quinta-feira, 26 de março de 2020

Sobreviventes: João da Candonga



SOBREVIVENTES: JOÃO DA CANDONGA

Noutros tempos, entre a Guarda Fiscal e os Carabineiros ficava um Guadiana sereno, estrada de contrabandistas e engajadores como o João Afonso. Foi-se a fronteira e o João da Candonga trafica agora, do passado para o presente, memórias de prisões e noites em fuga, dos tempos da guerra de Espanha para uma amena conversa à beira do mesmo rio que o viu contrabandista.

Era o dia a pôr-se e o João Afonso mais meia dúzia de homens agachavam-se às sombras, descendo aos cerros para buscar a mercadoria que naquela noite passava para o outro lado. Café e tabaco, pois, mesmo em tempos de guerra civil, os espanhóis não abdicavam dos vícios, mas também roupa e até pregos para os sapatos eram guardados nas mochilas. Os olhos de um vigilante seguiam a rotina de passos dos soldados da Guarda Fiscal e dos Carabineiros do outro lado da fronteira, enquanto homens despidos esperavam um sinal para se lançar ao Guadiana. Depois do sinal, a aldeia ficava suspensa no silêncio da noite, ondulado por braçadas nervosas e dentes cerrados a puxar cargas proibidas. Dentro de oleados impermeáveis. Depois do rio, a serra ofegante, por entre veredas de estevas, peneiradas pela polícia, de onde um ou outro contrabandista acabava por ir acordar atrás das grades de uma cadeia espanhola. Desde os 25 anos que o João fazia da linha da fronteira o seu carreiro de sobrevivência, aprendendo as manhas de uma profissão que tornava as necessidades dos espanhóis o sustento dos portugueses, do lado de cá do rio. Começou por uns biscates ao fim-de-semana, entremeados pelo trabalho na estrada, então em construção. Com o tempo, passou também a seguir essa profissão que unia a aldeia de Monte das Laranjeiras nas noites em que os sonos se suspendiam na expectativa de ouvir um malfadado tiro certeiro. Ficaram por lá muitos, mas João e companhia sempre se desvencilharam de problemas maiores, sabendo que o silêncio dos guardas fiscais estava à venda por 50 escudos à carga. Já com os carabineiros, tinha-se de compensar os subornos com a imaginação, saindo do rio de costas, de modo a que as pegadas enganassem os espanhóis, ou trocando-lhes as voltas, passando sempre por caminhos diferentes. Depois do rio, o caminho do contrabando continuava até aldeias como Villa Blanca, algumas a mais de dois dias de caminhada. Do lado de lá da fronteira líquida do Guadiana e espinhosa das veredas, o João tinha um irmão que o ajudava nas lides da candonga, guardando a mercadoria enquanto a vendiam em onças ou a quilo aos espanhóis. Um negócio que chegava a valer quatro contos por carga numa altura em que o salário médio andava à volta de cem escudos por mês.

“Um dia estava a vender onças de tabaco a um estabelecimento do outro lado quando entrou um guarda civil e viu o que eu estava a vender. Perguntou ao comerciante: ‘Quem é que te vendeu esse tabaco?’ ‘Foi o português’, respondeu-lhe o outro. Fomos para a esquadra, mas o cabo era bom, de tal modo que me mandou ir sozinho buscar o resto da mercadoria... ainda hoje está lá à minha espera.”

Homem do mercado negro dos cafés e das artimanhas, não conseguiu escapar-se a ser peso um dia, quando alguém o encontrou escondido numa casa, acompanhado pela mercadoria que lhe dava riqueza e, desa vez, lhe deu desgraça. Dois meses e meio de prisão, algures em Huelva, à mistura com mais contrabandistas e muitos espanhóis acusados de robarem leitões, “tal era a miséria”, remata este traficante, em jeito de salvador de uma pátria em guerra, onde tudo escasseava. Olhos vivaços, entrincheirados por detrás das olheiras espessas, João Afonso negociava só bens escassos, de tal modo que, quando o tabaco faltou em Portugal, aí estava ele a trazê-lo para a sua aldeia, assim como as “águas-de-cheiro” espanholas, contrabandeadas para perfumarem a miséria suada dos portugueses. A mercadoria comprava-se em Mértola e ocultava-se algures nos montes, para se fugir às rusgas com que a polícia invadia as casas da aldeia. O João, homem levado da breca, não tinha assim tanto medo dos guardas, mesmo quando um dia se viu apanhando por um cabo da Guarda Fiscal enquanto acartava um saco de café. “Deixe lá o saco e vá-se embora que eu finjo que não vi”, disse o guarda, mas o contrabandista defendia o sustento e adiantou-se: “Se não pagar, não leva nada.”

“Uma vez estava numa casa, escondido com mais gente nova, que me ajudava a trazer a carga para a fronteira, e lá fora estava um jornalista [sic] a vender jornais (a farda do homem era parecida com a da polícia), o jornalista viu-os e pregou um grito: “Periódicos para hoy!”. Eles entenderam “hay que apanhá-los hoy”. Os novatos estavam cheios de medo.

Agora, por aqui, o contrabando já não dá sustos nem empregos a ninguém. Foi-se a profissão com a linha rígida da fronteira que o Guadiana marcava, há coisa de 10, 12 anos. Agora o rio é o caminho do tráfico de droga, entre o Norte de África, Portugal e Espanha. “Já não andam agora cá com mochilas às costas e ganham uns valentes mil contos”, comenta o João, herói de contrabando, sublinhando que o fazia para matar a fome dele e a dos outros, ao contrário do tráfico da droga. E mais uma vez João salta para o rio, num olhar que se afunda em histórias antigas, contadas ainda com algum calejado receio de contrabandista.


Texto: José Miguel Sardo


(Magazine Pública, 2 Junho 1996)



"O antigo contrabandista Inácio Vitória e o ex-guarda José Rosado são hoje bons amigos", fotografia de António Carrapato num artigo do jornal Público (14-06-2014): "Um encontro com um contrabandista e um guarda-fiscal já é turismo"