sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

US Índex (Paulo Anunciação)

 
O seguinte artigo foi publicado nos anos 90 num jornal português já desaparecido: O Independente. "US Índex" é o título e Paulo Anunciação, naquela altura correspondente do jornal em Boston, é o autor.


US Índex

Nos Estados Unidos da América, fundamentalistas cristãs, activistas negros, conservadores, liberais, nacionalistas ou simplesmente puritanos encontram cada vez mais motivos para afastar livros das escolas e bibliotecas do país.


A liberdade. Mais do que Hollywood ou a MTV, os hamburgers do McDonalds, Walt Disney ou os atletas da NBA ou NFA, os americanos costumam escolher a velha Constituição, de 1787, como o símbolo e orgulho do país. Os seus sete artigos, mais a “Bill of rights” e as emendas aprovadas posteriormente, falam de liberdades, direitos e garantias. A primeira emenda (1791), nomeadamente, costuma ser ensinada e admirada no estrangeiro: nela se prescrevem as inatacáveis liberdades de expressão, de imprensa e de religião.

Até quando, ninguém sabe. Uma onda crescente de “novos inquisidores” tem percorrido o país, de costa a costa, pondo em causa uma das liberdades mais essenciais: ler um livro. A American Library Association, de Chicago, registou 653 casos de censura a livros em bibliotecas, livrarias e estabelecimentos de ensino durante o ano lectivo de 1992-1993. Outra organização, People for the American Way, um grupo sediado em Washington que controla, há uma década, todas as tentativas de censura nos Estados Unidos, apontou 395 atentados (41 por cento deles bem sucedidos) à “liberdade de ler e aprender”.

Este foi o pior ano de sempre, com 50 por cento de aumento no número de casos registados. Eles têm origem em fanáticos anti-racistas, liberais, fundamentalistas de esquerda e de direita, anti-sexistas, mas –sobretudo– no grupo crescente de movimentos religiosos de direita. “Há lugar para a censura, por razões de segurança ou porque um livro é manifestamente inapropriado. Temos que defender os padrões morais da nossa sociedade”, justificava-se o reverendo Robert Simonds, grande líder da National Association of Christian Education”.

Toca a queimar, rasgar, riscar e proibir. Autores como Hemingway, Shaw, Tchekhov –com a simples justificação de que ele era “russo”–, Huxley e Camus; ou a figura de “Hamlet”, porque era “um porco anti-semita”. Ninguém escapa. Os exemplos, por vezes, roçam o ridículo. Where’s Waldo? foi banido de uma biblioteca de Long Island porque uma mãe, preocupada com a educação do filho menor, descobriu nele uma figurinha que mostrava meio seio destapado. A figura –uma entre dezenas– não é maior do que uma meia unha, na dupla página de Waldo On the Beach. Edgar Rice Burroughs e o seu clássico Tarzan of the Apes não tiveram melhor sorte. Justificação: Tarzan vivia em pecado com Jane. Há quem chegue ao ponto, até, de reescrever clássicos como As Aventuras de Huckleberry Finn, por exemplo, e publicar versões “políticamente correctas” (um autor negro, Irving Wallace, editou recentemente uma versão “corrigida” com o título The Adventures of Huckleberry Finn, (Adapted). A obra, considerada por muitos como a primeira e melhor de toda a literatura norte-americana, seria “inaceitável” porque inclui vezes demais a palavra “nigger”. Outros, mais rebuscados ainda, encontraram no livro uma verdadeira (e perigosa) apologia da homossexualidade. Tudo porque num trecho do livro o escravo Jim diz para o seu amiguinho Huck: “I’ll meet you back at the raft, Huck honey”. Seus malandros.


ALGUNS DOS LIVROS CONTESTADOS OU CENSURADOS EM BIBLIOTECAS, ESCOLAS E LICEUS DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA NO ANO DE 1992-1993

The Cabbages Are Chasing The Rabbits — Censurado em Deer Ridge (Indiana) porque “pode fomentar animosidade contra os caçadores”.

