quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

"Há o risco de se perder a língua portuguesa em Cabo Verde" (Germano Almeida)




"Há o risco de se perder a língua portuguesa em Cabo Verde"

"Eu quero contribuir para as pessoas tomarem consciência que a lingua portuguesa é tanto vossa como nossa. Temos de assumir como património nosso que temos de valorizar e de vender".

Germano Almeida, escritor cabo-verdiano galardoado com o Prémio Camões este ano, cresceu numa casa onde o pai falava em português e a mãe falava crioulo. Mas não encontra essa facilidade de expressão nas duas línguas, que sempre teve na sua família, no seu país natal."A sociedade cabo Verdiana decorre em crioulo". O escritor esperava que o surto do crioulo abrandasse após a independência mas tal não aconteceu. Por isso diz que a língua portuguesa está em risco em Cabo Verde mas que há consciência do perigo. "O português já está a ser ensinado nas escolas como língua segunda".

Sobre o seu último livro "O Fiel Defunto", mais uma história contada com humor em torno dos costumes das ilhas, o personagem do escritor que é assassinado, Miguel Lopes Macieira, é inspirado nele próprio. "Pensei em mim próprio, se não brinco comigo não tenho o direito de brincar com os outros".

Como foi celebrado o prémio Camões em Cabo Verde, nas ilhas, como foi a festa?

Muito bem, eu próprio fiquei admirado com a maneira como as pessoas em geral receberam o prémio. Porque nós cabo-verdianos temos essa mania: tudo o que de bom acontece a um cabo-verdiano acontece a Cabo Verde. As pessoas fartaram-se de cumprimentar dizendo: "o dinheiro pode ser para ti mas o prémio é nosso".

É muito lido em Cabo Verde, também pelos jovens ou é mais lido fora de Cabo Verde?

Sou bastante lido em Cabo Verde também e nem sempre tão vendido como sou lido porque em Cabo Verde há muito a tradição de troca de livros, empréstimos, alguém compra um livro, acaba de ler, empresta a outra pessoa e o livro vai passando d mão em mão e às vezes esquece-se de quem é o livro. O livro tem valor em si mas não tem, digamos, um valor económico. Eu vejo isto pela quantidade de jovens que falam comigo mas acho interessante que quando me perguntam:"Você é Germano Almeida?"Sou". "Ah, pensei que fosse morto". Mas porquê,? claro que estão a falar em crioulo e eu estou a traduzir em português. "Eu estudei no liceu e li os seus livros na escola. Pensavam que eu era colega do Baltasar [Lopes da Silva], do Aurélio Gonçalves e companhia, que são os doutores que eles estudam no liceu.

E eles quando falam consigo, os jovens, as pessoas das ilhas, falam sobretudo em crioulo?

A língua, a vida em Cabo Verde decorre em crioulo

Está-se a perder a língua portuguesa ou não há esse risco?

Há. Antes da independência era praticamente proibido falar crioulo. No liceu não se podia falar crioulo e mesmo na vida comum desencorajava-se. Bem, com a independência houve um surto de crioulo, todo o mundo já falava crioulo. Eu sinceramente esperava que abrandasse. Não, não abrandou, antes pelo contrário intensificou-se. Eu vejo pela minha filha que vai fazer agora 30 anos, cresceu numa casa onde se fala crioulo, tanto eu como a minha mulher falamos pouco crioulo, falamos crioulo obviamente, mas ela com a empregada e com os vizinhos fala sempre crioulo. E nós nunca tentamos impedir que falasse a língua que quisesse falar por uma razão muito simples: eu tenho a experiência pessoal da minha família. O facto de o meu pai falar sempre português e a minha mãe falar sempre o crioulo, nunca nos terem imposto falar uma ou outra língua, permitiu que desenvolvessemos livremente. Eu digo isto porque parentes meus que foram obrigados a falar português ficaram a odiar a língua. Mas há muitas famílias que nunca ouviram ou não estavam habituadas a ouvir falar o português. E Cabo Verde não é de facto uma sociedade bilingue.Nos últimos tempos, nos anos seguintes à independência, começou-se a sentir de facto essa fraqueza dos alunos cabo-verdianos em sair para ir estudar para o exterior, não dominando a língua em que tinham de estudar obtinham péssimos resultados. Isto durou alguns anos. Por exemplo, para nós, começámos a sentir que era uma vergonha nacional quando o Brasil começou a exigir, antes de aceitar dar bolsas, que os alunos prestassem uma prova de domínio da língua portuguesa., quer dizer, isto em Cabo Verde para nós é absurdo. Neste momento já se tomou consciência que é um risco grande que estávamos a correr e já se começou a ensinar o português como língua segunda, isto é, desde a escola as pessoas aprendem o português.

