SANT'ANA DO MAR
Não existe, é um arquipélago imaginário ali para o Atlântico, a partir do qual o professor Eurico Lemos Pires propõe uma utopia. Gosto imediatamente da ideia de alguém, depois dos oitenta anos de idade, escrever o seu primeiro romance, e gosto que aconteça para corresponder a uma espécie de apelo, ou prova de sapiência maior, para a construção de uma sociedade melhor, mais justa. Não estamos nada em tempo de acreditar seja no que for, sobretudo no que disser respeito a acreditarmos uns nos outros, mas também já me passa pela cabeça que um destes dias alguém vai ser capaz de mobilizar a maioria para uma decência nunca vista. Um Gandhi ou um Mandela elevados à última potência. A utopia, afinal, parece ser o único caminho viável para a humanidade, tudo o resto, da razão ao coração, já falhou demasiado. A utopia é a única espécie de empreitada que, por maior ou menor consciência, pode mobilizar o colectivo. No condado de Sant’Ana do Mar a cidadania é obrigatória. A cada indivíduo corresponde uma representatividade concreta que o impede de se abster da participação e, em última análise, da consciência. Eurico Lemos Pires é muito empenhado na passagem desta ideia-chave, que acaba por ser a tese ideológica que justifica todo o propósito do livro. Um apelo a uma certa obrigatoriedade da opinião e sua divulgação, a obrigatoriedade do associativismo e sua elevação a modo enformador da sociedade. Importa que se alcance um poder poliárquico, algo que propenda para um certo governo virtuoso, capaz de se justificar em cada gesto ou decisão, efectivamente legitimado, legitimado a todo o tempo.
Claro que subjaz a esta ficção uma crítica às estruturas que hoje encontramos na realidade europeia e que, ditas democráticas, não representam absolutamente os cidadãos e não são por estes reconhecidos nem cabalmente entendidos. Este romance é uma proposta de mudança de paradigma. Mais do que procurar qualidades literárias, ele procura inquietar, provocar, para que sejamos deslocados da inoperância ou do conforto de onde se perpetuam os vícios e as injustiças.
O professor Eurico dizia-me que haveria de publicar as suas ideias num artigo em Inglaterra. Precisava muito de deixar expressas algumas ideias que pudessem realmente interferir nos modelos aplicados no futuro. Não vai perder nada e também não ganhará. Terá apenas a satisfação de se expressar, como quem, exactamente, procura a participação, essa qualidade de se representar a si mesmo e contar. O professor sorria como com a expectativa de uma malandrice. Quando sabemos algo que desarruma os poderes instituídos, sentimo-nos malandros. A coragem de o denunciar traz essa satisfação irresistível perante a qual revivemos. Depois, o professor Eurico explicava-me que casara há sessenta anos e que namorara mais sete. Estava preocupado com a esposa. Se não soubesse da esposa, também já pouco importava saber das outras coisas todas. A sociedade, na verdade, faz-se dessas prioridades. O amor tem de estar sempre em primeiro lugar. Ele não dizia amor, dizia: se não souber da minha mulher vou embora, não sei como, mas vou para casa cuidar dela.
Na fisiatria do Hospital de Santo António as utopias para o mundo são todas atropeladas por estas realidades mais simples. A demora da visita, ou a ausência da visita certa, descompõe tudo. Volta-se ao início. Primeiro, há que salvar o coração, que parece sempre mais difícil do que salvar o mundo.
Entretanto, o professor Eurico teve alta e estará em casa servido de afectos. Fico, por isso, à espera da notícia da publicação do seu artigo, a ver se esta Europa bafienta se regenera. Aos poucos, com sonhos de bons homens, excelentes homens que, no acumulado do pensamento, procuram ensinar que valeria a pena termos feito tudo de outra forma. Afinal, reconhecermos o lugar de cada um é bem possível e não há modo de isto ser pacificamente viável se não for assim.
Quando chegar aos oitenta e seis anos e me levarem a curar um braço ou uma perna, quero ser corajoso o suficiente para me denunciar. Se estiver certo de saber melhor do que sempre fiz, quero sonhar com algo maior, ainda que necessariamente seja algo que se pensa para depois do meu tempo, para depois do meu testemunho. Como um pensamento que, profundamente generoso, deixámos à consideração de quem também está de boa fé.
valter hugo mãe
Crónica publicada na Revista 2, edição de 9 Fevereiro de 2014.