Bless me, Ultima — Queixas em vários liceus em Califórnia. “O livro contém muitas referências obscenas e satánicas, além de palavrões em espanhol. Glorifica a bruxaria e a morte”.

Fahrenheit 451 — Num liceu de Califórnia foi distribuído aos estudantes com todos os “damn” e “hell” tapados com tinta negra. O tema deste livro –curiosamente– é a censura.

The Goats — Retirado de uma biblioteca escolar em Prosser (Washington) porque num dos capítulos relata-se o salvamento de uma menina nua.




segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Gaibéus (Alves Redol)



Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.

O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso.

Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão. Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.

A ceifa, porém, não parava, e ainda bem - a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também.

E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.

Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.

Vencidos pelo torpor os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.

Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.

Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atulhados de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.

Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.
Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!

-Auga!... Auga!... - Gritam os rapazes aguadeiros.

Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.

Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.

Talvez por isso também as raparigas não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes recordassem a sua condição de alugadas.

Alves Redol

Do seu primeiro romance, Gaibéus (1939).

Nota. "Gaibéus" era o nome dado aos camponeses que faziam a ceifa do arroz no Ribatejo, em meados do século XX.

Alves Redol (1911-1969), escritor neorrealista português.


De interesse, sobre este autor, vida e obra: Manifesto Jeocaz Lee-Meddi



quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Duas crónicas de José Saramago

Fotografía de josesaramago.org

Hoje temos não o José Saramago romancista, mas o escritor de crónicas para jornal. Estas duas foram publicadas em  A Capital  em finais dos anos 60 e nelas retrata com muito amor os seus avós.

CARTA A JOSEFA, MINHA AVÓ

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas - e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.



E O MEU AVÔ, TAMBÉM

Talvez o dia chuvoso seja o responsável desta melancolia. Somos uma máquina complicada, em que os fios do presente activo se enredam na teia do passado morto, e tudo isto se cruza e entrecruza de tal maneira, em laçadas e apertos, que há momentos em que a vida cai toda sobre nós e nos deixa perplexos, confusos, e subitamente amputados do futuro. Cai a chuva, o vento desmancha a compostura árida das árvores desfolhadas — e dos tempos passados vem uma imagem perdida, um homem alto e magro, velho, agora que se aproxima, por um carreiro alagado. Traz um cajado na mão, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente, caminham animais fatigados, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. Homem e bichos avançam sob a chuva. É uma imagem comum, sem beleza, terrivelmente anónima.

Mas o homem que assim se aproxima, vago, entre cordas de chuva que parecem diluir o que na memória não se perdeu, é meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de desconforto, de ignorância. E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede mais próxima, que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. O seu rosto é talhado a enxó, fixo mas expressivo, e os olhos, pequenos e agudos, têm de vez em quando um brilho claro como se nesse momento alguma coisa tivesse sido definitivamente compreendida. Parece uma esfinge, direi eu mais tarde, quando as leituras eruditas me ajudarem nestas comparações tão abonatórias de uma fácil cultura. Hoje digo que parecia um homem.

E era um homem. Um homem igual a muitos desta terra, deste mundo, um homem sem oportunidades, talvez um Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo (quem sabe?), um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria, que não pôde ser nunca. Recordo agora aquela noite morna de verão, que dormimos, nós dois, debaixo da figueira — ouço-o ainda falar da vida que tivera, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia (as coisas que ele sabia do céu e das estrelas), do gado que o conhecia, das histórias e lendas que eram o seu cabedal da infância remota. Adormecemos tarde, enrolados na manta lobeira, que a madrugada refrescaria com certeza e o orvalho não caía só sobre as plantas.

Mas a imagem que me não larga é a do velho que caminha sob a chuva, obstinado e silencioso, como quem cumpre um destino que nada pode modificar. A não ser a morte. Mas, nesta altura, este velho, que é meu avô, ainda não sabe como vai morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia vai ter a premonição (perdoa a palavra, Jerónimo) de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, dos frutos que não voltará a comer, das sombras amigas. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória o não fizer ressurgir no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a interrogacão das estrelas. Só isto — e também o gesto que de repente me põe de pé e a urgência da ordem que enche o quarto aquecido onde escrevo.


