quarta-feira, 10 de junho de 2020

Jorge de Sena - Camões dirige-se aos seus contemporáneos

Luís Vaz de Camões, 1907, de José Malhoa



CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
as idéias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E, mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Assis, 11/6/1961

Jorge de Sena 


Camões Dirige-se aos Seus Contemporâneos e Outros Textos  (1973), plaquette.



Jorge de Sena