Fotografia de Nicole Novak
Medo da Eternidade
Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.
Clarice Lispector
Medo da Eternidade é uma crônica escrita por Clarice Lispector, e pode-se dizer que é uma reflexão a respeito de um dos maiores medos humanos, que é a morte, a eternidade. Muitas pessoas não gostam de conversar a respeito ou sentem medo por não saberem ao certo o que lhes espera após esta vida. Clarice faz com que o leitor reflita a respeito da eternidade, algo incompreensível para a mentalidade finita do ser humano.
A crônica trata a eternidade de uma maneira bem simples, talvez até simplória, comparando-a a um “chicle”, uma bala que, segundo a história, não acaba nunca. O encanto da história se dá no fato de que é contada sob o olhar de uma criança, que descreve seus pensamentos e sentimentos ao experimentar aquele chicle que não acaba nunca. A inocência e pequenez da criança diante de um mistério tão grande como este é uma alusão à pequenez e ingenuidade do ser humano diante do mistério da eternidade, incompreensível a mentes tão limitadas.
A menina é apresentada ao tal “chicle” pela sua irmã, que lhe presenteia com um e lhe dá as instruções de como ela deve proceder, tomando cuidado para não perdê-lo, pois seria a única forma de não permanecer com ele eternamente. Primeiramente a menina se assusta com tal engenhosidade, envolvida pela ideia de uma bala que duraria para sempre. Ao mastigá-la, porém, a criança se sente desconfortável, nervosa, e faz uma reflexão altamente adulta dizendo que não é capaz de suportar o peso da eternidade, e que não está à altura da eternidade. Para resolver o problema, a menina finge que deixou cair o chicle no chão sem querer, e após dar as explicações à sua irmã, se sente aliviada por não ter mais que carregar o peso da eternidade consigo.
Se trata de uma crônica típica, que utiliza uma situação cotidiana para abordar um tema reflexivo. Ao analisar a situação, o leitor é levado para dentro da mente da menina, vendo seu espanto e estranhamento diante de algo novo e desconhecido, e a partir daí compara a situação vivida por ela consigo mesmo. No início da história a personagem parece ser inocente, mas ao longo desta vai mudando, a ponto de, ao final, tomar a atitude de ignorar a eternidade, por se enxergar incapaz de lidar com ela. A crônica ressalta a fragilidade humana e leva à reflexão. A personagem tem profundidade psicológica que é revelada a partir dos pensamentos que são relatados na história.
A narração é contada em primeira pessoa (narrador-personagem), semelhante a um relato de memórias, já que a pessoa que viveu a história não é mais criança quando faz o relato. A visão é unilateral e subjetiva, limitando-se as percepções da personagem que conta a história. O tempo se dá com base no espaço que é o caminho entre a sua casa e a escola, porém a certo ponto da narrativa o tempo deixa de ser cronológico e passa a ser psicológico, pois a personagem se detém em descrever seus pensamentos e sentimentos.
Ana Paulo Araujo
(infoescola.com)
Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.
Clarice Lispector
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Medo da Eternidade é uma crônica escrita por Clarice Lispector, e pode-se dizer que é uma reflexão a respeito de um dos maiores medos humanos, que é a morte, a eternidade. Muitas pessoas não gostam de conversar a respeito ou sentem medo por não saberem ao certo o que lhes espera após esta vida. Clarice faz com que o leitor reflita a respeito da eternidade, algo incompreensível para a mentalidade finita do ser humano.
A crônica trata a eternidade de uma maneira bem simples, talvez até simplória, comparando-a a um “chicle”, uma bala que, segundo a história, não acaba nunca. O encanto da história se dá no fato de que é contada sob o olhar de uma criança, que descreve seus pensamentos e sentimentos ao experimentar aquele chicle que não acaba nunca. A inocência e pequenez da criança diante de um mistério tão grande como este é uma alusão à pequenez e ingenuidade do ser humano diante do mistério da eternidade, incompreensível a mentes tão limitadas.
A menina é apresentada ao tal “chicle” pela sua irmã, que lhe presenteia com um e lhe dá as instruções de como ela deve proceder, tomando cuidado para não perdê-lo, pois seria a única forma de não permanecer com ele eternamente. Primeiramente a menina se assusta com tal engenhosidade, envolvida pela ideia de uma bala que duraria para sempre. Ao mastigá-la, porém, a criança se sente desconfortável, nervosa, e faz uma reflexão altamente adulta dizendo que não é capaz de suportar o peso da eternidade, e que não está à altura da eternidade. Para resolver o problema, a menina finge que deixou cair o chicle no chão sem querer, e após dar as explicações à sua irmã, se sente aliviada por não ter mais que carregar o peso da eternidade consigo.
Se trata de uma crônica típica, que utiliza uma situação cotidiana para abordar um tema reflexivo. Ao analisar a situação, o leitor é levado para dentro da mente da menina, vendo seu espanto e estranhamento diante de algo novo e desconhecido, e a partir daí compara a situação vivida por ela consigo mesmo. No início da história a personagem parece ser inocente, mas ao longo desta vai mudando, a ponto de, ao final, tomar a atitude de ignorar a eternidade, por se enxergar incapaz de lidar com ela. A crônica ressalta a fragilidade humana e leva à reflexão. A personagem tem profundidade psicológica que é revelada a partir dos pensamentos que são relatados na história.
A narração é contada em primeira pessoa (narrador-personagem), semelhante a um relato de memórias, já que a pessoa que viveu a história não é mais criança quando faz o relato. A visão é unilateral e subjetiva, limitando-se as percepções da personagem que conta a história. O tempo se dá com base no espaço que é o caminho entre a sua casa e a escola, porém a certo ponto da narrativa o tempo deixa de ser cronológico e passa a ser psicológico, pois a personagem se detém em descrever seus pensamentos e sentimentos.
Ana Paulo Araujo
(infoescola.com)