segunda-feira, 14 de maio de 2012

romance de supermercado (Marta Lança)



romance de supermercado

Foi no corredor dos detergentes – que cruza o dos laticínios e separa o das bebidas do dos pensos higiénicos – onde se viram pela primeira vez. A loura redondinha e o mestiço de bigode ralo. Um tão inesperado encontro mudaria as vidas destes solitários que passeavam no hipermercado lançando um ar indignado com os preços para simular o engate: quando Elisabete deixa cair o skip e Lauro escorrega no perfumado pó branco. Este acidente fá-lo torcer um pé às mãos dela, e ela, a excêntrica loura com ares de actriz de série z, encosta o redondo peito à cara do acidentado.

Olhos mesquinhamente curiosos rodeiam os apaixonados, enquanto os próprios, estendidos no chão, o mesmo chão onde um patinador desmaiou de cansaço, se acarinham loucamente e fazem chover propostas: casa, na sua ou na minha, curo-lhe o pé com uma ligadura, faço-lhe o jantar, venha, venha.

Lauro levanta-se e pede uma mão, Eli repõe as batatas fritas light na prateleira errada e agarra-o com força, como se esperasse há muito por este homem. Depois avançam contentes e coxos por entre os congelados, saem altivos pela caixa das 15 unidades e nem ligam aos alarmes que tocam frenéticos assinalando o bonito romance.

Marta Lança, no seu blogue A vida escrita



segunda-feira, 7 de maio de 2012

Giro? Legal?



Ontem, à conversa com uma amiga de um amigo, acabada de chegar do Brasil, me apercebo da importância da palavra «giro» no meu vocábulário. O mais engraçado é que sempre sobrevivi sem ela e agora entro em pânico quando tento fazer uma tradução às pressas para português brasileiro. Não é «legal» nem «bonito» ou «interessante». É tudo isso e mais alguma coisa. Acho que tem praí uns duzentos significados. Eu posso tanto dizer que uma garota é «gira» querendo dizer «bonita» como dizer que Lisboa é «gira» querendo dizer «legal» ou «interessante». Entendeu meu drama?

Wellington Almeida

terça-feira, 1 de maio de 2012

Caranguejola (Mário de Sá-Carneiro)

 Caricatura de Mário de Sá-Carneiro
por Almada Negreiros


CARANGUEJOLA

- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira -
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edrédon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria! -
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda -
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Mário de Sá-Carneiro

Paris - novembro 1915






sexta-feira, 27 de abril de 2012

"Poesia é voar fora da asa" (Manoel de Barros)

Manoel de Barros (Cuiabá, 1916)

Apenas um verso do poeta brasileiro Manoel de Barros, um fraco deste blogue. Podemos lê-lo no seu livro O Livro das Ignorãças:


Poesia é voar fora da asa.



segunda-feira, 23 de abril de 2012

A um deus surdo (Fernando Assis Pacheco)



Para o Dia do Livro, estes versos de Fernando Assis Pacheco.


A UM DEUS SURDO

Ó quem me dera ter outra vez vint’anos
navegar no ignoto sem portulanos
o peito feito para os da vida enganos
era sensacional ó hermanos

quem dera o brandy com castelo
o dedo ao arrepio do pêlo
o romanticismo do desvelo
e tudo isto fingindo um grande anelo

quem dera agora uma vez mais
o rápido de Irún no cais
a solicitude quente dos pais
ai eu tirando de ouvido muitos ais

ó quem dera e outra vez viera e dera
a ruminante paciência que há na espera
o mistério lento da Primavera
o emblema desenhado pela namorada: uma hera



Na IV Bienal de Poesia de Silves, em Abril de 2010, o Simão lê pela primeira vez um poema do avô, Fernando Assis Pacheco, homenageado na Bienal. A seu lado, o escritor Luis Serrano, a quem coube a conferência sobre a obra do poeta, ficcionista e jornalista.



quinta-feira, 19 de abril de 2012

De quando é que são estas palavras?



