O seguinte artigo foi publicado nos anos 90 num jornal português já desaparecido: O Independente. "US Índex" é o título e Paulo Anunciação, naquela altura correspondente do jornal em Boston, é o autor.
US Índex
Nos Estados Unidos da América, fundamentalistas cristãs, activistas negros, conservadores, liberais, nacionalistas ou simplesmente puritanos encontram cada vez mais motivos para afastar livros das escolas e bibliotecas do país.
A liberdade. Mais do que Hollywood ou a MTV, os hamburgers do McDonalds, Walt Disney ou os atletas da NBA ou NFA, os americanos costumam escolher a velha Constituição, de 1787, como o símbolo e orgulho do país. Os seus sete artigos, mais a “Bill of rights” e as emendas aprovadas posteriormente, falam de liberdades, direitos e garantias. A primeira emenda (1791), nomeadamente, costuma ser ensinada e admirada no estrangeiro: nela se prescrevem as inatacáveis liberdades de expressão, de imprensa e de religião.
Até quando, ninguém sabe. Uma onda crescente de “novos inquisidores” tem percorrido o país, de costa a costa, pondo em causa uma das liberdades mais essenciais: ler um livro. A American Library Association, de Chicago, registou 653 casos de censura a livros em bibliotecas, livrarias e estabelecimentos de ensino durante o ano lectivo de 1992-1993. Outra organização, People for the American Way, um grupo sediado em Washington que controla, há uma década, todas as tentativas de censura nos Estados Unidos, apontou 395 atentados (41 por cento deles bem sucedidos) à “liberdade de ler e aprender”.
Este foi o pior ano de sempre, com 50 por cento de aumento no número de casos registados. Eles têm origem em fanáticos anti-racistas, liberais, fundamentalistas de esquerda e de direita, anti-sexistas, mas –sobretudo– no grupo crescente de movimentos religiosos de direita. “Há lugar para a censura, por razões de segurança ou porque um livro é manifestamente inapropriado. Temos que defender os padrões morais da nossa sociedade”, justificava-se o reverendo Robert Simonds, grande líder da National Association of Christian Education”.
Toca a queimar, rasgar, riscar e proibir. Autores como Hemingway, Shaw, Tchekhov –com a simples justificação de que ele era “russo”–, Huxley e Camus; ou a figura de “Hamlet”, porque era “um porco anti-semita”. Ninguém escapa. Os exemplos, por vezes, roçam o ridículo. Where’s Waldo? foi banido de uma biblioteca de Long Island porque uma mãe, preocupada com a educação do filho menor, descobriu nele uma figurinha que mostrava meio seio destapado. A figura –uma entre dezenas– não é maior do que uma meia unha, na dupla página de Waldo On the Beach. Edgar Rice Burroughs e o seu clássico Tarzan of the Apes não tiveram melhor sorte. Justificação: Tarzan vivia em pecado com Jane. Há quem chegue ao ponto, até, de reescrever clássicos como As Aventuras de Huckleberry Finn, por exemplo, e publicar versões “políticamente correctas” (um autor negro, Irving Wallace, editou recentemente uma versão “corrigida” com o título The Adventures of Huckleberry Finn, (Adapted). A obra, considerada por muitos como a primeira e melhor de toda a literatura norte-americana, seria “inaceitável” porque inclui vezes demais a palavra “nigger”. Outros, mais rebuscados ainda, encontraram no livro uma verdadeira (e perigosa) apologia da homossexualidade. Tudo porque num trecho do livro o escravo Jim diz para o seu amiguinho Huck: “I’ll meet you back at the raft, Huck honey”. Seus malandros.
ALGUNS DOS LIVROS CONTESTADOS OU CENSURADOS EM BIBLIOTECAS, ESCOLAS E LICEUS DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA NO ANO DE 1992-1993
The Cabbages Are Chasing The Rabbits — Censurado em Deer Ridge (Indiana) porque “pode fomentar animosidade contra os caçadores”.
Bless me, Ultima — Queixas em vários liceus em Califórnia. “O livro contém muitas referências obscenas e satánicas, além de palavrões em espanhol. Glorifica a bruxaria e a morte”.
Fahrenheit 451 — Num liceu de Califórnia foi distribuído aos estudantes com todos os “damn” e “hell” tapados com tinta negra. O tema deste livro –curiosamente– é a censura.
The Goats — Retirado de uma biblioteca escolar em Prosser (Washington) porque num dos capítulos relata-se o salvamento de uma menina nua.