segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Manifesto pelo direito de não gostar do natal (Ruth Manus)



Manifesto pelo direito de não gostar do natal

O natal acabou por virar uma data muito mais de organização e de planejamento do que de afeto. Sim, é bom estar com a família. Mas prefiro fazer isso num domingo normal, sem prazos nem presentes. 


Já ouvi gente dizer que não gosta de cerveja. Ouvi outros dizerem que não gostam de conviver com crianças. Ou que não gostam de praia. De Game of Thrones. De Carlos Drummond de Andrade. De bacon.

Para mim, qualquer uma dessas pessoas não está no seu juízo perfeito. Não acho minimamente normal alguém não gostar dessas maravilhas. Mas quando as ouvi dizer essas aberrações, o máximo que fiz foi dizer “Jura? Tem certeza? Que coisa.”. Não as condenei, nem passei horas tentando lhes dizer que eles estavam errados. Aliás, eu detesto esse tipo de persuasão.

Mas parece haver uma frase proibida, uma frase terrível, que jamais deve ser dita por qualquer ser humano: “eu não gosto de natal”. Dizer que não gosta de natal soa como dizer que não gosta da própria família, que não gosta de comida boa, que não gosta de ganhar presentes ou que não gosta de Jesus Cristo. Nada poderia ser mais terrível do que isso.

Na verdade, uma coisa não tem nada a ver com outra. Eu sou maluca de amores pela minha família. Adoro comida boa e presentes. Tenho um baita respeito pela história de Jesus. Mas eu detesto o natal. Simples assim. Poderia ser diferente, se o natal fosse realmente como deveria ser. Mas do jeito que é, eu simplesmente não consigo gostar dessa data.

Tudo começa com essa dinâmica doentia dos presentes. Como eu mencionei no ano passado, acho que nada pode ser mais antagônico com a memória de Jesus Cristo do que os shopping centers lotados, as brigas por vagas de estacionamentos, as crianças fazendo longas listas de presentes, a insanidade das compras e o tormento dos pacotes. Nada disso faz qualquer sentido.

Soma-se a isso o tormento da logística. Começam conversas entre os casais que são do tipo “passamos o 24 com a sua família e os 25 com a minha-? mas ano passada não foi o 25 com a sua?- temos que trocar esse ano?- sim, porque meu irmão vai vir de Macau- mas ele vai passar o 24 com a família da sogra dele ou com a sua?- não sei, preciso ver- ok, mas e se levássemos seus pais na festa da minha família?- mas o que eu faço com a minha irmã?- fala para ela ir- com as crianças? eles são 6- verdade, não cabe- então?- e agora?- não sei- não sei”.

Tudo é coroado pelos excessos. Excesso de comida, excesso de programas, excesso de gente, excesso de trânsito, excesso de embalagens, excesso de músicas natalinas. O natal deveria ser algo simples, por uma questão de lógica e não essa insanidade da fartura generalizada.

O natal acabou por virar uma data muito mais de organização e de planejamento do que de afeto. Sim, é bom estar com a família. Mas prefiro fazer isso num domingo normal, sem prazos nem presentes, do que nessa estrutura caótica. Honestamente, não consigo gostar desse natal. Gosto das pessoas, não gosto da dinâmica.

No fim das contas, acho que tem muita gente que acaba fazendo uma certa contagem regressiva para que janeiro chegue logo e que tudo isso já tenha passado. Desculpem o mau jeito, mas eu não gosto do natal. Pelo menos não desse natal. E, no fundo, acho que muita gente que pensa da mesma forma. Só que não fica bem dizer isso, né? Paciência. Agora, já disse. Feliz natal a todos.

Ruth Manus 


Publicado em Observador (23-12-2017)