Que fazer? Que esperar? Portugal tem atravessado crises igualmente más: - mas nelas nunca nos faltaram nem homens de valor e carácter, nem dinheiro ou crédito. Hoje crédito não temos, dinheiro também não - pelo menos o Estado não tem: - e homens não os há, ou os raros que há são postos na sombra pela Política. De sorte que esta crise me parece a pior - e sem cura. 

Eça de Queirós, Correspondência (1891) 


(Lido aqui)

terça-feira, 10 de abril de 2012

A memória das palavras (José Gomes Ferreira)



Nessa personalidade (...) salientava-se a trave mestra dum sentimento que, embora em esboço, já sobrepujava todos os outros: o da sensibilidade da apreensão do mal e a implícita responsabilidade, mesmo que a culpa pertencesse a outrem — sentimento que pelos tempos adiante se complicou dos remorsos de haver vida mal vivida, morte mal morrida e não-amor.

Assim deduzo de duas histórias escritas na infância e bem esclarecedoras. A primeira redigi-a (é o termo escolar exacto) na Sala de Estudo do Colégio Francês que frequentei até os 13 anos. O Alberto Rodrigues Miranda, professor de Liceu e velho amigo que assistiu, com amizade de testemunha desatenta, à formação do meu universo, tal vez se recorde. Tratava-se de uma espécie de romancico intitulado O Miserável com um entrecho à primeira vista tolo Senão leiam: «um ladrão salta as grades do jardim dum palácio onde se lhe deparam duas crianças a brincar na relva. Aponta-lhes a pistola e intima-as: ‘vão lá dentro ao cofre do pai e tragam-me todo o dinheiro que encontrarem’. As crianças amedrontadas obedecem e não tardam a reaparecer, aos saltinhos, com dois braçados de notas de que o ladrão se apodera, ávido. Mas quando se prepara para se retirar, eis que o salteador pára de súbito, surpreendido, a contemplar a pureza doce das crianças...

E então, num repente lívido, saca da pistola e mata-se».

Vá, riam! (Eu também rio com gosto). Riam às gargalhadas! Riam desta obra-prima que, para a minha mentalidade infantil, possuía tal significado de arrepio de beleza que ainda há instantes estremeci, ao recordar-me do pobrezinho do Miserável a autocastigar-se com um tiro absurdo na cabeça, sabe-se lá bem porquê, possivelmente com saudades da inocência... (...)

Aqui sacudo a tentação de narrar alguma das imaginosas façanhas do capitão Scott para persistir nas escarafunchadelas na infância e evocar outro mestre inolvidável: o Dr. João Soares.

Professor excepcional, o que ainda hoje sei de geografia ele mo ensinou — e com que fantasia estuante!, com que perpétuo inventar de mnemónicas que nos divertiam às gargalhadas espectaculares! 

Mas para além de leccionador de continentes, países, serras, portos, capitais, povos e costumes, os meus olhos infantis, sequiosos de mitos, divisavam nele mais alguma coisa do que um educador vulgar. Um forjador de caracteres, ao mesmo tempo severo e alegre, enérgico e bom.

Estou a recordar-me do entusiasmo e do tacto com que nos falou da nova bandeira, verde e vermelha — em Dezembro de 1911 infiro eu —, hasteada em frente, na torre da Igreja dos Anjos. E da intervenção modelar com que puniu a burla de eu lhe ter apresentado como meu um mapa da Eu¬ropa, desenhado e colorido pelo Alberto Miranda.

O Dr. João Soares descobriu logo a falcatrua ingénua (havia classificado o mesmo mapa pouco antes) e muito sereno, como se não desejasse humilhar-me diante dos meus companheiros, pronunciou apenas meia dúzia de palavras duras e magoadas, duma simplicidade aterradora: «És um dos meus melhores alunos. Tentaste intrujar-me. Não te merecia isso. Feriste-me muito. Vai sentar-te e medita no caso». Mais nada.

Desfiz-me em lágrimas, eu, o pequenino José Ferreira, já autor de O Miserável que, ao ver a sua inocência perdida, dera um tiro na cabeça.

José Gomes Ferreira

Do seu livro A memória das palavras - ou o gosto de falar de mim (1965)

Sobre este escritor, poeta e ficcionista português:  Wikipédia e As tormentas (no segundo link podem ler-se versos dele)