Não existe, é um arquipélago imaginário ali para o Atlântico, a partir do qual o professor Eurico Lemos Pires propõe uma utopia. Gosto imediatamente da ideia de alguém, depois dos oitenta anos de idade, escrever o seu primeiro romance, e gosto que aconteça para corresponder a uma espécie de apelo, ou prova de sapiência maior, para a construção de uma sociedade melhor, mais justa. Não estamos nada em tempo de acreditar seja no que for, sobretudo no que disser respeito a acreditarmos uns nos outros, mas também já me passa pela cabeça que um destes dias alguém vai ser capaz de mobilizar a maioria para uma decência nunca vista. Um Gandhi ou um Mandela elevados à última potência. A utopia, afinal, parece ser o único caminho viável para a humanidade, tudo o resto, da razão ao coração, já falhou demasiado. A utopia é a única espécie de empreitada que, por maior ou menor consciência, pode mobilizar o colectivo. No condado de Sant’Ana do Mar a cidadania é obrigatória. A cada indivíduo corresponde uma representatividade concreta que o impede de se abster da participação e, em última análise, da consciência. Eurico Lemos Pires é muito empenhado na passagem desta ideia-chave, que acaba por ser a tese ideológica que justifica todo o propósito do livro. Um apelo a uma certa obrigatoriedade da opinião e sua divulgação, a obrigatoriedade do associativismo e sua elevação a modo enformador da sociedade. Importa que se alcance um poder poliárquico, algo que propenda para um certo governo virtuoso, capaz de se justificar em cada gesto ou decisão, efectivamente legitimado, legitimado a todo o tempo.
Claro que subjaz a esta ficção uma crítica às estruturas que hoje encontramos na realidade europeia e que, ditas democráticas, não representam absolutamente os cidadãos e não são por estes reconhecidos nem cabalmente entendidos. Este romance é uma proposta de mudança de paradigma. Mais do que procurar qualidades literárias, ele procura inquietar, provocar, para que sejamos deslocados da inoperância ou do conforto de onde se perpetuam os vícios e as injustiças.
O professor Eurico dizia-me que haveria de publicar as suas ideias num artigo em Inglaterra. Precisava muito de deixar expressas algumas ideias que pudessem realmente interferir nos modelos aplicados no futuro. Não vai perder nada e também não ganhará. Terá apenas a satisfação de se expressar, como quem, exactamente, procura a participação, essa qualidade de se representar a si mesmo e contar. O professor sorria como com a expectativa de uma malandrice. Quando sabemos algo que desarruma os poderes instituídos, sentimo-nos malandros. A coragem de o denunciar traz essa satisfação irresistível perante a qual revivemos. Depois, o professor Eurico explicava-me que casara há sessenta anos e que namorara mais sete. Estava preocupado com a esposa. Se não soubesse da esposa, também já pouco importava saber das outras coisas todas. A sociedade, na verdade, faz-se dessas prioridades. O amor tem de estar sempre em primeiro lugar. Ele não dizia amor, dizia: se não souber da minha mulher vou embora, não sei como, mas vou para casa cuidar dela.
Na fisiatria do Hospital de Santo António as utopias para o mundo são todas atropeladas por estas realidades mais simples. A demora da visita, ou a ausência da visita certa, descompõe tudo. Volta-se ao início. Primeiro, há que salvar o coração, que parece sempre mais difícil do que salvar o mundo.
Entretanto, o professor Eurico teve alta e estará em casa servido de afectos. Fico, por isso, à espera da notícia da publicação do seu artigo, a ver se esta Europa bafienta se regenera. Aos poucos, com sonhos de bons homens, excelentes homens que, no acumulado do pensamento, procuram ensinar que valeria a pena termos feito tudo de outra forma. Afinal, reconhecermos o lugar de cada um é bem possível e não há modo de isto ser pacificamente viável se não for assim.
Quando chegar aos oitenta e seis anos e me levarem a curar um braço ou uma perna, quero ser corajoso o suficiente para me denunciar. Se estiver certo de saber melhor do que sempre fiz, quero sonhar com algo maior, ainda que necessariamente seja algo que se pensa para depois do meu tempo, para depois do meu testemunho. Como um pensamento que, profundamente generoso, deixámos à consideração de quem também está de boa fé.
valter hugo mãe
Crónica publicada na Revista 2, edição de 9 Fevereiro de 2014.