Manuel Cintra - Fotografia de © Vitorino Coragem
Não conhecia Manuel Cintra, nem a sua poesia, e ontem, por acaso, soube dele e da sua recente morte em solidão no último fim de semana de maio. À procura dos seus versos dei com estes na sua página do Facebook (onde se pode ler também que «Manuel Cintra foi tradutor, jornalista, actor e encenador, sendo, no
entanto, a poesia “a sua incontornável e apaixonada estrada”.»)
e só sei que entraram logo dentro de mim.
Seja-lhe leve a terra.
PROJECTOS HUMILDES
Talvez com uma das línguas ir lamber a noite.
E já sem boca ainda dar um beijo.
Talvez numa toca oculta ser animal outra vez,
para encontrar a ternura para sempre.
Talvez deixar de ser velho, por
causa do impossível.
Talvez descobrir no vazio um sentimento cheio.
Talvez mesmo que eu seja nada, isso seja feito de tudo.
Talvez consiga fazer fintas à morte, sem gostar de futebol.
E de certeza contaminado com rigor e para sempre
com amor em vírus, ansiedade em frasco,
liberdade em prisão.
1 de Março de 2020
21h19.
FRIO
O deserto forçado é um poço tão hostil. Nunca se sabe de onde pode vir a próxima dentada.
No frio pasmado de uma rua demasiado deserta, ouvem-se latidos ritmados, e o ladrar intermitente de um cão enorme, que está numa varanda, angustiado e só.
Alguém o deixou ali há tempo demais.
Duas ruas abaixo os bares estão fechados.
Passa alguém com máscara.
Desviam-se os olhares.
O silêncio é um lugar muito frio.
20 de março de 2020
19h30
CONTÁGIO
Na rua árida, na tarde estéril,no silêncio infecto,
rente à base dos prédios tão imbecil e carcomida,
uma pequena erva com cara de poema olhou para mim.
Que miséria! Tens sílabas? Tens sentido? Uma ou outra palavra? Ainda te lembras dos afectos? Ou és só filha do virus?
E apesar do seu contorno, das suas curvas, da sua elegãncia
incomparávelmente erótica, apesar de ser só erva e só verde,
Nada respondeu.
Mesmo ela, bolas, vinha de máscara.
21 de março de 2020
17h12.
APENAS
Há poetas que morrem. Parece mesmo às vezes que ser poeta, nesta vida, é a partir de certo dia ver morrer outros poetas e pensar sempre, a partir daí: que raio é que eu fiquei aqui a fazer?
Um poeta chama muitas vezes a esses que partiram "os meus poetas", certamente numa tentativa de lhes permitir ficarem. Passa-se então o resto da vida com essa sensação triste, de ser guardião de poetas já mortos.
Mas onde o dilema não bate certo, é que os poetas não morrem. Mais do que muitos outros seres, apenas entram noutro modo de estar vivos, com morte e tudo.
Então um poeta a quem outro morreu passa a ser uma flor com um número de estames cada vez maior. E os estames são apenas lágrimas que conseguiram florir.
Como se a morte fosse apenas um jardim.
26 de Março de 2020.
11h01.
ESTADO DE EMERGÊNCIA
ao Hugo Mestre Amaro.
Foi ontem. Ou talvez antes. Ou logicamente, depois de amanhã.
Eu ia a descer a rua. Ando a coxear,mas como em vez disso,
seguro na trela da cadela, funciona como bengala, ou tripata,
e não se nota.
Havia pessoas a subir a rua. Na verdade, talvez não fossem pessoas. Acho que eram mortos, ou o que deles restava. Vinham todos de máscara, e com as cabeças embrulhadas em redes anti-sociais.
Um dia, quando tirassem a rede e a máscara, já não teriam rosto. Seriam uma espécie de bolas de golfe gigantes, sem destino nem apetite.
Na verdade, olhando melhor, nem eram pessoas, nem mortos:
apenas alguns ossos, teimando em subir a rua,só para me irritar. Houve um osso que gritou, ao chocalhar contra outro. Mas não passava de falso alarme.
Tentei sorrir. Vi que no meio desta triste confusão, também a subir a rua, vinha um beijo. Vestido a preceito, com fato chique completo.
Mas nem isso lhe valeu. Perverso como sou, decidi recebê-lo.
8 de maio de 2020.
12h52.
Manuel Cintra (1956-2020). Morreu o poeta que se mostrou imprescindível como metáfora
Nascido em 1956, em Lisboa, era filho do linguista Luís Filipe Lindley Cintra e irmão do actor e encenador Luís Miguel Cintra. Quanto a ocupações, foi-se virando para os lados que tinha por possíveis como tradutor e jornalista, actor e encenador, mas era um desesperado romântico, tinha uma pedra mal diluída no cérebro e para o que lhe dava mais era para escrever versos. Terá contado certa vez, segundo testemunhou Henrique Fialho, que a sua estreia como poeta na prestigiada colecção da Editorial Presença ficou a dever-se à sugestão de Ruy Belo, que ali viu reunida a sua obra. Do Lado de Dentro foi publicado em 1981, e seguir-se-iam mais duas dezenas de colecções de poemas, muitos deles em edições de autor ou em editoras bastante discretas, quase clandestinas. Sobre a pouca ou, às vezes até ausente, recepção da sua obra, pode agora citar-se com outro vigor um dos seus primeiros versos: “A inércia alheia preenche/ o céu como um formulário”.
