Fotografia de Ges mar
Diário da quarentena #6
Pensei que talvez fosse boa ideia contemplar o Atlântico depois de tantos dias fechados em casa. Temendo desrespeitar as regras do estado de emergência, ligámos para a PSP a indagar sobre direitos no usufruto de miradouros e belvederes. O senhor agente deve ter-nos julgado tontos, rematando prontamente a conversa com uma nega tonitruante. Somos um ajuntamento. Ainda pensei fintar a classificação distribuindo o mal por freguesias, que é como quem diz dois em cada viatura, mas logo a consciência pesou tanto sobre os ombros que a cervical voltou a resmungar. A quem mais ouvi dizer que este país precisava de um Salazar em cada esquina ouço agora protestos e divirto-me com as desculpas ensaiadas para fintar os mandamentos da autoridade. Acabámos a ver passar navios da varanda cá de casa. Não posso dizer que se esteja mal, apesar de ao fim de tantos dias confinados o ajuntamento começar a parecer uma multidão. Cabe a cada um a missão de tornar o espaço amplo respeitando os tempos do outro, imprimindo ritmos ao dia que não os desvirtuem da normalidade outrora contestada. «Se tivesse que viver um filme, ao menos que fosse um musical», desabafa a Ana, antes de eu enfiar os auscultadores nos ouvidos para escutar repetidamente a “Polonesa Heróica” de Chopin. Arruinada a pouca reputação que me restava com parvoíces nas redes sociais, socorro-me de um pianista polaco para recuperar alguma consideração. Leio na Wikipédia, inescrutável fonte de erudição, que o tal de Chopin morreu rodeado de amigos. Eu também estou rodeado de amigos, uns espalhados ao longo das paredes de casa, outros nas estantes atoladas de livros, e ainda aqueles que sem se fazerem notar neste modo material de estar vão dando conta de si rumorejando o desejo de um reencontro. Quando isto passar, dizem. E dentro de mim despontam personagens de quando e como isto era antes de ter começado a ser, o psicólogo de Arnaldo aconselhando-lhe vida própria, que o trabalho não podia substituir a vida, era preciso espairecer, estirar as pernas sobre a relva dos parques, desfrutar do convívio numa esplanada em tarde soalheira. E Arnaldo a olhar para a lista interminável de números no telemóvel sem encontrar um a quem achasse valer a pena ligar, hesitando, adiando, protelando para épocas de folguedo um simples “como tens passado?”. E o psicólogo a pensar na falta que lhe faz Arnaldo. Não se está mal na varanda, a espreitar a roupa dos vizinhos nos estendais e a contar gaivotas no céu. Há dias pareceu-me ter avistado um milhafre a pairar nas alturas, enquanto cá em baixo um láparo se ocultava entre as piteiras. Barrico-me na varanda como um gato a mirar melros, pintassilgos, pardais, pombos, rolas… Bem queria encontrar lesmas, Rita, mas para tanto basto eu.
Henrique Manuel Bento Fialho
No seu blogue antologia do esquecimento (26 de março de 2020)
Pensei que talvez fosse boa ideia contemplar o Atlântico depois de tantos dias fechados em casa. Temendo desrespeitar as regras do estado de emergência, ligámos para a PSP a indagar sobre direitos no usufruto de miradouros e belvederes. O senhor agente deve ter-nos julgado tontos, rematando prontamente a conversa com uma nega tonitruante. Somos um ajuntamento. Ainda pensei fintar a classificação distribuindo o mal por freguesias, que é como quem diz dois em cada viatura, mas logo a consciência pesou tanto sobre os ombros que a cervical voltou a resmungar. A quem mais ouvi dizer que este país precisava de um Salazar em cada esquina ouço agora protestos e divirto-me com as desculpas ensaiadas para fintar os mandamentos da autoridade. Acabámos a ver passar navios da varanda cá de casa. Não posso dizer que se esteja mal, apesar de ao fim de tantos dias confinados o ajuntamento começar a parecer uma multidão. Cabe a cada um a missão de tornar o espaço amplo respeitando os tempos do outro, imprimindo ritmos ao dia que não os desvirtuem da normalidade outrora contestada. «Se tivesse que viver um filme, ao menos que fosse um musical», desabafa a Ana, antes de eu enfiar os auscultadores nos ouvidos para escutar repetidamente a “Polonesa Heróica” de Chopin. Arruinada a pouca reputação que me restava com parvoíces nas redes sociais, socorro-me de um pianista polaco para recuperar alguma consideração. Leio na Wikipédia, inescrutável fonte de erudição, que o tal de Chopin morreu rodeado de amigos. Eu também estou rodeado de amigos, uns espalhados ao longo das paredes de casa, outros nas estantes atoladas de livros, e ainda aqueles que sem se fazerem notar neste modo material de estar vão dando conta de si rumorejando o desejo de um reencontro. Quando isto passar, dizem. E dentro de mim despontam personagens de quando e como isto era antes de ter começado a ser, o psicólogo de Arnaldo aconselhando-lhe vida própria, que o trabalho não podia substituir a vida, era preciso espairecer, estirar as pernas sobre a relva dos parques, desfrutar do convívio numa esplanada em tarde soalheira. E Arnaldo a olhar para a lista interminável de números no telemóvel sem encontrar um a quem achasse valer a pena ligar, hesitando, adiando, protelando para épocas de folguedo um simples “como tens passado?”. E o psicólogo a pensar na falta que lhe faz Arnaldo. Não se está mal na varanda, a espreitar a roupa dos vizinhos nos estendais e a contar gaivotas no céu. Há dias pareceu-me ter avistado um milhafre a pairar nas alturas, enquanto cá em baixo um láparo se ocultava entre as piteiras. Barrico-me na varanda como um gato a mirar melros, pintassilgos, pardais, pombos, rolas… Bem queria encontrar lesmas, Rita, mas para tanto basto eu.
Henrique Manuel Bento Fialho
No seu blogue antologia do esquecimento (26 de março de 2020)