Deste Mundo e do Outro. Crónicas, Caminho, Lisboa, 1998, 5ª edição.




segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

"Para apalpar as intimidades do mundo..." (Manoel de Barros)



O poeta brasileiro Manoel de Barros faz hoje 95 anos. Este poema é do seu O Livro das Ignorãças:


Para apalpar as intimidades do mundo é preciso
saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas
vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência
num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre 2
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A conjura (José Eduardo Agualusa)


1

Difícil dizer quando tudo começou. Mas tudo começou, é claro, muito antes desse dia dezasseis de Junho de mil novecentos e onze. Vavó Uála das Ingombotas diria que tudo começou no princípio dos tempos e que desde o princípio estava previsto que seria assim. Os acontecimentos se amarrariam uns aos outros – uns puxando os outros – através do confuso turbilhão das noites e dos dias. Infalivelmente, irremediavelmente, tudo haveria de desaguar naquela tarde vertiginosa e absurda.

É preciso, contudo, marcar data menos remota. Para o humilde autor deste relato, os casos tiveram o seu berço foi mesmo nesse ano esquecido de mil oitocentos e oitenta, aquando da chegada a Luanda de um moço benguelense, de sua graça Jerónimo Caninguili.

Vamos pois começar desde o princípio.


2

Muitos houve que estranharam aquele nome de Fraternidade posto por Caninguili à sua loja de barbeiro. Alguns reprovaram-no abertamente, e entre estes estão não só os realistas mas mesmo certos republicanos a quem assustava o atrevimento desse moço, negro e pequenino, ainda agora chegada à capital e já afrontando as regras, atraindo os desamores da autoridade.

Outros teve que acharam graça, aproveitaram com ruído a ousadia; logo se fizeram clientes e amigos certos. A simplicidade do barbeiro, a sua candura e alegria, depressa cativaram, contudo, mesmo os mais recalcitrantes, e assim é que, quatro meses após a sua chegada, já a Loja de Barbeiro e Pomadas Fraternidade se tinha transformado num pequeno clube de ideias.

Fisicamente, Caninguili devia poucas graças ao Criador. Ezequiel gostava de se referir a ele chamando-o de «o nosso sapinho capenga»; e assim resumia a feiura do designado, o seu escasso metro e sessenta e o facto de mancar da perna esquerda. Quando falava, porém, com aquele seu jeito manso de acariciar as palavras, operava-se em Caninguili uma transformação sensível e tudo seria nessa altura, menos certamente um sapo. Capenga! Razão por que, fatigado já da velha pilhéria, Alfredo Trony repreendera certa vez Ezequiel observando-lhe que sempre houvera no mundo príncipes disfarçados de sapos e sapos disfarçados de príncipes.

- É no falar que se revelam os príncipes e no coaxar que os sapos se denunciam – dissera Trony, para logo acrescentar -, pelo que ao meu amigo lhe aconselho a mais severa abstinência verbal. Não abra a boca que não seja para engolir as moscas. 

José Eduardo Agualusa

(Assim é que começa este romance do escritor angolano, publicado em  1989. Podem ler mais um pouco em Hoje Lusofonia)



quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

"Sábio é o que se contenta..." (Reis / Pessoa)



Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
                   E ao beber nem recorda
                   Que já bebeu na vida,
                   Para quem tudo é novo
                   E imarcescível sempre.

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
                   Ele sabe que a vida
                   Passa por ele e tanto
                   Corta à flor como a ele
                   De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
                   Que o seu sabor orgíaco
                   Apague o gosto às horas,
                   Como a uma voz chorando
                   O passar das bacantes.

E ele espera, contente quase e bebedor tranquilo,
                   E apenas desejando
                   Num desejo mal tido
                   Que a abominável onda
                   O não molhe tão cedo.

19/06/1914

Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa



O que são os heterónimos?



sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Por não estarem distraídos (Clarice Lispector)

 Fotografia de Я  £

POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. 

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. 

Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. 

No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. 

Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. 

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector