário Soares, o primeiro chefe de Estado civil. E a seguir transferiram a data para 1989, aquando da revisão constitucional de 1989, a qual flexibilizou a garantia das nacionalizações.

Mas, mesmo assim, depois de transferirem o 25 de Abril de 1974 para 8 de Julho de 1989, os jovens turcos, os ideólogos deste governo, em sintonia com os principais banqueiros, encabeçados por Fernando Ulrich, insistem ainda que o voto dos portugueses está condicionado pela Constituição: um governo eleito não pode fazer o que quer, tem de subordinar a sua actuação a uma constituição "socialista e marxista", pelo que devemos aguardar que nos indiquem uma nova data para irmos beber um copo em comemoração da instauração da democracia.

Esta gente que nos governa detesta o 25 de Abril, o dia fundador da nossa democracia - o dia mais feliz da vida de quem o viveu e de quem não se acomodou à ditadura. Uns procuram disfarçar essa aversão, com um palavreado redondo, do tipo: "Sim, o 25 de Abril, mas foi só a libertação, não a liberdade ou a democracia"; outros, já enaltecem os feitos da ditadura. E foi aqui o cais a que aportámos, quarenta anos depois. Este governo e os seus ideólogos estão a aplanar o terreno para que o povo diga, como no fim da monarquia, como escreveu Raul Brandão: "Venha tudo, venha o pior, venha o diabo do Inferno que nos livre disto!"

Tomás Vasques, Jurista

publicado em 21 Abr 2014 (Jornali)