Primeiro parágrafo do artigo de Diogo Vaz Pinto em Jornal i (04-06-20)
Seja-lhe leve a terra.
PROJECTOS HUMILDES
Talvez com uma das línguas ir lamber a noite.
E já sem boca ainda dar um beijo.
Talvez numa toca oculta ser animal outra vez,
para encontrar a ternura para sempre.
Talvez deixar de ser velho, por
causa do impossível.
Talvez descobrir no vazio um sentimento cheio.
Talvez mesmo que eu seja nada, isso seja feito de tudo.
Talvez consiga fazer fintas à morte, sem gostar de futebol.
E de certeza contaminado com rigor e para sempre
com amor em vírus, ansiedade em frasco,
liberdade em prisão.
1 de Março de 2020
21h19.
FRIO
O deserto forçado é um poço tão hostil. Nunca se sabe de onde pode vir a próxima dentada.
No frio pasmado de uma rua demasiado deserta, ouvem-se latidos ritmados, e o ladrar intermitente de um cão enorme, que está numa varanda, angustiado e só.
Alguém o deixou ali há tempo demais.
Duas ruas abaixo os bares estão fechados.
Passa alguém com máscara.
Desviam-se os olhares.
O silêncio é um lugar muito frio.
20 de março de 2020
19h30
CONTÁGIO
Na rua árida, na tarde estéril,no silêncio infecto,
rente à base dos prédios tão imbecil e carcomida,
uma pequena erva com cara de poema olhou para mim.
Que miséria! Tens sílabas? Tens sentido? Uma ou outra palavra? Ainda te lembras dos afectos? Ou és só filha do virus?
E apesar do seu contorno, das suas curvas, da sua elegãncia
incomparávelmente erótica, apesar de ser só erva e só verde,
Nada respondeu.
Mesmo ela, bolas, vinha de máscara.
21 de março de 2020
17h12.
APENAS
Há poetas que morrem. Parece mesmo às vezes que ser poeta, nesta vida, é a partir de certo dia ver morrer outros poetas e pensar sempre, a partir daí: que raio é que eu fiquei aqui a fazer?
Um poeta chama muitas vezes a esses que partiram "os meus poetas", certamente numa tentativa de lhes permitir ficarem. Passa-se então o resto da vida com essa sensação triste, de ser guardião de poetas já mortos.
Mas onde o dilema não bate certo, é que os poetas não morrem. Mais do que muitos outros seres, apenas entram noutro modo de estar vivos, com morte e tudo.
Então um poeta a quem outro morreu passa a ser uma flor com um número de estames cada vez maior. E os estames são apenas lágrimas que conseguiram florir.
Como se a morte fosse apenas um jardim.
26 de Março de 2020.
11h01.
ESTADO DE EMERGÊNCIA
ao Hugo Mestre Amaro.
Foi ontem. Ou talvez antes. Ou logicamente, depois de amanhã.
Eu ia a descer a rua. Ando a coxear,mas como em vez disso,
seguro na trela da cadela, funciona como bengala, ou tripata,
e não se nota.
Havia pessoas a subir a rua. Na verdade, talvez não fossem pessoas. Acho que eram mortos, ou o que deles restava. Vinham todos de máscara, e com as cabeças embrulhadas em redes anti-sociais.
Um dia, quando tirassem a rede e a máscara, já não teriam rosto. Seriam uma espécie de bolas de golfe gigantes, sem destino nem apetite.
Na verdade, olhando melhor, nem eram pessoas, nem mortos:
apenas alguns ossos, teimando em subir a rua,só para me irritar. Houve um osso que gritou, ao chocalhar contra outro. Mas não passava de falso alarme.
Tentei sorrir. Vi que no meio desta triste confusão, também a subir a rua, vinha um beijo. Vestido a preceito, com fato chique completo.
Mas nem isso lhe valeu. Perverso como sou, decidi recebê-lo.
8 de maio de 2020.
12h52.
Manuel Cintra (1956-2020). Morreu o poeta que se mostrou imprescindível como metáfora
Nascido em 1956, em Lisboa, era filho do linguista Luís Filipe Lindley Cintra e irmão do actor e encenador Luís Miguel Cintra. Quanto a ocupações, foi-se virando para os lados que tinha por possíveis como tradutor e jornalista, actor e encenador, mas era um desesperado romântico, tinha uma pedra mal diluída no cérebro e para o que lhe dava mais era para escrever versos. Terá contado certa vez, segundo testemunhou Henrique Fialho, que a sua estreia como poeta na prestigiada colecção da Editorial Presença ficou a dever-se à sugestão de Ruy Belo, que ali viu reunida a sua obra. Do Lado de Dentro foi publicado em 1981, e seguir-se-iam mais duas dezenas de colecções de poemas, muitos deles em edições de autor ou em editoras bastante discretas, quase clandestinas. Sobre a pouca ou, às vezes até ausente, recepção da sua obra, pode agora citar-se com outro vigor um dos seus primeiros versos: “A inércia alheia preenche/ o céu como um formulário”.
Primeiro parágrafo do artigo de Diogo Vaz Pinto em Jornal i (04-06-20)
V. também antologia do esquecimento, de Henrique Manuel Bento Fialho.