Como língua estrangeira?

Eu estou a dizer segunda porque quando defendi isto num artigo de jornal, a necessidade de ensinar o português como língua estrangeira, as pessoas caíram sobre mim: "Não é língua estrangeira que se diz". Eu quero lá saber, eu quero saber é que não é nossa, seja segunda ou estrangeira. Mas parece que a regra que se diz é língua segunda e não estrangeira. Eu penso que o que é necessário é efetivamente tomarmos consciência da importância que a língua portuguesa tem para nós. Não é saudosismo, é um instrumento de trabalho importantíssimo. Amílcar Cabral já dizia que a língua portuguesa foi a maior herança que os portugueses nos deixaram e é verdade. Uma vez numa entrevista aqui em Portugal permiti-me dizer "bom, com o crioulo não vamos longe". As pessoas caíram sobre mim, atacaram-me ferozmente. Quero contribuir para as pessoas tomarem consciência de que a língua portuguesa é tanto vossa como nossa.

Plataforma
(03.07.2018)
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Comentário de Raymond Halles, como resposta a esta entrevista em Plataforma:

 Ô môss! Um tá podê dzêb um c’zinha? Não entendo como é que a vida em Cabo Verde se processa em criolo e tenho grande dificuldade em acompanhar essa afirmação. O criolo na variante do sotavento é tão diferente da de barlavento e ainda se tem de contar com a variante de Santo Antão. Como é que é possível sequer pensar que se pode unificar estas variantes numa só? O Português era e de certa forma continua a ser a língua veicular do território. Aliás se antes da independência era a língua do Liceu (primeiro o Gil Eanes, de boa memória e mais tarde o Liceu da Praia) era porque no Mindelo se encontravam alunos desde Santo Antão à Brava e era necessário não só que estes alunos tivessem o mesmo grau de formação mas também que formassem entre si uma verdadeira comunidade escolar. Não por acaso muita literatura criola foi escrita em Português e que alguns dos seus criadores estiveram intimamente ligados ao Liceu, como o Baltazar Lopes da Silva ou o Roque Gonçalves, isto já para não fale nos Claridosos, Manuel Lopes, etc.

O Português não será assim língua estrangeira, como é óbvio, não é segunda língua, no sentido em que é uma lingua de menor uso, mas uma língua veicular, aquela que nos permite entender em todas as ilhas sem engulhos semânticos, gramaticais ou lexicais, e assim deveria continuar. Juntamente com a valorização das diferentes variantes do criolo, que a tentativa de normalização pelo criolo do sotovento está a matar e que ainda por cima é uma normalização destinada ao fracasso. Ainda há dias vindo da Baía das Gatas para o Mindelo o meu jovem condutor me dizia que por vezes trazendo pessoas de Santiago ou do Fogo utiliza o Português para melhor se entenderem do que cada um na sua variante do criolo. Penso que este facto é bem demonstrativo de que não foi a colonização que tornou o Português veicular (através do ensino e da administração) mas que a sua qualidade de língua veicular foi uma emergência derivada da necessidade de um entendimento comum. Mantenha!