Nessa personalidade (...) salientava-se a trave mestra dum sentimento que, embora em esboço, já sobrepujava todos os outros: o da sensibilidade da apreensão do mal e a implícita responsabilidade, mesmo que a culpa pertencesse a outrem — sentimento que pelos tempos adiante se complicou dos remorsos de haver vida mal vivida, morte mal morrida e não-amor.
Assim deduzo de duas histórias escritas na infância e bem esclarecedoras. A primeira redigi-a (é o termo escolar exacto) na Sala de Estudo do Colégio Francês que frequentei até os 13 anos. O Alberto Rodrigues Miranda, professor de Liceu e velho amigo que assistiu, com amizade de testemunha desatenta, à formação do meu universo, tal vez se recorde. Tratava-se de uma espécie de romancico intitulado O Miserável com um entrecho à primeira vista tolo Senão leiam: «um ladrão salta as grades do jardim dum palácio onde se lhe deparam duas crianças a brincar na relva. Aponta-lhes a pistola e intima-as: ‘vão lá dentro ao cofre do pai e tragam-me todo o dinheiro que encontrarem’. As crianças amedrontadas obedecem e não tardam a reaparecer, aos saltinhos, com dois braçados de notas de que o ladrão se apodera, ávido. Mas quando se prepara para se retirar, eis que o salteador pára de súbito, surpreendido, a contemplar a pureza doce das crianças...
E então, num repente lívido, saca da pistola e mata-se».
Vá, riam! (Eu também rio com gosto). Riam às gargalhadas! Riam desta obra-prima que, para a minha mentalidade infantil, possuía tal significado de arrepio de beleza que ainda há instantes estremeci, ao recordar-me do pobrezinho do Miserável a autocastigar-se com um tiro absurdo na cabeça, sabe-se lá bem porquê, possivelmente com saudades da inocência... (...)
Aqui sacudo a tentação de narrar alguma das imaginosas façanhas do capitão Scott para persistir nas escarafunchadelas na infância e evocar outro mestre inolvidável: o Dr. João Soares.
Professor excepcional, o que ainda hoje sei de geografia ele mo ensinou — e com que fantasia estuante!, com que perpétuo inventar de mnemónicas que nos divertiam às gargalhadas espectaculares!
Mas para além de leccionador de continentes, países, serras, portos, capitais, povos e costumes, os meus olhos infantis, sequiosos de mitos, divisavam nele mais alguma coisa do que um educador vulgar. Um forjador de caracteres, ao mesmo tempo severo e alegre, enérgico e bom.
Estou a recordar-me do entusiasmo e do tacto com que nos falou da nova bandeira, verde e vermelha — em Dezembro de 1911 infiro eu —, hasteada em frente, na torre da Igreja dos Anjos. E da intervenção modelar com que puniu a burla de eu lhe ter apresentado como meu um mapa da Eu¬ropa, desenhado e colorido pelo Alberto Miranda.
O Dr. João Soares descobriu logo a falcatrua ingénua (havia classificado o mesmo mapa pouco antes) e muito sereno, como se não desejasse humilhar-me diante dos meus companheiros, pronunciou apenas meia dúzia de palavras duras e magoadas, duma simplicidade aterradora: «És um dos meus melhores alunos. Tentaste intrujar-me. Não te merecia isso. Feriste-me muito. Vai sentar-te e medita no caso».
Mais nada.
Desfiz-me em lágrimas, eu, o pequenino José Ferreira, já autor de O Miserável que, ao ver a sua inocência perdida, dera um tiro na cabeça.
José Gomes Ferreira
Do seu livro A memória das palavras - ou o gosto de falar de mim (1965)
Sobre este escritor, poeta e ficcionista português: Wikipédia e As tormentas (no segundo link podem ler-se versos dele)